O que é um ‘elo perdido’? [Tradução]
Enquanto alguns ainda usam a expressão, os especialistas a abominam porque implica que a vida é uma hierarquia linear.
Os ossos da mão vistos em um modelo de baleia no centro desta imagem contam a curiosa história de como as baleias foram da terra para a água. (© BrokenSphere / Wikimedia Commons)
por Brian Switek (SMITHSONIAN.COM – 6 de Março, 2018 )*
Quando Darwin publicou Origem das Espécies, uma coisa faltou em seu argumento: um “elo perdido”.
Embora o termo nunca apareça no livro, Darwin sabia que suas afirmações poderiam se beneficiar grandemente da evidência paleontológica de uma transição de espécies - uma espécie intermediária conectando, por exemplo, seres humanos aos macacos. Menos de dois anos após a publicação de Origens, ele teve seu desejo atendido. Em 3 de janeiro de 1863, Charles Darwin recebeu uma carta de seu amigo paleontólogo Hugh Falconer com notícias de uma impressionante descoberta: Archaeopteryx.
Esse fóssil extraordinário – que exibia penas, assim como dentes, garras, uma cauda óssea e outros traços reptilianos – era exatamente o tipo de criatura que a teoria de Darwin da evolução por meio da seleção natural previa que deveria ter existido. As penas não deixaram qualquer dúvida de que o Arqueopteryx jurássico era uma ave, mas a criatura também tinha um conjunto de traços saurianos que apontavam para uma ascendência reptiliana.
Falconer mal podia conter sua alegria.
“Se os artesãos de Solenhofen tivessem recebido a encomendada – por ordem expressa - para criar um ser estranho ‘a la Darwin’”, seu amigo escreveu, “não poderiam ter executado o pedido de forma mais elegante” - do que através do Archæopteryx”.
Hoje, algumas pessoas ainda se referem ao Archaeopteryx como aquele “elo perdido” há muito procurado entre aves e dinossauros. Certamente, ele preenche vários dos requisitos para ser considerado um animal que parece entre o que se pensava serem duas categorias distintas de organismos. Mas há boas razões para não usar a expressão – algo que o próprio Darwin sabia. Como Nicholas Pyenson, curador de fósseis de mamíferos marinhos do Museu Nacional de História Natural Smithsonian, diz: “A vida é realmente uma árvore, não uma corrente”.
“Para mim, a ideia de um ‘elo perdido’ implica uma cadeia linear de uma espécie que evolui para outra, que evolui para outra, e assim por diante”, diz a antropóloga do programa Smithsonian Human Origins, Briana Pobiner. Esse não é o padrão que observamos. Em vez disso, a evolução “produz um padrão de ramificação semelhante a uma árvore com múltiplos descendentes de uma espécie ancestral existentes ao mesmo tempo e, às vezes, mesmo ao lado dessas espécies ancestrais”.
A metáfora da corrente que o “elo perdido” implica nos faria buscar linhas retas, quando a realidade da evolução é muito mais divagante. Nem toda criatura fóssil pode ser inserida como um antepassado direto de algo vivo hoje. É por isso que os paleontólogos passaram a abominar o termo: Ele obscurece o verdadeiro padrão de mudança evolutiva.

Arqueopteryx tem sido considerado há muito tempo um "elo perdido" entre aves e dinossauros. Mas esse termo obscurece a realidade de como a evolução funciona. (NMNH Paleobiology Dept/Smithsonian)
Por qualquer outro nome
Mas do que chamar “seres estranhos ‘a la Darwin’”, como o Archaeopteryx, baleias com pernas e seres humanos que se parecem com macacos?
Paleontólogos normalmente preferem a expressão “forma de transição” ou “forma intermediária”, porque implicam que essas espécies são partes de um contínuo em constante mudança. Isso não é uma mera questão de detalhes semânticos; terminologia molda nossas ideias e a forma como as mudanças dramáticas no curso da vida são interpretadas. Antes (e mesmo depois) de Darwin, os naturalistas às vezes encaravam as espécies como parte de uma hierarquia ranqueada em que as formas mais recentes eram de alguma forma melhores do que as que existiam antes. “Palavras descuidadas levam ao pensamento descuidado”, como diz Pyenson.
“Em certo sentido, todas as espécies são uma forma de transição de seus ancestrais porque retém muitos características ancestrais, mas exibe características únicas suficientes para serem uma espécie separada”, diz Pobiner. E dado que todas as espécies vivas hoje têm fósseis relacionados à sua ascendência, são muitos fósseis de transição. Mais comumente, Pobiner afirma: “os paleontólogos costumam usar este termo quando falam de mudanças anatômicas ou ecológicas maiores que ocorreram durante a história da vida”.
Não que “forma de transição” não tenha seus próprios problemas. A frase às vezes pode, inadvertidamente, dar a impressão que um primo evolutivo seria um ancestral direto ao ser traduzido no jargão popular. Mas, pelo menos, destaca que o organismo em questão ajuda a determinar o que os paleontologistas identificaram como uma grande mudança na história da vida.
A evolução está constantemente produzindo ramos, e traçar linhas de descendência – de uma espécie ancestral para seu descendente direto – é quase sempre impossível devido à natureza incompleta do registro fóssil. “Eu olho para o registro geológico natural”, escreveu Darwin, “como uma história do mundo imperfeitamente mantida.” Relacionando estratos às páginas de um livro, ele continua: “Deste volume apenas aqui e ali um pequeno capítulo foi preservado; e de cada página, apenas aqui e ali algumas linhas”.
Os paleontólogos conhecem bem essas linhas, pois de toda a vida que já existiu apenas uma fração foi preservada e uma porção ainda menor ainda foi encontrada. O que é realmente incrível, então, é que somos capazes de detectar mudanças importantes!

Darwin ilustrou sua árvore da vida na versão de 1859 de Origem das espécies. Foi a única ilustração que constava no livro. (Wikimedia Commons)
Como a baleia obteve seus ossos de mãos.
Conhecemos muito da notável história evolutiva das baleias graças aos fósseis de transição. As primeiras baleias, por exemplo, não se pareciam com as baleias-minke e orcas nadando nos oceanos de hoje. Cerca de 55 milhões de anos atrás, eram animais terrestres com pés com cascos que pareciam com cervos pequenos com caudas longas. Eles eram artiodátilos, membros do mesmo grupo de mamíferos que incluem hipopótamos e vacas hoje em dia.
Ao longo de cerca de 10 milhões de anos, as primeiras baleias às margens da água tornaram-se cada vez mais anfíbias até que apenas as formas totalmente aquáticas restassem. Isso exigiu mudanças importantes em como as baleias se moviam, no que comiam e em seus sentidos. Uma acumulação crescente de fósseis desde a década de 1970 nos informa como essas mudanças se desenrolaram; ao mesmo tempo, você pode ver as formas passadas das baleias em sinais reveladores, como os ossos de mãos nas nadadeiras de uma baleia-azul.
Uma flotilha inteira de fósseis de baleias iniciais evidenciam essas mudanças, como os pés que se tornaram semelhantes a remos, as colunas espinhais adaptadas à ondulação ascendente e descendente para natação e os dentes adequados para pegar peixes escorregadios. “As baleias não se parecem com os parentes mais próximos”, hoje, diz Pyenson, que é o autor do livro a ser lançado ‘Spying on Whales: The Past, Present, e Future of Earth's Most Awesome Creatures’. Os fósseis são o que nos revelam essas conexões".
É por isso que o registro fóssil é tão essencial. “Se tivéssemos apenas o DNA para continuar e nenhum registro fóssil”, diz Pyenson, “ainda estaríamos coçando a cabeça para entender de onde as baleias vieram”.
A Transição Humana
As baleias não são únicas nesse sentido, claro. A mudança evolutiva transcendente aplica-se a todos os organismos, de sequoias vermelhas a baleias, de dinossauros a lesmas de mar – para nós, inclusive. Na verdade, somos um dos principais problemas com a frase “elo perdido”.
Muitas pessoas associam a frase especificamente aos seres humanos. Para eles, ela evoca a imagem de uma criatura de meio macaco, meio humana, que se encaixaria entre nós e os chimpanzés. Mas, como sabemos, a evolução não segue um caminho linear que produziria tal ser: temos uma árvore genealógica, não uma escada familiar. Em vez de um único fóssil que responda todas as nossas perguntas, o que temos é um grupo variado de seres humanos fósseis que nos ajudam a entender que somos apenas parte de uma história muito maior.
Há também uma razão política que os especialistas muitas vezes evitam usar o termo. Organizações antievolução, como Answers in Genesis e The Discovery Institute, muitas vezes, alegaram que “elos faltantes” são exatamente isso: faltantes. Para cada nova faceta da evolução que um organismo particular pode nos desnudar, há um negador de evolução apontando para o que ainda não foi encontrado como se isso provasse que a evolução não ocorreu. Basear-se no termo “elo perdido”, em outras palavras, dá muita vantagem aos agitadores anticiência, dando aos cientistas toda a razão para abandonar o termo.
Na realidade, a história humana remonta há milhões de anos, deixando-nos a última espécie em pé – literalmente. Nós habitualmente caminhamos de uma maneira que nenhum outro animal faz, com nossas costas totalmente eretas e nossas pernas abaixo de nós. Como isso aconteceu, tem sido um grande foco de pesquisa enquanto paleontólogos e antropólogos investigam o nosso passado.
Esta mudança ocorreu relativamente cedo, entre o tempo que nossos ancestrais se separaram dos antepassados dos chimpanzés, há mais de 6 milhões de anos, e, cerca de 3,6 milhões de anos atrás, quando pessoas pré-históricas andaram através das cinzas e nos deram a prova definitiva de que seres humanos antigos andavam como nós. Mas a história da humanidade vai mais além das pernas e coluna vertebral. “Os primeiros hominines também tinham caninos relativamente menores do que outros macacos”, afirma Pobiner, uma das muitas mudanças relacionadas a alterações na dieta, comportamento e muito mais.
Nós fomos capazes de reunir (montar e compreender) muitas dessas mudanças graças a fósseis de transição. Sem um DeLorean modificado ou TARDIS, no entanto, ficamos com o registro fóssil imperfeito, incompleto e, no entanto, esclarecedora: uma história épica da vida em transição.
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*Brian Switek é um escritor de ciências freelance especializado em evolução, paleontologia e história natural. Ele bloga regularmente para Scientific American.
O artigo foi publicado originalmente em: https://www.smithsonianmag.com/science-nature/whats-missing-link-180968327/
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SWITEK, B. What’s a “Missing Link”? SMITHSONIAN.COM MARCH 6, 2018.
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Tradução: Rodrigo Q. Véras