Promiscuidade nas redes metabólicas de bactérias:
As enzimas, proteínas especializadas em catalizar reações químicas, que são os grande artífices do metabolismo, são tradicionalmente pensadas como moléculas altamente eficientes e precisas que evoluíram em organismos primitivos ancestrais de versões pouco eficientes para o atual estado de alta especificidade catalítica, tornando-se, via de regra, bem distintas de suas formas ancestrais mais remotas que deveriam ter sido bastante promíscuas em relação aos seus substratos e a sua eficiência em catalizá-los. Porém, já há algum tempo, muitos bioquímicos têm suspeitado que muitas das enzimas modernas são, na realidade, bem mais promíscuas do que normalmente se pensava, catalizando mais de uma reação química e ocupando um espaço menos central no metabolismo dos seres vivos [1].
Recentemente a ideia mais tradicional foi ainda mais fragilizada por um novo estudo realizado por cientistas da área de bioengenharia da Universidade da Califórnia, em San Diego, que reportaram seus achados em uma edição recente da revista Science. O time de pesquisadores, liderado por Bernhard Palsson, ‘professor Galetti’ de Bioengenharia, da Jacobs School of Engineering, na UCSD, abordarando a questão através da biologia de sistemas, conseguiu produzir um modelo em escala genômica de genes e enzimas relacionadas ao metabolismo da bactéria Escherichia coli, um dos mais tradicionais organismos-modelo, e chegaram a conclusão que, pelo menos, 37% das suas enzimas são, na realidade, promíscuas, catalisando diversas reações metabólicas ao invés de uma só bem específica e altamente controlada. Esta porcentagem, por sinal, está envolvida na catalise de cerca de 65% dos substratos metabólicos conhecidos [1, 2].
“Nós fomos capazes de ‘costurar’ todas as enzimas juntas em um modelo gigante, dando-nos uma visão holística do que estava dirigindo a evolução das enzimas, e descobrimos que ela não era o que nós pensamos que fosse”, disse Palsson. [2]
Porém, ainda não está claro porque estas enzimas generalistas permaneceram ao longo da evolução. Neste trabalho os cientistas avançam um pouco mais nesta questão e mostram que existem diferenças significativas entre enzimas generalistas e enzimas especializadas, conhecidas por catalisar uma reação química única envolvendo um determinado substrato in vivo [1, 2].
Enzimas que são empregadas mais extensivamente pelo organismo precisam ser mais eficientes a fim de evitar o desperdício. Portanto, faz sentido, do ponto de vista adaptativo, que estas enzimas evoluam para catalisar uma reação metabólica específica. Assim, as enzimas mais específicas estão frequentemente envolvidas em reações e vias essenciais,
Enzimas responsáveis por catalisar reações que são necessárias para o crescimento e sobrevivência celular e que são específicas têm uma maior demanda por evitar a interferência de moléculas que não sejam elas mesmas essenciais para o crescimento e sobrevivência celular. Portanto, essas enzimas geralmente mantém com mais precisão seu fluxo metabólico que, em geral, é maior do que as das mais promíscuas;
Como os organismos precisam adaptar-se a ambientes dinâmicos, molecularmente e termicamente ruidosos, é comum que seja necessário um controle mais cuidadoso da atividade de certas enzimas, a fim de evitar o desperdício de energia e de se preparar para as mudanças antecipadas de nutrientes. A evolução da maior especificidade torna este processo mais fácil.
Outro ponto importante é que estas propriedades parecem ser conservadas também entre os Archaea e Eukarya. Portanto, o que parece é que o contexto das redes metabólicas, e condições ambientais nas quais as enzimas estão inseridas, é que vão ser os fatores mais influentes na evolução enzimática e que podem ou não fazê-las aumentarem sua especificidade. O trabalho de Palsson e colaboradores mais uma vez deixa evidente a importância do contexto do organismo como um todo em relação a evolução de proteínas e enzimas individuais, uma vez que este processo é influenciado pelas funções das demais enzimas que atuam no metabolismo de um organismo, especialmente as envolvidas em processos que suportam a taxa de crescimento celular [1, 2].
“Nosso estudo descobriu que as funções de enzimas promíscuas ainda são usadas em células em crescimento, mas o ‘desleixo’ destas enzimas não é prejudicial ao crescimento. Elas são muito menos sensíveis a mudanças no ambiente e não tão necessárias para o crescimento celular eficiente “, disse Nathan Lewis, um dos autores do estudo, Doutor em Bioengenharia pela UCSD e agorapós-doutorando na Harvard Medical School. [2]“Este estudo lança luz sobre o grande número de enzimas promíscuas nos organismos vivos e muda o paradigma de pesquisa em bioquímica para um nível holístico”, [2]
“Os insights obtidos em nosso trabalho também mostram claramente que um refinado conhecimento pode ser obtido sobre proteínas individuais ao se usar modelos em grande escala.”[2]
“Os resultados de nossa equipe também poderiam informar outros esforços de pesquisa em enzimas que requerem maior estudo de atividades promíscuas desconsideradas”, disse Hojung Nam, primeiro autor do artigo, pesquisador pós-doutorando no laboratório de Palsson, e completou.[2]“Além de testar e caracterizar mais enzimas em relação as suas potenciais atividades promíscuas, a promiscuidade enzimática pode ter um amplo impacto na medida que os cientistas tentam entender como atividades promíscuas inesperadas de enzimas contribuem para doenças como a leucemia e tumores cerebrais”.[2]
Resumindo, duas mensagens merecem ser ressaltados deste estudo e que têm uma relevância direta para a evolução de sistemas integrados. O primeiro deles é que um certo nível de flexibilidade catalítica (e, portanto, de promiscuidade enzimática) parece não ser apenas tolerável como também parece ser mesmo condutiva à evolução futura, sendo diretamente importante para tópicos como a evolutibilidade dos sistemas biológicos. Essa promiscuidade oferece possibilidades de incrementos em funções correntes através do aumento da especificidade ou mesmo podem facilitar o surgimento de novas funções, já que a promiscuidade garante que funções anteriores não sejam imediatamente perdidas. A outra mensagem, que é muito importante, por sinal, é que as vantagens e desvantagens dos genes, especialmente daqueles cujos produtos protéicos estão envolvidos no metabolismo, são uma resultante não só das características específicas da molécula em si e do ambiente em que o organismo se insere, mas também do resto da rede metabólica da qual ela faz parte que, no caso de E. coli, parece ser bastante canalizada. Por causa disso, compreender este contexto organísmico mais amplo torna-se cada vez mais essencial para avançarmos em nossa compreensão da evolução biológica, mesmo em seu nível molecular, ressaltando o caráter multidisciplinar e integrado da biologia evolutiva.
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Literatura Citada e Recomendada:
Nam, H. , Lewis, N. E., Lerman, J. A., Lee, D.-H., D., Chang, R. L., Kim, D, Palsson, B. O. . Network Context and Selection in the Evolution to Enzyme Specificity. Science, 2012; 337 (6098): 1101 DOI: 10.1126/science.1216861
Hockmuth, Catherine Science study shows ‘promiscuous’ enzymes still prevalent in metabolism UC San Diego News Center General Health Science and Engineering; August 30, 2012 [link]
Grande abraço,
Rodrigo