Por mais que ela ame o arsênio, a GFAJ-1, não consegue viver sem o fósforo.
Caso você tenha algum interesse em ciência, acesso aos meios de comunicação e não tenha estado fora do planeta nos últimos dois anos, muito provavelmente, acompanhou, mesmo que de relance, a polêmica gerada pela divulgação, dos rresultados da pesquisa, liderada pela microbiologista Felisa Wolfe-Simon, em muito badalada conferência de imprensa da NASA, em que foi sugerido que uma dada cepa de bactéria, a Halomonadaceae, GFAJ-1 - encontrada do lago Mono, na Califórnia - não só tolerava altos níveis de arsênio, mas era capaz de usá-lo no lugar do fósforo na formação de seus ácidos nucléicos. Agora, após 18 meses de espera, dois grupos de pesquisadores 1,2 divulgaram os resultados das suas tentativas de replicar os experimentos que geraram a polêmica. O veredicto oficial, como relatado por Quirin Schiermeier, em artigo/comentário na revista Nature, é que as bactérias tolerantes ao arsênio, encontradas no lago Mono, não podem viver sem fósforo. Portanto, não foi desta vez que descobrimos um ser vivo com uma nova bioquímica de ácidos nucléicos em nosso planeta ou uma 'biosfera das sombras', como alguns gostam de chamar esta possibilidade.

Para quem não acompanhou a polêmica desde o início, essas bactérias foram descobertas em um lago raso, alcalino e altamente salino, na Califórnia - o tal lago Mon -, prosperando em sedimentos ricos em arsênio, um elemento altamente tóxico para a imensa maioria dos seres vivos e cuja toxicidade em parte se dá por causa de sua similaridade com o fósforo, o que permite que o substitua em algumas reações, interferindo com as mesmas e levando a interrupção de certas funções vitais dos organismos que têm a má sorte de absorvê-lo.
Por causa disso, a sugestão de que essas bactérias não só toleravam o arsênio - e, quem sabe, incorporassem-no em suas membranas, por exemplo -, mas também, ativamente, o usassem no lugar do fósforo, despertou um grande ceticismo entre os químicos, bioquímicos e microbiologistas de plantão que produziram uma série de artigos em seus blogs atacando vários detalhes metodológicos do artigo original e, principalmente, os argumentos e conclusões de Wolfe-Simon e colaboradores - publicados online, em dezembro de 2010 3 e divulgados na já famigerada conferência de imprensa organizada pela NASA, entidade co-financiadora do estudo.
O jornalista Carl Zimmer cobriu a polêmica e a resumiu em um de seus artigos na revista Slate, com o sugestivo título “This Paper Should Not Have Been Published”, e em vários post em seu blog, seus e de convidados cientistas. Essa reação mostrou a velocidade do novo meio e gerou acaloradas discussões sobre o papel dos blogs e a adequação das críticas veiculadas pelos mesmos que teriam, segundo alguns, sido exageradas, agressivas e que, de alguma forma, atrapalhariam o processo de análise crítica em periódicos, como se os blogueiros/cientistas houvessem colocado a carroça na frente do bois. Uma crítica um tanto injusta especialmente por causa da própria forma escolhida pelos pesquisadores e pela NASA para divulgaram os achados e as interpretações do grupo, a já mencionada conferência de imprensa que parecia feita para criar polêmica (Veja ‘Microbe gets toxic response’).
Após essa tempestade na blogosfera, em junho do ano passado, quando o artigo de Wolfe-Simon e colaboradores foi definitivamente publicado na revista Science4, oito comentários técnicos, de muitos dos cientistas que haviam criticado as interpretações e conclusões de Wolfe-Simon e colegas sobre a GFAJ-1 em seus blogs, foram publicados acompanhando o artigo principal, ainda mantendo a polêmica em um nível científico do 'ela disse ele disse' que não é pouca coisa, por sinal, mas basicamente com as mesmas críticas já vociferadas nos blogs, seguidas de uma resposta tímida dos Wolfe-Simon e seus colegas que não acrescentou nada de novo a questão.
Já na época da polêmica, Rosie Redfield, uma microbiologista da Universidade da Columbia Britânica, em Vancouver, Canadá, crítica ferrenha do artigo, prontificou-se a replicar alguns dos experimentos e testar outras possibilidades que não foram testadas no artigo original. No início deste ano de 2012, ela afirmou que não pudera reproduzir os resultados Wolfe-Simon através de seus experimentos de laboratório (Veja ‘Study challenges existence of arsenic-based life’), antecipando o desfecho da polêmica. Agora, Redfield e colegas publicaram um dos artigos que confirmam o fato que as bactérias GFAJ-1 podem tolerar o arsênio, mas não vivem sem o fósforo e não incorporam arsênio em seu lugar em suas moléculas de DNA, refutando as sugestões mais polêmicas e desconcertantes de Wolfe-Simon et al (2011).
Redfield e colaboradores (2012), de acordo Schiermeier, relataram em seu artigo que quando bactérias da cepa GFAJ-1 foram cultivadas em meio contendo arsênio e uma quantidade muito pequena de fósforo, eles não foram capazes de detectar em seu DNA compostos de arsênio, tais como arseniato, composto análogo ao fosfato, a forma como o fósforo é encontrado nas moléculas de DNA. Em outro artigo, outros pesquisadores, liderados por Julia Vorholt, microbióloga do Instituto Federal de Tecnologia, em Zurique, na Suíça, relataram que a bactéria não pôde crescer em um meio livre de fósforo na presença apenas de arseniato, podendo, no entanto, crescer em meios com baixas concentrações de fosfato e na presença de arseniato. A equipe de pesquisadores escreveu:
“GFAJ-1 é resistente ao arseniato, mas ainda uma bactéria fosfato-dependente"
"Eu acho que nós temos agora uma evidência muito sólida de que o metabolismo da GFAJ-1 é tão dependente do fósforo, assim como o de todas as outras formas conhecidas de vida orgânica", disse Vorholt e completou: "Estes micróbios muito robustos e muito bem adaptados parece são capazes de extrair eficientemente os nutrientes de seus ambientes extremamente pobres em fósforo."
Aparentemente, um dos problemas com o estudo de 2010/2011 é que as amostras que a equipe de Wolfe-Simon havia usado em seus experimentos continham maiores concentrações de fósforo do que eles supunham inicialmente, de acordo com Vorholt a partir do relatado por Schiermeier:
"A nova pesquisa mostra que a GFAJ-1 não quebra as regras de longa data da vida, ao contrário de como Wolfe-Simon havia interpretado os dados de seu grupo." [Veja aqui]
Wolfe-Simon ao comentar os novos artigos afirmou, esquivou-se afirmando:
"O artigo original da GFAJ-1 enfatizava tolerância ao arsénio, mas sugeria que as células necessitavam de fósforo, como se vê nestes dois novos trabalhos"
"No entanto, os nossos dados implicavam que uma quantidade muito pequena de arseniato pode ser incorporado as células e as biomoléculas, ajudando as células à sobreviver em ambientes com alto arseniato e com muito pouco fosfato. Tais quantidades baixas de incorporação de arsênio podem ser um desafio para serem encontradas e instáveis uma vez que as células estão abertas."
Para Wolf-Simon, a história da GFAJ-1 está longe de terminar e acrescenta.
"As principais questões são: como é que estas células prosperam em concentrações letais de arsênio E para onde o arsênico vai?”
Com certeza são questões pertinentes e de interesse científico, mas bem mais modestas do que o hype que se criou com as sugestões de que essas bactérias poderiam substituir o fosfato por arseniato e assim constituírem-se em uma 'nova forma de vida', ideias que podem não terem sido divulgadas por Felisa e seus co-autores, mas que se criaram pela falta de apreciação pelos vários problemas nas interpretações do artigo original, suas limitações metodológicas - mesmo para consubstanciar as alegações mais modestas, mas ainda assim sensacionais, contidas no artigo original -, além da forma sensasionalista com que a NASA divulgou o estudo.
O importante, no entanto, é que a ciência é um processo que demanda a interação entre cientistas, crítica (às vezes pouco amistosa), divulgação dessas críticas e novas tentativas de reproduzir ou refutar resultados, métodos e conclusões originais por especialistas independentes. E foi isso que aconteceu!
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Schiermeier, Quirin Arsenic-loving bacterium needs phosphorus after all Nature News 09 July 2012; doi:10.1038/nature.2012.10971
Literatura Recomendada:
Reaves ML, Sinha S, Rabinowitz JD, Kruglyak L, Redfield RJ. Absence of Detectable Arsenate in DNA from Arsenate-Grown GFAJ-1 Cells. Science. 2012 Jul 8. [Published Online July 8 2012] doi: 10.1126/science.1219861
Erb TJ, Kiefer P, Hattendorf B, Günther D, Vorholt JA. GFAJ-1 Is an Arsenate-Resistant, Phosphate-Dependent Organism. Science. 2012 Jul 8. [Published Online July 8 2012] Science doi: 10.1126/science.1218455
Wolfe-Simon, F. et al. A bacterium that can grow by using arsenic instead of phosphorus. Science. Published online Dec 2, 2010. doi:10.1126/science.1197258
Wolfe-Simon F, Switzer Blum J, Kulp TR, Gordon GW, Hoeft SE, Pett-Ridge J,Stolz JF, Webb SM, Weber PK, Davies PC, Anbar AD, Oremland RS. A bacterium that can grow by using arsenic instead of phosphorus. Science. 2011 Jun 3;332(6034):1163-6. doi: 10.1126/science.1197258
Veja vários comentários:
Comment on "A bacterium that can grow by using arsenic instead of phosphorus". [Science. 2011]
Comment on "A bacterium that can grow by using arsenic instead of phosphorus". [Science. 2011]
Comment on "A bacterium that can grow by using arsenic instead of phosphorus". [Science. 2011]
Comment on "A bacterium that can grow by using arsenic instead of phosphorus". [Science. 2011]
Comment on "A bacterium that can grow by using arsenic instead of phosphorus". [Science. 2011]
Comment on "A bacterium that can grow by using arsenic instead of phosphorus". [Science. 2011]
Comment on "A bacterium that can grow by using arsenic instead of phosphorus". [Science. 2011]
What job can a bug give? A controversy over the arsenic-guzzling bacterium cultured by NASA. [Protein Cell. 2011]
Microbiology. Concerns about arsenic-laden bacterium aired. [Science. 2011]
Comment on "A bacterium that can grow by using arsenic instead of phosphorus". [Science. 2011]
Editor's note. [Science. 2011]
Créditos das Figuras:
PETER MENZEL/SCIENCE PHOTO LIBRARY
Credit: LAGUNA DESIGN/SCIENCE PHOTO LIBRARY