O 'pavio filogenético' e a 'explosão cambriana' não se fundem.
Traduzir nem sempre é algo fácil, por isso admiro tanto as boas traduções e por consequência aos bons tradutores. Por causa dessa dificuldade, um trabalho de revisão independente sempre pode melhorar tal esforço ou pelo menos evitar que coisas simples atrapalhem a leitura de um bom texto.
Mesmo em boas traduções, às vezes, detectamos algumas pequenas coisinhas que nos saltam aos olhos, chamando nossa atenção mais do que esperaríamos, talvez mesmo, por que destacam-se do fundo de excelência do resto do trabalho. Um exemplo disso ocorreu recentemente comigo quando detectei, em uma leitura mais relaxada da tradução da LP&M do ótimo “The History of Life”, do paleontólogo britânico Michael J. Benton, uma expressão técnica traduzida de uma maneira bem estranha.
A nossa versão brasuca tem alguns pequenos erros (ou escolhas menos do que ideias de tradução), mas eles perdem relevância em uma tradução que, tirando estes detalhes, está realmente muito boa. Mas um desses erros, na minha opinião, destacou-se e pode tornar a compreensão da parte texto onde a expressão se encontra bem complicada, confundindo os leitores não familiarizados com o jargão da moderna paleobiologia.
A expressão em questão é ‘phylogenetic fuse’ que em português virou "fusão filogenética". Está na página 76 da tradução brasileira do livro e é um erro simples (quase bobo) que poderia ter sido prevenido por um trabalho de revisão adicional - neste caso a revisão não precisaria nem ser necessariamente técnica, pois o termo 'fuse' não é tão incomum assim e é bem diferente de 'fusion'.
Vamos ao problema. Compare o trecho traduzido com o da versão original da Oxford University Press que faz parte da ótima coleção 'Very Short Introductions':
“O termo 'fusão filogenética' foi inventado para descrever tal situação, em que um grande grupo (neste caso, os metazoários) diverge, e isso é indicado pela data molecular, mas os primeiros fósseis aparecem muito mais tarde. A 'fusão' se refere à hipótese de que a evolução continuou acontecendo, mas os organismos eram pequenos e raros, e por isso não eram detectados como fósseis.” [1]
“The term ‘phylogenetic fuse’ was invented to describe such a situation, where a major group (here metazoans) diverges, and that is marked by the molecular date, and then the first fossils appear much later. The ‘fuse’ refers to the proposition that evolution continued, but the organisms were small and rare, and so not detected as fossils.” [2]
O termo 'fuse' é mais apropriadamente traduzido como 'pavio' ou 'estopim' e no contexto de uma 'explosão' mesmo que metafórica faz bem mais sentido do que 'fusão'. No abstract do artigo em que o termo foi cunhado, fica claro o contexto em que ele foi usado através da analogia empregada ao final do resumo:
“Furthermore, molecular evidence indicates that prolonged periods of evolutionary innovation and cladogenesis lit the fuse long before the `explosions' apparent in the fossil record.” [3]
“Além disso, a evidência molecular indica que períodos prolongados de inovação evolutiva e cladogênese acenderam o estopim muito antes das 'explosões' aparentes no registro fóssil.” [Tradução minha]*
Portanto, a expressão 'phylogenetic fuse' ('estopim filogenético') é empregada para explicar a aparente discrepância entre as primeiras estimativas filogenéticas baseadas em relógios moleculares, feitas no final da década de 1990, para o começo da diversificação dos metazoários - principalmente para a origem dos bilateria, grupo ao qual pertencem os protostômios e deuterostômios - que, segundo os primeiros estudos, deveria ter se iniciado cerca de 600 milhões de anos antes da primeira aparição desses animais no registro fóssil, no começo do período cambriano. Desta forma, de acordo com a hipótese, o 'pavio filogenético' da evolução animal já estaria 'queimando' muito, muito, mas muito tempo mesmo antes da 'explosão cambriana' que apenas marcaria a época em que os números de indivíduos das diversas linhagens teriam crescido muito, bem como o tamanho dos espécimens e seu nível de 'esqueletização', tornando aparente aquilo que já havia acontecendo subrepticiamente há centenas de milhões de anos.
Acima podemos ver uma representação da evidência molecular, cladística e biogeográfica como interpretada no final da década de 90 que indicava que a 'explosão' evolutiva cambriana poderia ter sido precedida por um longo período de diversificação pré-cambriana. A diversificação que indubitavelmente ocorreu na base do cambriano seria a acompanhada da aquisição de partes duras - além do aumento concomitante do tamanho e do potencial de fossilização de metazoários ao “estilo Fanerozóico”, mas os planos corporais que caracterizam estes clados, provavelmente, já teriam tido uma história muito mais longa do que havia se suposto até então. Na figura as linhas grossas sólidas representam a extensão no tempo conhecida dos grupos em questão por meio dos fósseis; as linhas sombreadas mostram a 'extensão fantasma' ('ghost range') que foi implicada pela análise cladística; enquanto as linhas sólidas finas, mostram o padrão implicado de cladogênese pré-cambriana. Também podem ser vistos esboços dos grupos animais e asteriscos denotando divergências datadas por dados moleculares. Também são mostradas a fauna de Ediacara que precede a explosão cambriana, mas cujas afinidades filogenéticas com os grupos modernos (que tornam-se evidentes no cambriano) ainda são um tanto incertas. [ A Ilustração é uma obra de M.A. Wills e a figura foi retirada de Cooper A, Fortey R. Evolutionary explosions and the phylogenetic fuse. Trends Ecol Evol. 1998 Apr 1;13(4):151-6. PubMed PMID: 21238236. e foi modificada por mim com a adição da bomba e do estopim à direita da figura.
Ao lermos 'fusão filogenética' essa simples analogia perde-se e pode até subverter a ideia de diversificação e ramificação das linhagens que seria o contrário do que se esperaria observar ao usarmo o termo 'fusão'. Essa potencial confusão não ocorre com o texto original de Benton e é ainda menos provável caso leiamos o artigo original de Cooper e Fortey, de 1998, de onde tirei a figura e na qual adicionei um detalhe para quem ainda não compreendeu a analogia.
Trabalhos posteriores tornaram a ideia de um 'pavio filogenético', de queima tão lenta, desnecessária, uma vez que o emprego de outras técnicas de calibração mais flexíveis para os relógios moleculares produziram estimativas bem menos antigas para o inicio da diversificação dos animais, trazendo para bem mais perto do período cambriano este evento, como é explicado no livro de Benton.
Mais uma vez, esses e outros pequenos detalhes na tradução não tiram os méritos da publicação e nem minha recomendação para que todos interessados em uma boa introdução ao assunto, escrita em português, adquiram este livro e os demais da mesma coleção que já divulgamos aqui no evolucionismo.org.
Aproveito aqui para parabenizar a LP&M por estar traduzindo os livros da OUP, especialmente os títulos que se referem a evolução, paleontologia e história natural da coleção a 'Very Short Introductions' que certamente têm um publico ávido aqui no Brasil que há muito espera por obras como essas.
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* "Furthermore, molecular evidence indicates that prolonged periods of evolutionary innovation and cladogenesis lit the fuse long before the `explosions' apparent in the fossil record."
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Referências:
Benton, M.J. A História da Vida - Tradução de Janaína Marcoantonio - Porto Alegre: LP&M Pocket, 2012. 192 pg
Benton, M.J. The history of life: A very short introduction. Oxford University Press, Oxford, 2008. 170 pp.
Cooper A, Fortey R. Evolutionary explosions and the phylogenetic fuse. Trends Ecol Evol. 1998 Apr 1;13(4):151-6. PubMed PMID: 21238236.