O verme que veio do espaço ou É a evolução genética previsível? Parte III
Ao contrário do anunciado pela maioria dos veículos de comunicação na época, houveram sobreviventes do desastre com o ônibus espacial Columbia ocorrido em 2003. Infelizmente, não foi nenhum dos tripulantes, mas algumas centenas de vermes cilíndricos da espécie Caenorhabdittis elegans, um dos mais utilizados sistemas-modelo na pesquisa biológica e biomédica básica. Essas fantásticas criaturas foram descobertas nos destroços do ônibus espacial Columbia quando ninguém esperava que nada fosse sobreviver a queda. Em uma tragédia com essa, pelo menos fica a lembrança da persistência da vida e do legado científico daqueles que pereceram no arriscado e fascinante trabalho de exploração do espaço.
O container no qual estavam os animais foi descoberto em fevereiro, no Texas, junto aos destroços na nave, mas foi deixado de lado até abril do mesmo ano, quando os cientistas os abriram e tiveram a surpresa. Foram recuperados cinco recipientes cilíndricos (quatro deles com espécimens ainda vivos) contendo cada um oito placas de petri com aqueles que seriam a sexta geração de nematodes após o acidente, algo que pode ser inferido pelo seu ciclo de vida de sete a dez dias. Há poucos dias um novo estudo científico foi publicado mostrando que três linhagens diferentes de nematodes, uma delas sendo descendente* direta da que foi recuperada dos destroços do Columbia, haviam perdido basicamente os mesmos genes ao serem submetidos ao mesmo tipo de pressão ecológica: criação em alta densidade populacional. Este resultado é mais um em uma série de trabalhos sobre convergência e paralelismo evolutivo que mostram que apesar de todo o caráter aleatório das mutações e contingente da evolução, em algumas condições é possível prever, em linhas bem gerais, alguns desfechos do processo de adaptação e de sua base molecular [Veja também os outros posts desta série, Parte I e Parte II].
Para compreendermos como este novo estudo traz luz a questão, é preciso primeiro nos determos um pouco no ciclo de vida das espécies de nematodes investigadas. Em condições naturais (ou seja fora do “conforto” dos laboratórios) ou em condições que as mimetizem, esses vermes, como o conhecido Caenorhabditis elegans, podem seguir por dois caminhos desenvolvimentais distintos, (i) amadurecer em cerca de três dias, reproduzir-se e morrer em um prazo de aproximadamente 2 semanas, ou (ii) entrar em um estado de animação suspensa, mantendo-se na forma daquilo que o conhecido como larva Dauer [Veja o comentário de Pennisi sobre o assunto].
As larvas Dauer não se alimentam, e podem sobreviver a condições ambientais estressantes por um período de meses antes que amadureçam e transformem-se em adultos. São três as pistas ambientais que deflagram a transformação dos jovens nematodes em larvas Dauer: pouco alimento, condições de temperatura inadequadas e superpopulação, mais especificamente o crescimento em altas densidades. Esses animais são capazes de estimar quando seu número está muito alto através do “odor”. Fazem isso ao detectar a concentração de certos produtos químicos chamados feromônios emitidos por seus congêneres. Caso as concentrações de feromônio sejam muito altas, eles adotam a forma de larva Dauer, o que poupa recursos e permite que esperem por tempos de maior bonança.
O feromônio provoca uma extensão específica da segunda fase larval acoplada a uma diminuição transitória na taxa de crescimento da fase L2. Larvas neste segundo estágio, L2, cultivadas na presença de feromônio são morfologicamente distintas das larvas L2 cultivadas sem o feromônio. Esta fase pré-Dauer é denominada L2d e a retenção Dauer pode se dar nesta segunda muda L2d. A formação da larva Dauer implica alterações coordenadas em um todo o corpo do animal envolvendo uma ampla rede de genes e de sinais endócrinos. Antes da muda Dauer, o animais se alimentam, armazenando gordura e carboidratos e durante morfogênese ocorre a supressão da ingestão de alimentos, o corpo do animal passa por constrição radial e várias tecidos corporais passam por remodelamento. Durante a diapausa, como os animais não se alimentam, consomem suas reservas, convertendo a gordura em glicose através do ciclo do glioxilato. A respiração aeróbica é suprimida em favor do metabolismo glicolítico e da fermentação.
As larvas Dauer permanecem imóveis boa parte do tempo, mas podem mover-se rapidamente quando estimuladas. Seus orifícios permanecem selados e uma cutícula espessa, resistente à dessecação, se forma, com cerdas cuticulares chamadas "asas" que permitem o movimento rápido. São em geral altamente resistentes a todas as formas de estresse, incluindo por inanição, térmico e oxidativo. Apesar de sua aparência quiescente, uma grande quantidade de genes importantes para a sobrevivência continuam sendo expressos. São essas características da diapausa Dauer que conferem a esses animais a capacidade do sobreviver por meses em condições adversas e, assim, prevalecer. Quando as condições favoráveis retornam, a larva Dauer rapidamente recupera-se e volta a se desenvolver nos estágios pós-Dauer L3/L4 e por fim em adultos reprodutivos, com a expectativa de vida normal.
Em três situações independentes em duas espécies de nematodes do gênero Caenorhabditis foi possível mostrar que, nos três casos, populações de cada uma delas evoluíram de maneira a suprimir a via de desenvolvimento Dauer induzida por superpopulação. Mas mais do que isso, os cientistas foram capazes de mostrar que, em todos os casos, a causa do novo fenótipo (perda da fase Dauer induzida) ocorreu por mutações que impediam o funcionamento de receptores para o feromônio indutor deste estágio ou um receptor equivalente que desempenhava um papel semelhante no sistema de indução ambiental do aprisionamento Dauer.
Duas linhagens de Caenorhabditis elegans (LSJ2 e CC1) cultivadas em altas densidades, de forma independente, adquiriram resistência multigênica a formação de larvas Dauer induzida por feromônio. Em cada uma dessas linhagens a resistência ao sinal indutor do feromônio ascaroside C3 foi consequência de uma deleção que perturbou a expressão dos genes adjacentes dos quimiorreceptores, proteínas com domínios transmembrana do tipo serpentina da classe dos receptores acoplados à proteína G srg-36 e srg-37. Experimentos de expressão incorreta, mostraram que estes genes codificam G-receptores redundantes acoplados à proteína G para o feromônio ascaroside C3.
Note que foram constatadas diferenças nas regiões perturbadas das duas linhagens, o que sugere fortemente que foram mutações independentes e relativamente diferentes que causaram a mudança do fenótipo, apenas impediam o funcionamento dos mesmos receptores. Entretanto, talvez o mais interessante, foi o fato uma linhagem de outro nematode, Caenorhabditis briggsae, cuja espécie deve ter divergido de C. elegans há mais de 20 milhões de anos, evoluíram a resistência ao feromônio por perda multigênica para a formação da larva Dauer, em resposta ao cultivo em alta densidade populacional, em parte, resultante de mutações que eliminavam um gene srg, parálogo aos srg-36 e srg-37, cuja perda de funcionalidade foram responsáveis pelo fenótipo das duas linhagens cuja via Dauer foi suprimida. Usando construtos genéticos transgênicos foi possível inclusive resgatar a via Dauer ao inseri-los nas cepas anteriormente não responsivas ao feromônio [Veja a figura abaixo].
Estes resultados, como afirmam McGrath e seus colaboradores, demonstram que a rápida remodelação do repertório dos quimiorreceptores é uma adaptação a ambientes específicos, e indicam que mudanças paralelas em um mesmo (ou pelo menos muito semelhante) substrato genético comum podem influenciar a história de vida e características entre espécies [Razib Khan do blog Gene Expression tece alguns comentários bem pertinentes sobre o assunto]. A perda da larva Dauer, em um primeiro momento, ilustra a contingência do processo evolutivo através de sua dependência de contexto. Entrar nesta fase significa geralmente aumentar as chances de sobrevivência e, portanto, de reprodução (lembre dos tempos de bonança), o que torna-se fácil de compreender caso o ambiente esteja repleto de competidores e os recursos sejam limitados, o que é o caso na maioria das condições selvagens. Mas isso não é verdadeiro para os vermes cultivados em laboratórios nos quais o suprimento alimentar e de outros recursos é continuamento provido e ajustado pelos pesquisadores, a menos que resolvam fazer algum experimento de seleção ou tenham sofrido um inesperado corte de verbas.
Nesta situação, uma mutação que simplesmente elimine a fase Dauer se disseminará rapidamente na população, pois enquanto os animais selvagens estariam em um estado de animação suspensa em que quase não se alimentam, mas fundamentalmente, não se reproduzem, os mutantes que perdem a fase Dauer estarão alimentando-se e reproduzindo-se. Cada vez mais mutantes Dauer e menos tipos selvagens. Este é um exemplo simples e direto de seleção natural, mas ainda assim uma questão importante ainda demanda uma resposta. Os autores do artigo em seu abstract declaram:
“A evolução pode seguir trajetórias previsíveis genéticas, indicando que discretas mudanças ambientais pode selecionar para reprodutíveis mudanças genéticas. Indivíduos da mesma espécie são uma característica importante do ambiente de um animal, e uma fonte potencial de pressões seletivas.”
Por que o fenômeno foi observado exatamente nestes receptores ao invés de em qualquer um dos mais de 50 genes envolvidos na formação de larvas Dauer, em princípio, todos capazes de abolir esta via de desenvolvimento?
Uma possibilidade é que mesmo com toda a aleatoriedade da evolução alguns tipos de caminhos são mais fáceis e mais prováveis do que outros. Pode haver caminhos de menor resistência encarnados em certos elos bioquímicos que ocupam uma certa posição na hierarquia de redes genéticas e bioquímicas que controlam o desenvolvimento. David Stern, ao comentar este estudo, enfatiza que certos genes ocupam uma posição tal nesses circuitos o módulos desenvolvimentais que qualquer mutação neles tem efeitos bastante específicos. Estes genes (genes input-output) integrariam diversas vias de sinalização intracelular que seriam responsáveis pelo controle dos processos de desenvolvimento, circunscrevendo estes efeitos a uma ou poucas funções ou uma ou poucos tecidos, estruturas, fases ou sistemas.
Mutações em qualquer um dos outros genes envolvidos poderiam na realidade interferir com múltiplos sistemas e funções, causando efeitos nocivos secundários ou poderiam apenas abolir parcialmente a resposta fenotípica adaptativa. Então, no primeiro caso resultariam em deficiências fenotípicas graves que ameaçariam a sobrevivência dos indivíduos portadores e no segundo caso não confeririam as mesmas vantagens das mutações nestes genes focais. Desta maneira, o arranjo genético-desenvolvimental dos seres vivos determinaria as vias de menor resistência pelas quais determinados fenótipos poderiam ser atingidos de maneira menos traumática, isto é, com menos custos aos organismos e a sua reprodução.
Como explica o especialista em evolução e desenvolvimento de nematodes Patrick Phillips, da Universidade do Oregon, em Eugene:
"É um estudo impressionante", "Alguém poderia ter previsto que haveriam muitas maneiras de quebrar um sistema". "Mas somente alguns podem fazê-lo sem afetar outras partes do organismo." [Citado por Pennisi, 2011].
Como disse alguém sobre o comportamento de um príncipe Dinamarquês, “Apesar de ser loucura, revela método”.
A compreensão dos processos e mecanismos moleculares, celulares e teciduais por trás do desenvolvimento dos fenótipos dos seres multicelulares nos permite fazer a ponte entre mudanças no material genético (ou em certos casos até herdadas epigeneticamente) e fenótipos específicos que medeiam a interação direta dos organismos com certos fatores ambientais. Isso nos possibilita traçar a evolução destes sistemas desde seus aspectos moleculares, passando pela dinâmica populacional dessas mudanças (e a dos organismos que as portam), além dos padrões, processos e mecanismos desenvolvimentais que estão por trás delas, chegando, por fim, à interação ecológico-funcional que define o valor adaptativo da característica. Com esses conhecimentos têm sido possível desvendar algumas regras que regem o processo de evolução (pelo menos em certos contextos), como a ideia de que existem caminhos mutacionais de menor resistência, de um lado, e a de que certos fenótipos parecem poder ser obtidos de forma mais fácil do que outros, por outro lado, evidenciando a complexidade do mapeamento genótipo-fenótipo e a importância da liberação de restrições para a evolução genética e fenotípica.
A partir de um processo muito simples - a mudança transgeracional das características herdáveis de populações através da reprodução diferencial dos indivíduos a cada geração - uma incrível diversidade pode ser esperada, mas ainda assim algumas regras mais ou menos gerais, válidas em certos contextos, podem ser aduzidas ao mesmo tempo que a marca da história e da aleatoriedade jamais poderá ser eliminada. Contingência, acaso e regularidade são todos expressos no processo evolutivo, evidenciando o incrível poder da evolução.
________________________________________________
Nota* Outros descendentes dessa linhagem, sobrevivente do desastre com o Columbia, foram reenviados ao espaço no ônibus espacial Endeavor em maio deste ano.
________________________________________________
Referência:
McGrath PT, Xu Y, Ailion M, Garrison JL, Butcher RA, & Bargmann CI (2011). Parallel evolution of domesticated Caenorhabditis species targets pheromone receptor genes. Nature PMID: 21849976
Referências Adicionais:
Pennisi, Elizabeth [on 17 August 2011, 1:01 PM] Is Evolution Predictable? Science ScienceNow.
Fielenbach, N., & Antebi, A. (2008). C. elegans dauer formation and the molecular basis of plasticity Genes & Development, 22 (16), 2149-2165 DOI: 10.1101/gad.1701508
Golden JW, & Riddle DL (1984). The Caenorhabditis elegans dauer larva: developmental effects of pheromone, food, and temperature. Developmental biology, 102 (2), 368-78 PMID: 6706004
Szewczyk, N., Mancinelli, R., McLamb, W., Reed, D., Blumberg, B., & Conley, C. (2005). Survives Atmospheric Breakup of STS-107, Space Shuttle Columbia Astrobiology, 5 (6), 690-705 DOI: 10.1089/ast.2005.5.690
Créditos das figuras:
JAMES KING-HOLMES/SCIENCE PHOTO LIBRARY
NASA/SCIENCE PHOTO LIBRARY
Szewczyk NJ, Mancinelli RL, McLamb W, Reed D, Blumberg BS, Conley CA. Caenorhabditis elegans survives atmospheric breakup of STS-107, space shuttle Columbia. Astrobiology. 2005 Dec;5(6):690-705. PubMed PMID: 16379525.