Opinião: por que sou um biólogo conservador com a teoria da evolução
Hoje, quero sair do armário como um conservador. Mas, calma lá: é conservadorismo com a teoria da evolução.
Venho acompanhando há mais de 6 anos algumas propostas de reforma da teoria para uma Síntese Evolutiva Estendida.
Para resumir um pouco a história, há alguns biólogos evolutivos que crêem que a chamada Síntese Evolutiva das décadas de 1930 e 1940 deixa de fora fenômenos importantes ao explicar a variedade dos seres vivos e a origem das espécies e suas adaptações.
Chamamos de "síntese" porque houve o encontro de duas teorias da biologia que, à primeira vista, no fim do século XIX e começo do século XX, pareciam incompatíveis. Trata-se da teoria da evolução pela seleção natural, de Charles Darwin, e a teoria da genética de Gregor Mendel. As incompatibilidades foram resolvidas, com o efeito de deixar de lado algumas poucas ideias que não eram essenciais: por exemplo, a ideia do quinto capítulo do Origem das Espécies, de que era possível a herança de características adquiridas durante o desenvolvimento.
A síntese, feita por um punhado de biólogos e estatísticos muito competentes, é que a definição de Darwin para o que é "evolução" - descendência com modificação nas populações dos seres vivos - pode ser entendida, no nível da genética, como a mudança das frequências dos alelos ao longo das gerações. Neste novo contexto a ideia de "aptidão" (fitness) ganhou um sentido, digamos, mais "puro": há genótipos mais ou menos aptos, e podemos medir a aptidão pela contribuição relativa de cada genótipo para os números de organismos viáveis observados na prole. Com base desse foco nos genes como detentores da informação herdável, a teoria sintética estabeleceu uma definição clara de processo evolutivo - são os processos que alteram em alguma direção o equilíbrio das frequências dos genes ao longo das gerações: seleção natural, deriva genética, mutação e migração.
Esses são os processos básicos, a partir dos quais entendemos mais coisas. Se hoje podemos entender por que motivo há certos sacrifícios de organismos, como o de uma aranha macho que é devorada pela fêmea durante a cópula, é porque reduzimos com sucesso alguns dos fenômenos do nível do organismo ao nível do gene. A aranha macho se sacrifica porque o sacrifício é indiretamente vantajoso para sua prole: ou seja, os genes da aranha estão em vantagem nisso mesmo que a própria aranha não esteja. Esse é um reducionismo saudável para o entendimento do fenômeno. Em ciência, fazer reducionismo é necessário para gerar boas teorias, frequentemente.
Desde a graduação tenho lido textos que propõem que a síntese evolutiva não é suficiente para explicar certas coisas na descendência com modificação. Por exemplo, diz-se que Lamarck foi vingado pela descoberta do fenômeno de herança de características adquiridas pela via da epigenética (marcações periféricas ao genoma que influenciam na expressão dos genes). Diz-se que a construção de nichos (quando o ser vivo altera e constrói seu ambiente, como fazem cupins, castores, árvores, minhocas etc.) não é apenas uma curiosidade, mas um processo ou mecanismo evolutivo (ao lado dos listados acima). Na biologia evolutiva do desenvolvimento, propõe-se que há vieses de plano corporal que influenciam grandemente a forma das adaptações, e que o surgimento da variação sobre a qual age a seleção natural não é realmente aleatório. Também se aponta como novidade a ser abraçada na teoria evolutiva a plasticidade fenotípica - que fenótipos muito díspares podem ser produzidos pelos mesmos genes, e que portanto boa parte da adaptação, especialmente em estágios iniciais, é fruto da agência de organismos e não apenas um produto passivo da retenção de variedade genética selecionada ao longo das gerações.
Tudo isso não é inventado. De fato há exemplos descritos de cada uma dessas coisas. O que se disputa são as interpretações. Eu estive numa palestra do Kevin Laland, um dos principais teóricos em construção de nicho, por exemplo, em que ele propôs que o foco da biologia evolutiva no processo evolutivo da seleção natural é um acidente histórico: que, se recomeçássemos o filme da história da biologia, a construção de nicho teria igual probabilidade de ter sido o primeiro processo evolutivo descrito pelos biólogos, pois é tão importante quanto a seleção natural.
Eu não concordo. Não vejo na construção de nicho nada que lembre um processo evolutivo, mas fenômenos periféricos aos fenômenos relacionados à descendência com modificação, mais contingentes que ela. Uma coleção limitada de exemplos de construção de nicho, por mais que deixe claro que pode ser dramática a ação dos organismos sobre sua própria evolução, por conta de como alteram o ambiente e o deixam como herança para as próximas gerações - a oxigenação da atmosfera terrestre deve ser o exemplo mais dramático disso - deixa também difícil abstrair algo para ser generalizado a todos os seres vivos como atores dessa construção e não alvos passivos da ação de alguns poucos. Li alegações de que até no contexto da origem das primeiras formas de vida, a construção de nicho ocorria. Eu acho que isso é uma expansão desnecessária de um conceito importante. Em qualquer espaço finito em que temos seres vivos evoluindo, haverá necessariamente modificação do ambiente. Não acho que valoriza o conceito de construção de nicho ou a importância desse fenômeno na história da vida alegar que o elaborado ritual de construção de barragens dos castores é basicamente a mesma coisa que o ambiente ser modificado pelas excretas de bactérias - e que isso é um "processo/mecanismo" evolutivo. Ver isso como um processo evolutivo traz uma certa obscuridade. Teorias servem para generalizar, descrever padrões que se aplicam a no mínimo (no contexto da biologia) fenômenos que ocorrem à grande maioria das espécies - para que então as generalizações possam fazer previsões com boa chance de acerto. Enquanto posso imaginar algumas previsões a serem feitas pelos processos da deriva genética e da seleção natural, por exemplo, não vejo de forma tão clara que tipo de previsão (surpreendente, pra usar a qualificação de Lakatos) seria gerada por um "mecanismo" da construção de nicho: a "previsão" de que o ambiente será modificado quando certo processo de adaptação ocorrer ou não se qualifica como previsão de fato ou não é uma previsão surpreendente.
Sobre as propostas de englobar a herança "inclusiva", com a epigenética, até hoje, como dizem os conservadores que publicaram na Nature, não se observou característica (fenótipo) cuja base fosse estritamente epigenética e divorciada da sequência dos genes. Inclusive, as enzimas que fazem as mudanças epigenéticas são em si codificadas por genes. Não entendo por que motivo Eva Jablonka e Marion Lamb pensam que a epigenética tem algo a ver especificamente com Lamarck, quando o próprio Darwin defendia que a modificação de características durante a história de vida fosse herdável, e Lamarck, talvez mais que Darwin, estava mais interessado em explicar mudanças macroevolutivas. Não tenho notícia também de qualquer novidade evolutiva como as de interesse de Lamarck - por exemplo, a modificação dos pés das aves de acordo com seus "hábitos" (nichos ecológicos) - que tenha sido melhor explicada por força da herança de características adquiridas pelas vias da epigenética.
Sobre essas e as outras propostas de modificação da teoria da evolução, eu creio que os conservadores estão com a razão: os fenômenos envolvidos são todos muito interessantes, a maioria deles requer mais estudos para sabermos até que ponto são frequentes entre as espécies e quão profundamente são influentes na história da vida. Mas não são novidade que tenha o mérito de gerar algo que mereça ser visto como teoria nova.
Penso que no campo dos reformadores há alguns problemas de natureza filosófica: (1) uma noção mais rigorosa do que é teoria científica, para justificar que a teoria sintética seja modificada e ao mesmo tempo justificar que não esteja apenas sendo enriquecida por pesquisas de ponta nesses fenômenos; (2) uma noção mais rigorosa de processo/mecanismo evolutivo, pois não parece que o que estão propondo se qualifique como tal. Há também o problema de rotina de pesquisa: é preciso ter um corpo maior de evidências e uma amplitude filogenética/taxonômica maior para determinar que certos fenômenos sejam tão importantes quanto alegam ser (aqui merecem ser citados os vieses de desenvolvimento e as alegações de origem direcionada da variação).
Em time que está ganhando não se mexe. Concordo em não deixar que tudo na biologia evolutiva seja feito com uma "viseira molecular no nível do gene", e me entusiasmo com as novas fronteiras sendo abertas na biologia moderna, mas casa em que se confunde fundação com argamassa, pilar com azulejo, não para em pé.
Referências para dois debates relevantes:
1. Laland, K. et al. 2014 Does evolutionary theory need a rethink? Nature 514, 161–164. (doi:10.1038/514161a) Disponível aqui.
2. Scott-Phillips, T. C., Laland, K. N., Shuker, D. M., Dickins, T. E. & West, S. A. 2014 The Niche Construction Perspective: A Critical Appraisal. Evolution 68, 1231–1243. (doi:10.1111/evo.12332) Disponível aqui.
Crédito da imagem: moeda de 25 centavos de Euro astríaca lançada em janeiro de 2014. Design de Helmut Andexlinger. Foto de NobbiP.