O preço da complexidade
Philip Ball [The Achilles' heel of biological complexity ], ao comentar sobre um novo artigo da Nature afirma, “A complexa teia de interações entre as proteína nas células pode estar mascarando um problema cada vez pior.” . Nosso próprio e grandioso "modo ser" parece cada vez mais instável a longo prazo. A complexidade tem um preço e esse preço deverá ser pago no futuro, enquanto isso nosso débito aumenta.
Talvez seja uma das opiniões mais difundidas, entre biólogos evolutivos, a de que a complexidade típica de sistemas biológicos multicelulares, como animais e plantas, traga grandes vantagens e, portanto, se deva diretamente à seleção natural. A ideia de que a complexidade confere vantagens adaptativa - por exemplo, aumentando os possíveis nichos que um ser possa ocupar - não é nada implausível, sendo obviamente atraente e possuindo um grande poder heurístico. Mas, ao mesmo tempo, sabemos que os caminhos da evolução biológica são bastante tortuosos e o acaso nunca pode ser desprezado. Alguns cientistas têm explorado diferentes caminhos ao investigar as origens da complexidade biológica e sua evolução ao longo das eras. O grupo de Michael Lynch da universidade de Indiana se inclui nesta tendência. Nesse processo, descobrem algumas coisas sobre o preço que teremos que pagar por ser o que somos.
Nos últimos 15 ou 20 anos Lynch e seus colaboradores vêm propondo modelos de evolução da complexidade genômica que exploram, não a evolução adaptativa (que inegavelmente entra em ação no ajuste dos detalhes e adequação a situações ecológicas e demográficas específicas), mas o papel da deriva genética associada a perda de eficácia da seleção natural negativa (também dita purificadora), resultante das substancialmente menores populações das espécies de eucariontes multicelulares, o que nos inclui (veja aqui).
Um novo artigo de Ariel Fernández (agora no instituto de matemática da Argentina, em Buenos Aires) e Lynch sugere que a complexidade das redes de interações protéicas típicas das células eucariontes, conhecidas como interatoma (veja também este outro post), pode ser apenas um efeito colateral do acumulo de mutações fixadas pela deriva genética.
No abstract do artigo os autores resumem a questão:
“As fronteiras entre procariontes, eucariontes unicelulares e eucariontes multicelulares são acompanhadas por ordens de magnitude de redução no tamanho efetivo das populações, com amplificação simultânea dos efeitos de deriva genética aleatória e das mutações.”
Um das implicações desta constatação, explorada pelos cientistas neste artigo, é que o tamanho da população precisaria ser considerado como possível determinante da evolução das vias moleculares subjacentes a evolução fenotípica a longo prazo. No trabalho, os pesquisadores mostram uma relação aproximada filogeneticamente inversa entre o poder da deriva genética e a integridade estrutural das subunidades que formam as proteínas.
Este achado levou-os a postular que o acúmulo de mutações levemente deletérias em populações pequenas induz secundariamente seleção de interações proteína-proteína que estabilizassem as funções de genes fundamentais. Esta perspectiva oferece uma forma em arquitetura protéica e as interações complexas entre essas moléculas essenciais para a diversificação fenotípica, evoluam inicialmente por mecanismos não-adaptativos e compensatórios.
Para Fernández e Lynch a complexidade dessa rede de interações entre nossas proteínas é uma função do pequeno tamanho de nossas populações, o que é nítido se compararmos com as de organismos unicelulares. O pequeno tamanho nos tornaria assim particularmente vulneráveis à ao efeito da deriva genética aleatória e não resultado direto de aptidão superior.
Contudo, mudanças evolutivas ao nível da estrutura das proteínas dificilmente envolveriam grande desestabilização do enovelamento protéico, portanto, ocorreriam sem alterar demais a conformação nativa de uma proteína que tivesse um papel essencial. A perda completa de função provavelmente implicaria a morte do individuo e, desta forma, tal modificação drástica teria um fim curto, graças ao processo purgação da seleção negativa. No entanto, a hipótese da deriva prevê uma relação negativa entre o tamanho da população (N) e a acumulação de substituições de aminoácidos que fossem apenas levemente deletérias.
Em populações maiores pequenos diferenças na aptidão dos indivíduos é suficiente para purgar das populações mesmo pequenas mutações deletérias, ou seja, mutações mesmo que com pequenos efeitos fenotípicos são mais facilmente eliminadas pela seleção natural. Porém, isso não ocorre de forma tão eficiente em populações menores e os indivíduos que as compõem acabam acumulando mais esses pequenos defeito.
A conseqüência da redução na eficiência da seleção em espécies com N pequeno é o favorecimento da acumulação de leves deficiências estruturais, especialmente através da maior acessibilidade aos solventes as ligações de hidrogênios que compõem a espinha dorsal, “o backbone” da molécula (“solvent-accessible backbone hydrogen bonds”, SABHBs), o que leva estruturas protéicas mais "abertas" e, assim, vulnerável a hidratação perturbadora do enovelamento e a uma tensão na interface água-proteína (PWIT) ao dificultar as capacidades de formação de ligações de hidrogênio das moléculas d'água adjacentes.
Trocando em miúdos, a desestabilização das proteínas ( através das mutações que se acumulam nos genes que as codificam) pode ser causada pela maior exposição da proteína às moléculas de água. Com a maior dificuldade em manter a conformação a proteína também perde sua capacidade de funcionar adequadamente, por exemplo, ao impedir uma boa interação com seu substrato.
No trabalho de Fernández e Lynch foram investigadas as estruturas tridimensionais de proteínas depositadas no banco de dados on Protein Data Bank, o famoso PDB que possui mais de 40 mil estruturas lá depositadas, em geral resolvidas por métodos com a cristalografia por difração de raios-X e Ressonância Nuclear Magnética (NMR). Os pesquisadores puderam verificar que o interferência da interface entre proteínas e a água - principalmente provocado pela exposição de porções 'pegajosa' a cadeia polipeptídica enovelada – estava associada a uma maior propensão de uma proteína associar-se a outras.
Como proteínas para funcionarem adequadamente precisam manter uma certa conformação tridimensional (sua estrutura terciária nativa) mutações podem interferir exatamente com a estabilidade desse arranjo tridimensional, tornando o processo de enovelamento menos rápido ou a protéina menos estável no meio aquoso típico do interior celular.
Uma solução possível para este problema é as proteínas aderirem-se frouxamente umas as outras, protegendo assim as regiões sensíveis a água. A sugestão de Fernández e Lynch é que essas redes originalmente começaram a se formar como uma mera resposta passiva à ação acumulação de mutações deletérias permitida pela deriva genética. Desta forma, o grande número de interações físicas entre as proteínas no interior das células – fundamentais para o fluxo de informação bioquímica intra-celular – ajudaria a compensar pela diminuição da estabilidade das proteínas. Assim, o papel da seleção natural seria basicamente “correr atrás do prejuízo” compensando pela perda de estabilidade estrutural, o que seria alcançado pela formação de interações com outras proteínas.
Com o tempo, e em determinadas situações, algumas dessas interações protéicas podem ter se mostrado funcionalmente úteis, quem sabe, ajudando a regular melhor algum processo de celular, como através do envio de sinais moleculares através das membranas celulares, e assim passando a conferir grandes vantagens aos indivíduos que as possuíssem, tornando-se, alvos da seleção natural.
Utilizando-se de uma medida de deficiência estrutural (v), os autores conseguiram mostrar que, enquanto subunidades de proteínas humanas (que são funcionais formando oligômeros) homólogas a proteínas monoméricas de organismos com populações maiores eram mais instáveis, do ponto de vista estrutural, as mesmas proteínas ao serem analisadas como oligômeros (formando complexos de várias subunidades) apresentavam estabilidade estrutural semelhante a proteína homóloga do organismo maiores. Comparações envolvendo as subunidades separadas e formando o tetrâmero da hemoglobina humana e a versão monomérica do verme trematodo F. Hepatica mostram bem este fato.
A partir daí sugeriram a possibilidade de que a associação oligomérica entre as subunidades de hemoglobina, nos mamíferos, tenha sido favorecida como forma de reduzir o excesso de tensão interfacial que era causada pela acumulação de deficiências estruturais oriundas das pequenas populações. Essa sugestão, ou seja, de que a origem da complexidade do interatoma tenha ocorrido em parte por causa do aumento do poder de deriva trás como vantagem adicional a despensa de se invocar vantagens seletivas diretas de longo prazo para a complexidade fenotípica.
Os autores do estudo também preocuparam-se com a outra possibilidade, ou seja, se ao invés da degradação inicial da integridade da arquitetura das proteínas individuais ter sido causada pela deriva genética aleatória (induzindo a seleção secundária favorecendo o recrutamento de parceiros de interação), na verdade, o surgimento de complexidade celular tivesse precedido as alterações nas seqüências da proteínas que teriam ocorrido secundariamente para acomodar tais interações. Para avaliar esta possibilidade compararam-se proteínas ortólogas de espécies próximas mas que tivessem divergido apenas (relativamente) recentemente em relação ao tamanho efetivo de suas população, mas ao mesmo tempo não passando por grandes modificações em termos de complexidade intracelular ou aparecimento da multicelularidade.
Para tal intento, foram comparados genes ortólogos de bactérias intracelulares/endossimbiótica com os de espécies parentes de vida livre, já que se acredita que as primeiras experimentaram uma redução substancial nos tamanhos efetivos de suas populações. Os resultados mostram os genes das espécies de vida livre, com maior tamanho populacional efetivo, têm valores de ν (uma medida de deficiências estruturais) consistentemente menores do que os seus ortólogos nas outras espécies.
A situação propiciada pelos pequenos N oferece um contexto apropriado para o recrutamento de interações de estabilização proteína-proteína, sugerindo um mecanismo plausível para a emergência de complexidade molecular previamente a sua co-optação na evolução de fenótipos divergentes, durante a evolução. Assim, Fernández e Lynch não negam um papel potencialmente importante para a seleção natural ao valer-se dessas novidades posteriormente, nem nega que mutações compensatórias intramolecular (em contraste a estabilização inter-molecular) pode aliviar alguns defeitos estruturais associados SABHBs. Os dois cientistas, entretanto, enfatizam que seus resultados levantam questões sobre a necessidade de invocar-se vantagens intrínsecas à complexidade dos organismos, e fornecem forte razão para a expansão dos estudos comparativos em evolução molecular além da análise de seqüências lineares na avaliação das estruturas moleculares.
Uma solução temporária:
Como esclarece Ball, contudo, esta solução seria apenas uma gambiarra e acabaria por acarretar um custo extra. Ao 'tamponar' a instabilidade das proteínas através da formação de redes (mesmo que a curto prazo isso tenha permitido o aumento da complexificação e a seleção natural de novas funcionalidades, como mais camadas de controle co-optadas para o controle das interações celulares, estados de diferenciação e desenvolvimento embriológico), a longo prazo, podem ter permitido, na verdade, que várias proteínas encontrassem-se em um estado à beira do desenovelamento (ou enovelamento incorreto) espontâneo. Doenças como Alzheimer e Parkinson mostram o perigo da instabilidade protéica e do enovelamento incorreto. Prions são outro conhecidíssimo exemplo de doenças ligadas ao chamado “misfolding” protéico. Essas proteínas “deformadas” acabam por formar agregados que desencadeiam toda a sorte de problemas, deflagrando um processo neurodegenerativo com conseqüências terríveis.
Neste caso, a evolução da complexidade seria apenas um beco sem saída e a deriva genética, ao promover o acumulo de mutações deletérias, funcionaria como uma agente corrosivo, minando a estabilidade das nossas redes de proteínas até sobrecarregar sua capacidade de compensação. Espécies como a nossa acabariam ficando cada vez mais doentes e novas doenças degenerativas, ligadas a problemas no enovelamento e estabilidade protéica, surgiriam. Ball, em seu comentário na revista Nature, então afirma:
“Isto implicaria que a evolução darwiniana não é necessariamente benigna no longo prazo. Ao encontrar uma solução a curto prazo, para a deriva, pode ter apenas criado uma bomba relógio. Ou, como diz Fernández, "as espécies com pequenas populações no final de tudo estariam condenadas pela estratégia da natureza de evolução da complexidade." ”
Para muitos talvez tudo isso soe como um golpe duro em nosso ego. Não só uma das características que nós mais nos orgulhamos (nossa complexidade) é, pelo menos em um momento inicial, apenas um produto direto de um processo estocástico como a deriva – com a seleção natural apenas correndo atrás, remendando os erros acumulados – a longo prazo a própria complexidade pode ser uma estratégia fadada ao fracasso.
Do ponto de vista pedagógico estas considerações nos lembram mais uma vez que a seleção natural não é um processo perfeito que nos leva sempre rumo a estados melhores e muito menos à perfeição. A adaptação local frente a um “mundo” interno e externo em constante mudança é o que este processo consegue produzir, devendo se conformar a oferta de mutações e aos caprichos da deriva genética e de fatores demográficos.
A deriva é um problema muito maior para as populações pequenas do que para as grandes A sobrevivência pelo simples acaso, em contraste a devido a maior adaptabilidade, é muito mais impactante, na representatividade do genótipos na próxima geração, quando existem apenas poucos indivíduos. Os raros genótipos que produzam fenótipos robustos e funcionalmente mais bem adaptados a alguma característica relevante do meio-ambiente (e que se tivessem chance de competir com os dos demais indivíduos ganhariam, em termos de longevidade e sucesso reprodutivo) podem ser perdidos pelo puro acaso e nunca mais nada semelhante reaparecer. Se a vantagem conferida for pequena ou apenas manifesta a partir de um certo período as chances maiores são de que sejam perdidas pelo simples acaso e as agruras que permeiam a vida dos seres vivos. A ubiqüidade de organismos unicelulares como as bactérias, archaeas, com seu longo histórico de sucesso (e mesmo eucariontes simples), nos mostram que um jeito de se proteger do efeito combinado das mutações e da deriva é “manter-se pequeno, simples e em grandes números”.
“A longo prazo estaremos todos mortos”:
Para Fernández, os prions indicam que “este quebra galhos foi longe demais":
"As proteínas com o maior acúmulo de defeitos estruturais são os príons, proteínas solúveis tão mal empacotadas que abdicam de sua conformação funcional e agregam-se."
Os príons provocam doenças como Creutzfeldt–Jakob e o Kuru ao desencadear um processo de mau enovelamento em outras proteínas bem semelhantes, em uma espécie de reação em cadeia.
Fernández acrescenta que "se a variabilidade genética resultante da deriva aleatória continuar aumentando, nós, como espécie, podemos acabar enfrentando mais e mais catástrofes de aptidão do tipo que os príons representam". E ele acrescenta: "Talvez o custo evolutivo de nossa complexidade seja um preço demasiado elevado a pagar a longo prazo."
Estes comentários seguem a mesma linha dos inspirados em trabalho anterior de Lynch, comentando aqui no evolucionismo, a partir da análise de bancos de dados de mutações associadas a doenças humanas e a redução do tamanho efetivo de nossa população.
Os dois principais processos que decidem os destino das mutações a deriva genética e a seleção natural são capazes de criar a complexidade que nos é tão cara mas faz isso por vias bastante tortuosas que, talvez, nos destinem a extinção como preço final por esta mesma complexidade. Mas como os microbiologistas não cansam de nos lembrar, ainda vivemos na era das bactérias. Nós mesmos, ao pensarmos em nossos intestinos, pele e mucosas, somos parte de seu habitat e devemos nossa sobrevivência a elas. Mesmo dentro de nós, na intimidade de nossas próprias células - no exato local onde se dão essas interações proteína-proteína que estávamos discutindo - estão lá também elas, na forma de nossas mitocôndrias. Como se não bastasse tudo isso, nosso próprio modo de vida multicelular e complexo parece inerentemente instável. E como dizia um velho livro, “E os humildes herdarão a terra ...”. Bem, pelo jeito, os humildes jamais tenhamos sido nós.
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Referências:
Fernández A, & Lynch M (2011). Non-adaptive origins of interactome complexity. Nature PMID: 21593762
Ball, Philip [publicado on line em 18 de maio de 2011] The Achilles' heel of biological complexity Nature News doi: 10.1038/news.2011.294 .
Créditos da sfiguras:
CDC/SCIENCE PHOTO LIBRARY
HAWOONG JEONG, UNIVERSITY OF NOTRE DAME/SCIENCE PHOTO LIBRARYLAGUNA DESIGN/SCIENCE PHOTO LIBRARY
JAMES KING-HOLMES/INSTITUTE OF ANIMAL HEALTH/SCIENCE PHOTO LIBRARY
THOMAS DEERINCK, NCMIR/SCIENCE PHOTO LIBRARY