Parabéns pelos 25 anos do experimento de evolução em longo prazo de Richard Lenski
Antes que o ano termine, nós do evolucionismo.org, precisamos lembrar que, em 2013, comemoramos* os 25 anos (em 24 de fevereiro) de um dos mais duradouros e impressionantes experimentos contínuos das ciências biológicas.
A revista Science em 15 de novembro deste anos publicou um artigo da jornalista Elizabeth Pennisi intitulado “O homem que engarrafou a evolução” [1] no qual a história deste experimento (que continua até os dias de hoje) e de seu idealizador é contada.
Em 1988, Richard Lenski, pesquisador da Universidade Estadual de Michigan, colocou em prática uma ideia simples, mas radical, que permitira a ele e seu grupo de pesquisadores estudarem a evolução biológica de uma maneira ainda não testemunhada, muito mais precisa [1].
O experimento começou com 12 populações idênticas da bactéria Escherichia coli que foram acondicionadas em frascos com meios de cultura contendo 25 mg de glucose por litro. Os pesquisadores do laboratório de Lenski, assistiam-nas proliferando diariamente, e a cada 24 horas, as bactérias sob constante agitação constante e mantidas a uma temperatura de 37 ° C, multiplicam de explosivamente, esgotando a glicose, quando 1% delas eram transferidas para um novo frasco com novo suprimento de glicose [1].
A cada 75 dias, ou seja, mais ou menos a cada 500 gerações, algumas das bactérias eram retiradas de seus frascos de crescimento, sendo então congeladas em freezeres para futuros estudos comparativos (e como reservas, caso os experimentos fossem contaminados) entre estágios mais novos e antigos da evolução dessas populações, o que permitiria também tentar replicar qualquer resultado em particular, repetindo o experimentos a partir de uma das amostras da população ancestral. Este protocolo de cultura microbiológica continuou dia após dia praticamente sem ser interrompido, com as culturas sendo congeladas temporariamente durante uma pausa de inverno, quando o campus estava deserto e quando Lenski mudou seu laboratório da Califórnia para Michigan. Vinte e cinco anos mais tarde já testemunhamos 58 mil gerações, o seria mais ou menos equivalente a um milhão de anos de evolução humana, ajustando para os tempos geracionais de nossa espécie. [Acima e a direita temos o viajante do tempo, Richard Lenski, que para voltar o relógio da evolução, Richard Lenski mergulha em seu freezer: Crédito da Imagem: G. L. Kohuth/Michigan Sttate University (2009) via Pennisi (2013) [1]]
Os experimentos de evolução de longa duração de Richard Lenski:

Fontes do dados: Richard Lenski via Pennisi, 2013 [1].
Doze populações de bactérias, replicando e evoluindo por 25 anos, produziram alguns números bem grandes. As 12 populações de bactérias originalmente idênticas umas as outras, agora, são todas diferentes. Passaram-se 58000 gerações, sendo a cada dia observam-se 6,6 gerações. Em total estimado de aproximadamente 1014 bactérias. São empregados mais de 4000 frascos que mantem os ancestrais e as evoluídas e foram gastos dez mil litros de meio de cultura líquido. O custo do experimento é em 4 milhões de dólares. O envolvimento de trabalho em conjunto das pessoas equivale a 75 anos. Passaram pelo experimento 30 estudantes de doutorado e pós-doutorados e estão envolvidos nele 40 colaboradores externos. Até agora o experimento rendeu mais de 50 publicações em revistas científicas [1].

Empilhando placas: Zachary Blount usou todas essas placas de petri para estudar como um único frasco de bactérias evoluiu a capacidade de usar o citrato como fonte de energia.
Os mais novos resultados mostram que, ao invés das bactérias chegarem a um "pico de aptidão" e por lá permanecerem, durante toda a duração do experimento, as bactérias continuaram a tornarem-se mais adaptadas. Quando os pesquisadores mediram o quão rápido as bactérias das gerações mais recentes poderiam proliferarem-se em relação aos seus antepassados (descongelados e ressuscitados de sua animação suspensa), eles descobriram que a aptidão das descendentes continuou a aumentar, sem sinais de estabilização, com a aptidão média aumentando, aparentemente, sem limites, de acordo com uma lei de potência [2]. Uma lei de potência é uma relação em que a mudança relativa em uma quantidade implica em uma mudança relativa em uma outra quantidade, de maneira independente ao valor inicial dessas quantidades. Desta maneira, nas leis de potência, uma quantidade (Y) varia de acordo com a potência (expoente) da outra (X), podendo esta relação ser escrita da seguinte forma:
Y=aXk,
onde 'k' é o expoente (a potência que relaciona a variação das duas quantidades) e 'a' é um constante de proporcionalidade.
Como o próprio Lenski explicou em seu blog, a lei de potência prevê a trajetória da evolução da aptidão de uma maneira bem mais precisa. Por exemplo, caso os pesquisadores reduzam os dados de modo que eles incluam apenas os das primeiras vinte mil gerações, a lei de potência [linha tracejada azul] que se ajusta a estes dados parciais consegue prever com grande precisão qual será a aptidão por volta da geração 50.000, o que não acontece com o modelo assintótico [linha tracejada vermelha] para o mesmo conjunto de dados, uma vez que este consistentemente subestima os futuros aumentos na aptidão [2].
O grupo de Lenski tem, portanto, documentado tanto que a evolução, a longo prazo, pode ser, em certos aspectos, reprodutível (ainda que a contingência seja muito importante, como veremos adiante), como também que ela não 'cessa'** mesmo em um ambiente estável [5].
De acordo como Pennisi [1], quinze anos atrás, Lenski quase abandonou este fantástico modelo de evolução experimental por modelos de evolução de organismo digitais, como os conduzidos na plataforma AVIDA em colaboração com os grupos de Christoph Adami, Charles Ofria e o filósofo Robert Pennock [3, 4]. As vantagens dos experimentos in silico estão no grau de controle nas intervenções e na precisão das análises que são maiores, mesmo que aqueles permitidos pelo minuciosos e laboriosos experimentos com E. coli. Nestes experimentos com organismos digitais era possível rastrear as mudanças 'mutação' a 'mutação', geração a geração [1, 3, 4]. Felizmente, Lenski reconsiderou esta decisão e seus resultados provaram-se importantíssimos, levando a descobertas dramáticas [1, 6, 7]. As bactérias ainda guardavam algumas surpresas e seu maior nível de complexidade (em relação aos organismos digitais), ainda que inconveniente do ponto de vista metodológico, oferece perspectivas bem mais amplas. Para nossa sorte ambas as empreitadas continuaram e temos a continuidade dos experimentos in silico e in vivo.
A grande descoberta: As comedoras de citrato entram em ação
Uma manhã, Lenski e seus colegas perceberam que o meio de cultura de um dos frascos contendo bactérias E. coli tinha ficado turvo, um possível sinal de contaminação por outras bactérias. Na ocasião, porém, os cientistas não puderam confirmar esta suspeita. Eles, então, retiraram do freezer e descongelaram a amostra mais recente que havia sido congelada daquela mesma população, chamada de Ara-3, e repetiram o experimento. Três semanas mais tarde, mais uma vez, o frasco estava turvo. Os cientistas, desta vez, começaram a testar exaustivamente a cultura em busca de evidências de contaminação, mas não encontraram qualquer vestígios dessa possibilidade, o que os levou a descartarem esta esta hipótese. Algo diferente estava ocorrendo com esta população em particular [1].
[Evolução em exibição: Uma mutação conduziu a uma expansão da população de uma das 12 culturas, tornando o meio turvo (terceiro frasco a partir da esquerda). Os pesquisadores puderam comparar a aptidão duas das linhagens ao cultivá-las juntas e, em seguida, contando as colônias (em uma placa de petri). Uma das cepas carrega uma mutação que torna suas colônias vermelhas.[1]]
Ao cultivarem as bactérias desta cepa, Ara-3, em diferentes tipos de meios de cultura, os cientistas conseguiram descobrir que as bactérias daqueles frascos haviam evoluído uma nova forma de se alimentar. Elas não dependia mais da glicose e passaram a explorar uma nova fonte de energia diferente, disponível em seu meio, o citrato. E foi isso que permitiu as bactérias desses frascos (as variantes Cit+) atingirem densidades populacionais muito mais elevadas a ponto de os deixarem turvos em períodos de tempo muito menores do que as demais populações conseguiriam.
"Este foi o maior evento em todo o experimento E. coli", disse Christoph Adami, físico e colaborador de Lenski e coautor como ele do artigo de 2003 com os experimentos in silico com a plataforma AVIDA.
O jornalista Carl Zimmer [6]*** resumiu de maneira excelente as descobertas sobre a evolução da linhagem derivada da população Ara-3 que tornou-se capaz de usar o citrato do meio de cultura em uma artigo do The Loon. É deste artigo e dos artigos originais [5] publicados nas revistas PNAS, em 2008 [5], e Nature, em 2012 [7], dos quais retirei as informações sobre esta impressionante descoberta.
A evolução das comedoras de citrato:
Ao identificarem a cepa, os cientistas do grupo de Lenski voltaram às suas amostras de bactérias congeladas e compararam a nova cepa com várias amostras das anteriores (literalmente estágios anteriores da evolução) e puderam perceber que por volta da geração 32000, uma das cepas tornara-se capaz de usar o citrato como substrato metabólico na presença de O2, ainda que continuasse dependendo da glicose do meio. Eles continuaram investigando e viram que nos estágios posteriores que levaram a forma capaz de viver sem glicose, os pesquisadores puderam encontrar cepas que eram um pouco melhores em usar o citrato. Além disso, eles puderam sequenciar os genomas dessas diversas cepas compararem-nos com as cepas que não evoluíram a capacidade de usar o citrato no lugar da glicose e com os genomas dos vários estágios intermediários [6, 7].
A figura abaixo mostra uma filogenia da população Ara-3. Os símbolos nas pontas das ramificações referem-se aos 29 clones sequenciados. As áreas sombreadas e símbolos coloridos servem para identificar os principais clados. As frações acima da árvore mostram o número de clones pertencendo ao clado que deu origem ao mutante Cit1 durante os experimentos (numerador) e o total correspondente empregado nos experimentos (denominador). As setas mostram o número de mutações relativas ao ancestral. As linhas contínuas representam a regressão linear dos mínimos quadrados nos genomas 'não mutadores', enquanto as linhas tracejadas correspondem a regressão linear dos genomas 'mutadores' [7]. As chamadas cepas 'mutadoras' são aquelas cuja taxa de mutação é maior do que a taxa normal da população ou espécie, ou seja, nos genomas dessas bactérias, as mutações surgem com maior frequência, o que parece ser devido a mutações particulares, com as que podem acometer os genes associados aos sistemas de detecção de erros e reparo deles que operam durante a replicação do DNA.
Isso permitiu que os cientistas pudessem detectar o gene que havia sido casualmente duplicado (citT) na cepa ancestral e que havia ficado perto de uma outra região promotora diferente, o que fazia com que ele continuasse ativo em situação em que a versão original não ficava ativa, fazendo aquela cepa capaz de expressar proteínas específicas que serviam como bombas de citrato (o trocando por sucinato) mesmo na presença de oxigênio. Em seguida, a cópia do gene citT, juntamente com o seu promotor que permitia sua expressão na presença de oxigênio, foi novamente duplicada, o que fez com que as bactérias expressassem ainda mais canais da proteína citT em suas membranas e, desta forma, absorvessem mais citrato do meio [6, 7].

Acima esquema ilustrando amplificações contíguas dos genomas Cit1. Em a podemos ver o arranjo ancestral dos genes CitG, CitT, RnA e RnK, já em b podemos observar as mudanças na ordenação especial e relações regulatórias produzidas pela amplificação [7].
Este vento foi seguido por uma terceira duplicação do mesmo gene que, causalmente, melhorou ainda mais a habilidade de bombear citrato para dentro delas, o que foi confirmado quando os pesquisadores descongelaram amostras das cepas de bactérias de gerações anteriores e que tinham apenas uma do gene citT inseriram nelas cópias extras que as fizeram imediatamente melhores na utilização de citrato. Por fim, os cientistas identificaram outras mutações que surgiram durante e após as duplicações seguidas do gene citT que, apesar de algumas incertezas, parecem ter permitido que as bactérias quebrassem as moléculas de citrato de maneira mais eficiente, refinando a capacidade de obtenção de energia a partir desse substrato [6, 7].
Porém, os estudos do grupo de Lenski não pararam por aí, afinal de contas a capacidade do uso do citrato ao invés da glicose na presença de O2 evoluiu apenas uma única vez entre as doze replicatas originais de bactérias e apenas após dezenas de milhares de gerações. Então, para entender o que havia acontecido, os pesquisadores pegaram amostras congeladas de vários períodos anteriores e as submeteram ao mesmo regime de cultivo que havia dado origem a cepa que usava o citrato. Quando eles fizeram isso puderam notar que apenas as cepas após a geração 20000 é que evoluíram de novo esta capacidade. Eles propuseram que antes que a evolução desta capacidade pudesse ocorrer outras mudanças teriam que ter acontecido antes que teriam permitido ('preparado o terreno') para a evolução subsequente, mostrando o caráter contingente e oportunista da evolução de certas características biológicas complexas [5, 6, 7].
Além disso, os pesquisadores elaboraram uma maneira de testar esta hipótese, criando um plasmídeo (um pequeno segmento circular de DNA) cheio de cópias do gene citT junto com a sequência promotora que permitia que as proteínas fossem expressas na presença de O2. Ao inserirem este construto genético em várias amostras de estágios ancestrais da população de bactérias, puderam observar que apenas aquelas cepas mais tardias derivadas de amostras congeladas depois da geração 20000 conseguiam utilizar o citrato de forma equivalente a cepa que evoluíra sozinha esta capacidade, confirmando a ideia que deveriam haver mutações 'preparatórias' que permitissem a evolução desta capacidade. Isto quer dizer que mutações que originalmente não tinham nada a ver com a capacidade de interiorizar e metabolizar o citrato tiveram que ocorrer para que alguma cepa posterior pudesse evoluir estas capacidades. Estas mutações originais provavelmente tinham a ver com outros sistemas metabólicos, talvez, simplesmente ajudassem as bactérias a viverem com glicose ou, quem sabe, eram naquelas ocasiões neutras tendo sido fixadas por deriva genética ou pego carona em outras mutações vantajosas [6, 7].
Este é um espetacular exemplo de um modo muito importante de evolução de novas características e de como se dá incorporação de nova informação genética, ou seja, duplicação gênica e cooptação funcional da(s) cópia(s) extra(s) em um contexto distinto e para funções diferentes [6]. Discutimos tais mecanismos em outras oportunidades e devemos, em breve, voltar a fazê-lo em maior detalhe. Veja nosso artigos “A origem de nova informação genética. Parte "I e “A origem de nova informação genética. Parte II”
sobre o tema.
Ainda veremos muitos resultados interessantes deste e experimento, além de outros usando a a bordagem da evolução experimental e da evolução de organismos digitais que nos revelarão mais e mais sobre a dinâmica evolutiva e com novos genes, fenótipos e funções evoluem ao longo da evolução. Estes 25 anos precisam ser comemorados como um trinfo da engenhosidade humana e da nossa contínua busca por conhecimento. Lenski, seus alunos e colaboradores merecem nossas congratulações e que aguardemos entusiasmadamente seus futuros resultados.
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*Agradeço mais uma vez ao professor Fernando Gewandsznajder pela lembrança e sugestão da comemoração.
**É bom deixar claro que este cessar era apenas relativos ao aumento da aptidão e não da mudança evolutiva. O que ocorre é que alguns biólogos evolutivos esperaram que após algum tempo evoluindo em ambientes estáveis, as populações tenderiam a estabilizar sua aptidão em um pico, continuando a mudar apenas por flutuações estocásticas guiadas pela deriva genética, por exemplo.
***Essa descrição já havia sido postada na internet como um comentário meu a uma postagem do FaceBook.
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Referências:
Pennisi E. The man who bottled evolution. Science. 2013 Nov 15;342(6160):790-3. doi: 10.1126/science.342.6160.790.
Wiser MJ, Ribeck N, Lenski RE. Long-Term Dynamics of Adaptation in Asexual Populations. Science. 2013 Nov 18. [Epub ahead of print] PubMed PMID: 24231808.
Lenski, R. E., C. Ofria, R. T. Pennock, and C. Adami. 2003. The evolutionary origin of complex features. Nature 423:139-144. (Nature)(PDF)
Wilke, C. O, J. Wang, C. Ofria, R. E. Lenski, and C. Adami. 2001. Evolution of digital organisms at high mutation rate leads to survival of the flattest. Nature 412:331-333. (Abstract)(PDF)
Blount ZD, Borland CZ, Lenski RE. Historical contingency and the evolution of a key innovation in an experimental population of Escherichia coli. Proc Natl Acad Sci U S A. 2008 Jun 10;105(23):7899-906. doi: 10.1073/pnas.0803151105.
Zimmer, Carl The Birth of the New, The Rewiring of the Old Phenomena: The Loom, September 19, 2012.
Blount, Z. D., J. E. Barrick, C. J. Davidson, and R. E. Lenski. 2012. Genomic analysis of a key innovation in an experimental Escherichia coli population. Nature 489:513-518. doi:10.1038/nature11514