Pobre Darwin
Charles Darwin deu origem a uma reviravolta na história intelectual, e isso não tem a ver com a existência de Deus ou a origem do homem. É algo mais fascinante: a aceitação, pela comunidade humana (especialmente os cientistas), do fenômeno da evolução, ou seja, a história da diversificação dos seres vivos na Terra. Darwin, além disso, propôs uma teoria, a seleção natural, para explicar a evolução. É isso o que a ciência faz: propõe mecanismos explicativos para fenômenos aceitos pelos cientistas que, postos para funcionar, irão gerar o tal fenômeno. Se você aceita as coerências operacionais da seleção natural, ela irá explicar o fenômeno da evolução. Darwin foi impecável ao propor sua teoria. Não apenas aceitamos a evolução, mas o modo engenhoso e generoso de Darwin tratá-la mudou a atitude dos cientistas e de todos nós.
E o que a evolução, por um lado, e as teorias científicas, de outro, têm que ver com ateísmo, agnosticismo ou crenças religiosas? Essa é uma discussão não só inútil, mas enganosa. Ela confunde as pessoas ao confundir domínios explicativos. Ateísmo ou crença são posicionamentos humanos em relação à espiritualidade, e não elementos de teorias científicas. Se o fenômeno da evolução implica que repolhos e seres humanos descendem de outros seres, isso faz parte do fenômeno tal como descrito pelos cientistas, sem fazer referência a elementos estranhos ao fenômeno. Isso não quer dizer que a teoria é “agnóstica” sobre se uma divindade criou isso ou aquilo, pois, nesse caso, o cientista estaria dizendo que há algum aspecto do fenômeno que a teoria não pode explicar, e o objetivo das teorias é explicar o fenômeno! Quando um cientista encontra um aspecto do fenômeno que a teoria não explica mais, ele propõe outro mecanismo, muda de teoria. Assim fez Copérnico depois de Ptolomeu, Einstein depois de Newton.
Darwin ainda não foi totalmente digerido por nós, e duas barreiras nos impedem de saborear o naturalista inglês. A primeira é o dogmatismo de alguns cientistas, que transformou o legado darwiniano em explicações reducionistas da evolução. Ainda hoje, estudantes repetem nas aulas de biologia, sem nunca ter lido Darwin, que a “competição” causa a diversificação dos seres vivos. Como se organismos (ou genes) tratassem de competir por alguma coisa! A outra barreira é a absurda oposição entre darwinismo e religião. Alguns cientistas põem lenha nessa fogueira, dizendo-se ateus (o que é legítimo) e vinculando seu ateísmo ao darwinismo (o que é um contra-senso). Do outro lado dessa moeda, pessoas mal-intencionadas (pois seu objetivo é político, e não acadêmico) ocupam espaço na mídia mundial com o “criacionismo científico” e a “teoria do design inteligente”. Nem vale a pena mostrar a incoerência de chamar essas bobagens de “científico” ou de “teoria”. Jesus disse: “a César o que é de César”. Pois que César fique em Roma, e deixe nós, gauleses, em paz.
Publicado no jornal O Tempo, 08/09/09