Por que cinco dedos?
A pendactilía é a condição ancestral de todos os tetrápodes viventes e, embora sejam reportados indivíduos polidáctilos,não são conhecidas espécies de tetrápodes amniotas modernos com mais de cinco dedos; apesar da diminuição de dígitos ser bem conhecida em espécies de aves e em alguns mamíferos. Este fato sugere que este padrão deve ter se originado, muito provavelmente, antes da divergência entre os anfíbios (rãs, sapos, salamandras e cecílias) e os amniotas (que incluem sinapsídeos, como nós mamíferos, e sauropsídeos como as aves, crocodilianos, tartarugas e lagartos). Através do registro fóssil podemos estimar que esta separação ocorreu algo em torno de 340 milhões de anos atrás, ainda no carbonífero inferior.
Existem, porém, evidências (em camadas fósseis com cerca de 360 milhões de anos, portanto,antes que estas duas linhagens se separassem) de tetrápodes com membros que exibiam raias com seis, sete e até oito dígitos. A mudança desse padrão de dígitos poucos diferenciados e a redução para o arranjo mais familiar, com cinco dedos ou menos, ocorreu concomitantemente a evolução de pulsos e tornozelos mais complexos e sofisticados, i.e. com um maior número de ossículos e exibindo articulações complexas entre suas partes constituintes.
Michael Coates explica: “As primeiras experiências evolutivas em hexa ou octodactilia (isto é, criaturas que possuem seis ou oito dígitos) associavam-se com esqueletos dos membros bastante simples, muito parecidos como aqueles presentes nas nadadeiras de baleias e golfinhos modernos. Isso pode fornecer uma pista funcional sobre uma das razões para a redução do número de dígitos, que está relacionada com as exigências funcionais de um simples membros de "passeio". Ao contrário de nadadeiras, tais membros devem fornecer apoio em uma variedade de substratos, fornecem uma plataforma para eficientemente empurrar o chão e permitir certa rotação em relação aos ossos dos membros inferiores e superiores enquanto o resto do corpo locomove-se para a frente. Nos escarços exemplos de evolução secundaria de membros polidáctilos disponíveis no registro fóssil, o fenômeno está associado com táxons aquáticos. O exemplo clássico disso são as aletas dos ictiossauros [1], répteis marinhos extintos semelhante a peixes que viveram a mais de 65 milhões de anos atrás.” (Coates, 2005)
Apesar destes poucos exemplos se insinuarem, não existe realmente qualquer evidência de que cinco dedos, ao invés de seis, sejam biomecanicamente melhores e, por isso, tenham impulsionado a evolução do ancestral comum dos tetrápodes modernos. Também não existem boas evidências que três ou quatro também não o seriam. Entre outros motivos, porque várias linhagens de tetrápodes sofreram redução no número de dedos, ficando com menos de cinco. Essas constatações nos levam a indagar por que, enquanto a redução de dedos ocorreu várias vezes, muito raramente aconteceu o aumento do número de dedos. O mesmo pode ser dito da redução de outros ossos dos membros ou mesmo de membros inteiros como no caso de serpentes e lagartos ápodos.
Tal fato pode ser, parcialmente, explicado caso lancemos mão de uma regra evolutivo-desenvolvimental um tanto grosseira: "É mais fácil de se perder algo do que recuperá-lo." Mas mesmo assim isso seria bastante estranho, pois depois de centenas de milhões de anos talvez é de se estranhar que, mesmo com a extraordinária variedade de organismos vertebrados, nenhuma linhagem de amniotas tenha evoluído verdadeiramente seis dígitos. Pandas e toupeiras, por exemplo, evoluíram “dedos extras” a partir de processos como o remodelamento dos ossos do pulso, uma solução nada elegante, diga-se de passagem, principalmente se comparada ao possibilidade de crescimento de um dedo extra de verdade. Essa extraordinária ausência, na realidade, acaba sendo bastante reveladora e nos apontam fortemente para o fato de algum tipo de restrição genético-desenvolvimental mais persistente deva existir.
É possível, entretanto, produzir artificialmente o padrão de seis (ou mais) dígitos através de manipulação experimental do desenvolvimento de animais em laboratório. Alguns desses estudos manipulam especificamente a atividade de genes, provavelmente, relacionados as transformações envolvidas na transição evolutiva de nadadeira para membros. Estes trabalhos sugerem outra possibilidade para explicar a prevalência do padrão pentadáctilo, a pleiotropia. Muitos genes, através de seus produtos, têm múltiplos efeitos, agindo, muitas vezes, em mais de uma característica fenotípica.
Essa forte "inércia evolutiva", em relação ao aumento do número de dedos e outros elementos dos membros, possivelmente, poderia ser explicada pelo baixo nível de
modularidade no desenvolvimento destas estruturas. A dificuldade de se interferir no desenvolvimento dos dedos, sem interferir no desenvolvimento de outras estruturas, é ainda melhor ilustrada pelo próprio padrão de redução de estruturas dos membros que se desenvolvem, tipicamente, através de um processo de construção seguido por destruição, no qual ocorre a formação de um primórdio tecidual que depois regride. Além disso, evolutivamente é comum que o dedo reduzido seja o último a ser formado, indicando restrições temporais associadas ao processo de desenvolvimento embriológico.
Coates dá como exemplo a síndrome "mão-pé-genital", uma condição rara em que o trato genito-urinário e os membros são malformados. Entre os principais genes envolvidos nesta síndrome estão aqueles responsáveis pelo número e padronização dos dedos durante o desenvolvimento. A lição que podemos tirar desta síndrome é que a estabilidade do desenvolvimento, e da padronização das extremidades de nossos membros, depende dos mesmos mecanismos en
volvidos diretamente com o no nosso sucesso reprodutivo (Coates, 2001). Como Coates deixa bem
claro: “Mexa neles por sua conta e risco.”
Uma possível explicação seria que, nos amniotas, o desenvolvimento dos membros ocorre durante a chamada fase filotípica. De acordo com o "modelo da ampulheta" [2] esta fase, a mais conservada entre as diversas linhagens dentro de um grupo animal, se caracteriza por uma rede altamente complicada de sinais indutivos, incluindo a ativação de genes Hox. Esta rede de interações e miríade de processos que ocorrem durante esta fase é que seriam responsáveis pela conservação do padrão de organização corporal. Neste período, em particular, ocorrem muitas interações indutivas em que diferentes tecidos entram em contato entre si diretamente e através de sinais químicos. Como resultado deste imbricamento genético-desenvolvimental, as mudanças no desenvolvimento dos membros, normalmente, acabam por produzir alterações também em outras partes do corpo.
Em relação ao número de dedos é bom lem brar que apesar da ausência da evolução de linhagens polidáctilas a partir das pentadáctilas isso não é, claramente, uma evidência de ausência de variação hereditária para tal característica. A incidência de polidactilia, em nós seres humanos, deixa bem claro este fato, afetando entre 0,1 - 0,2% dos nascituros. Portanto, deve haver seleção contra mutações que causam a polidactilia ou outras formas de redução dos membros.
Mutações que alterassem o número de ossos dos membros provavelmente têm também muitos efeitos pleiotrópicos, interferindo com outros processos, sistemas e órgãos, reduzindo drasticamente a chance de que tais mutações fossem bem sucedidas, sendo, desta forma, purgadas pelo processo de seleção natural.
Outra linha de evidências que dá apoio a essa ideia é o fato de mutações em camundongos, galinhas e seres humanos que provocam alterações no número de dedos estão associadas com muitas anomalias graves nestas mesmas criaturas. Várias síndromes humanas têm a polidactilia como uma de suas manifestações características. Alguns exemplos são as síndromes de Ellis van Crefeld, Bardet-Biedl, as trissomias do pares 13 e 21 - a conhecida síndrome de Down (Galis, van Alphen e Metz, 2001).
Cerca de 15% dos bebês nascidos com um dedo extra, também possuem outras anomalias congênitas. O que ainda deixa, entretanto, 85% dos bebês com polidactilia sem nenhuma anomalia associada. Porém, estes resultados podem ser um pouco difíceis de interpretar por que problemas médicos mais tardios geralmente não são contabilizados, abrindo margem para a subestimação do fenômeno. Como complicação extra, essas síndromes, além de tudo, têm expressividade variável, o que acaba por interferir com uma avaliação objetiva de
anomalias associadas a mutações de polidactilia. O ideal é que estudos
de longevidade e fertilidade de pacientes fossem incluídos em estudos
genéticos das famílias com tais anomalias (Galis, van Alphen e Metz, 2001) .
Os mesmos autores, Galis, van Alphen e Metz (2001), citam os resultados de uma revisão sobre a redução de membros em seres humanos, onde os participantes são acompanhados e as anormalidades registradas a partir do nascimento, seguindo-se os pacientes por período de um ano. Este estudo revelou que 0,06% dos indivíduos apresentavam redução de algum membro ao nascerem. Destes, 12,9% possuíam outras anomalias associadas. Dezesseis porcento destes bebês morreram no primeiro ano e 4% das crianças com redução de membros, mas sem anomalias associadas, faleceram no mesmo período de tempo. Em contraste, a taxa de mortalidade infantil geral no primeiro ano de vida é de aproximadamente 0,8%.
Apesar dos viéses e limitações destas pesquisas, há fortes evidências da importância de efeitos negativos pleiotrópicos em aves e mamíferos. Por exemplo, em camundongos, a ocorrência de oligodactilia sempre esteve associada a efeitos pleiotrópicos, geralmente, no esqueleto apendicular e axial. A oligo- e polidactilia em galináceos também está ligada a outros problemas. Por exemplo, a seleção artificial contínua para polidactilia, nestas aves, leva a malformações do rádio. Também existem casos bem estabelecidos de polidactilia ocorrendo em várias raças de cães e com efeitos pleiotrópicos negativos, especialmente associada a alta mortalidade e baixa longevidade de raças como São Bernardo.
Como evidência adicional, em alguns tetrápodes não amniotas (como os anfíbios com larvas aquáticas), o desenvolvimento dos membros acontece posteriormente a fase filotípica o que, em teoria, liberaria, pelo menos parcialmente, o desenvolvimento dos membros da grande interatividade típica da fase filotípica. Nesses animais as restrições provocadas por efeitos pleiotrópicos e epistáticos deveriam ser bem mais fracas. Tal expectativa está em pleno acordo com a maior variabilidade no número de patas em anfíbios, inclusive com algumas espécies de sapos, ocasionalmente, possuindo seis dedos (apesar de um pouco de controvérsia sobre a identidade do prepollex e prehallux. Veja, para maiores esclarecimentos, Galis, van Alphen e Metz, 2001 ).
Assim, a baixa modularização (e portanto isolamento) das vias desenvolvimentais responsáveis pela produção dos dedos e membros pode ser a responsável pela pleiotropia negativa associada a polidactilia e outras mudanças no padrão dos membros. Então, apesar de não sabemos com exatidão o porquê de cinco dedos, o modelo de Lande e Wright (que haviam proposto este hipótese para o não aumento do número de membros em tetrápodes, estendido para o padrão pentadáctilo por Galis, van Alphen e Metz, 2001), de que a polidactilia e outras mudanças de padronização dos membros sejam limitadas por efeitos pleiotrópicos negativos parece ser a mais robusta.
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[1] Na realidade, apesar dos ictiossauros serem considerados os únicos tetrápodes a evoluírem “dedos verdadeiros” extras, muitos pesquisadores tem argumentado que as estruturas extras seriam de fato falanges supranumerárias saídas de um dos cinco dedos originais (Galis, van Alphen e Metz, 2001).(Galis, van Alphen e Metz, 2001).
[2] No chamado estágio (ou fase) filotípico os embriões não são idênticos, mas nesta fase é quando os embriões de animais do mesmo grupo (como vertebrados, por exemplo) mais se assemelham uns aos outros. Nos artrópodes, o estágio acontece após a gastrulação. Já nos cordados, o estágio é chamado de faríngula, começando com a neurulação e termina com a formação da maioria dos somitos (Galis, van Alphen e Metz, 2001). Esta fase é representada através do "modelo da ampulheta" [figura retirada de e] já que antes desse período existe variação em função de adaptações das fases iniciais dos embriões (especialmente em função do tipo de ovo) e depois, por causa do aparecimento de características tipicas de cada linhagem [a, b, c, d, e, f, g]
Referências:
Coates, Michael Why do most species have five digits on their hands and feet? (April 25, 2005) Ask the Experts. Acessado em 21/11/2011.
Galis, Frietson, van Alphen, Jacques J.M., Metz, Johan A.J. Why five fingers? Evolutionary constraints on digit numbers, Trends in Ecology & Evolution, Volume 16, Issue 11, 1 November 2001, Pages 637-646, ISSN 0169-5347, DOI: 10.1016/S0169-5347(01)02289-3.
Irie N, Kuratani S. Comparative transcriptome analysis reveals vertebrate phylotypic pe.... Nat Commun. 2011;2:248. PubMed PMID: 21427719.
Créditos das figuras:
SOVEREIGN, ISM /SCIENCE PHOTO LIBRARY
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PR. PHILIPPE VAGO, ISM/SCIENCE PHOTO LIBRARY
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Na realidade, apesar dos icitiossauros serem considerados os únicos tetrápodes a evoluírem “dedos verdadeiros” extras, muitos
pesquisadores tem argumentado que as estruturas extras seriam de fato
falanges supranumerárias saídas de um dos cinco dedos originais
(Galis, van Alphen e Metz, 2001).