Quem somos nós e como sabemos quem somos? Parte III
Voltando à série de posts sobre evolução humana inspirada no artigo publicado no BMC Biology em 2011, intitulado “Q&A: Who is H. sapiens really, and how do we know?” de Mason Liang e Rasmus Nielsen (Veja as partes I e II), concentramo-nos agora na terceira pergunta que concerne o impacto das últimas descobertas em genética humana e paleogenética sobre os modelos de origem dos seres humanos modernos.
“Como tudo isso se ajusta às teorias atuais sobre as origens humanas?”
Nas últimas décadas dois principais cenários, para explicar a origem das modernas populações da espécie humana, destacaram-se. A chamada hipótese 'Fora da África' ('Out of Africa' ou OOA) e a hipótese 'Multirregional'.
A primeira hipótese, OOA, postula que os ancestrais das populações de seres humanos anatomicamente modernos evoluíram originalmente em algum lugar da África, entre 150 000 e 200 000 anos atrás, a partir de onde migraram para fora da África, algo em torno de 60000 a 100000 anos atrás, deslocando-se para a Eurásia e substituindo outras populações humanas arcaicas de hominines, dando assim origem as diversas populações humanas modernas.
A hipótese multirregional, por outro lado, sugere que populações humanas arcaicas migraram e espalharam-se para fora da África muito antes das datas estimadas para os movimentos migratórios teorizados pelos defensores da OOA, evoluindo ao longo da Eurásia, mas sempre mantendo certo nível de miscigenação (fluxo gênico) com outras populações de outras regiões, como as da África, ao mesmo tempo que variavam em reposta ao desafios ecológicos e geográficos, por fim, dando origem as populações humanas modernas.
A partir do final dos anos 80, com os primeiros estudos mais amplos com o DNA mitocondrial de populações humanas modernas, a balança começa a pender para o modelo OOA. Um dos principais momentos de virada foi a publicação, em 1987, dos dados que levaram a postulação da chamada 'Eva mitocondrial' que marcaria o ponto de coalescência das mitocôndrias modernas que, de volta no tempo, convergiriam a uma mulher específica, que teria vivido em uma população humana ancestral, e que da qual todas as mitocôndrias modernas seriam derivadas*. Esta cenário foi também corroborado por estudos similares com o cromossomo Y que, de forma análoga as mitocôndrias que são herdadas pelas linhagens maternas, marcam 'patrilinagens' sendo herdados apenas pelos homens. Os cromossomos Y modernos, ao voltarmos ao passado, coalesceriam (Veja 'Coalescência') no chamado 'Adão do cromossomo Y', um indivíduo do sexo masculino particular que teria vivido em uma população humana - não na mesma época que a Eva mitocondrial, por sinal - do qual os cromossomos Y atuais seriam originários*.
Porém, mesmo antes dos estudos com os genomas dos Neandertais e Denisovanos, já haviam indícios que a história era um pouco diferente para os genomas nucleares autossômicos e para o cromossomo X que sofrem recombinação, o que faz com que diferentes porções tenham sua própria história e 'coalescem' em seus próprios pontos do tempo em indivíduos diferentes e de populações humanas potencialmente bem diferentes. Apesar desses dados ainda favorecerem uma origem majoritariamente Africana, já indicavam que certas porções deveriam ter se originado de miscigenação com outras populações humanas. Estudos como os de Jeffrey Wall** e de outros cientistas, com amostras de DNA de populações humanas modernas provenientes de diferentes fontes geográficas, já haviam sugerido que diferentemente do consenso que estava se formando, humanos anatomicamente modernos que evoluíram na África recentemente, haviam se miscigenado com populações de hominines arcaicos, como hoje parece claro para os Nandertais, Denisovanos, ou até mesmo Homo erectus.
Essas informações exigiram uma modificação do modelo OOA para que este pudesse aceitar certo nível de miscigenação, com seres humanos arcaicos 'introgredindo' em nosso 'pool gênico' moderno por meio de intercruzamentos com nossos ancestrais de origem Africana que teriam portanto guardado alguma variação genética típica desses outros seres humanos de outras populações, na África e Eurásia.

Figura 1. Origens humanas. Cada painel apresenta uma hipótese para a história evolutiva dos seres humanos. As barras coloridas mostram as relações filogenéticas entre as espécies, com cada cor representando uma espécie e azul representando a espécie de hominídeos ancestrais. As setas representam o fluxo de genes, ou da miscigenação, com pontos de interrogação para indicar mistura possível de hominídeos ainda não descobertos. (a) A hipótese 'Fora da África' (OOA), (b) a hipótese 'Multirregional', (c) uma modificação da hipótese OOA para incluir a mistura arcaico inferida a partir de trabalho recente. [BMC Biology 2011, 9:20 doi:10.1186/1741-7007-9-20]
Para mais detalhes sobre o cenário OOA modificado e como os diversos dados de diversidade genética de populações modernas humanas (e Paleogenéticos) levaram a esta conclusão, indicamos o vídeo de uma conferência, na Universidade do Arizona sobre o assunto, de uma palestra ministrada por Michael Hammer.
Ao empregarmos múltiplos métodos genéticos, matemático-computaconais e comparativos anatômicos lançamos um pouco mais de luz sobre a história de nossa linhagem e assim aprendemos um pouco mais sobre nós mesmos. Ainda que existam controvérsias pontuais sobre a precisa estrutura de parentesco humana, e talvez jamais tenhamos um conhecimento mais preciso sobre muitos de seus detalhes, é inegável que existe uma estrutura clara de parentesco, uma árvore filogenética, que nos liga aos outros hominines e aos demais primatas, mamíferos, animais, eucariontes e procariontes. Portanto, embora muitas vezes seja difícil sabermos com mais confiança de quem somos 'irmãos', 'primos-irmãos', primos mais distantes, 'sobrinhos' e 'sobrinhos netos' (quem dirá sabermos de quem somos 'filhos' e 'netos' e 'bisnetos', em sentido evolutivo) sabemos que somos todos parentes e temos uma ideia cada vez melhor de quão próximos estamos dos demais seres vivos.
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* No vídeo de Hammer isso fica bem claro, mas é importante ressaltar que tanto a Eva mitocondrial como o Adão Y não são contemporâneos (portanto não são um casal primordial), tendo vivido dezenas de milhares de anos da época um do outro, além de não serem os únicos humanos nas épocas em que viveram, sendo assim parte de populações humanas mais amplas. O que acontece e que dado a natureza do processo reprodutivo e dos fatores estocásticos (como as mutações e especialmente a deriva genética aleatória) que nele estão envolvidos, a maioria das mitocôndrias dos indivíduos e dos cromossomos Y, que são herdados respectivamente 'matri e patrilinearmente' (com o cromossomo Y sendo herdado exclusivamente pelos homens), são perdidas por que caso uma mulher tenha só filhos ou só netos e um homem só filhas e só netas, os genes que encontram-se nessas estruturas não serão representados na próxima geração. Estes indivíduos (a 'Eva mitoncondrial' e o 'Adão do cromossomo Y') são chamados de 'ancestrais comuns mais recentes' ou ACMRs; e o ‘ancestral comum mais recente’ (ACMR) de qualquer conjunto de organismos (ou indivíduos dentro de uma espécie) é o indivíduo mais recente a partir do qual todos os organismos do grupo em questão são descendentes diretos. Mas é importante ressaltar que, além dos ACMR do cromossomo Y e das mitocôndrias, existem ACMRs para cada trecho dos demais cromossomos, diferindo não só em função da região como em função do tamanho do trecho, com proporções menores (em que há menos recombinação) coalescendo em um passado mais remoto. Por isso existem vários ACMRs para cada uma das diferentes porções genômicas existentes nas populações modernas.

Acima um esquema mostrando a evolução de haplogrupos do DNA mitocondrial para ACMR [Data: 8 de março de 2012; Fonte: TiGen, Autor: C. Rottensteiner; Disponível wikicommons]
**Os trabalhos de Wall e Hammer (2006) basearam-se na análise do padrão de comprimentos de haplótipos, controlando para outros fatores confundidores, como a história demográfica e variação da taxa de recombinação. Esses resultados os levaram a concluir que os comprimentos observados dessas regiões só poderiam ser explicados pela mistura arcaica da ordem de 5%, o que tem sido corroborado pelas evidências de miscigenação de populações humanas modernas ancestrais com Neandertais e Denisovanos a partir das análises do seus DNAs nucleares.
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Referências:
Liang M, Nielsen R. Q&A: who is H. sapiens really, and how do we know? BMC Biol. 2011 Mar 31;9:20. PubMed PMID: 21453556; PubMed Central PMCID: PMC3068989.
Wall J, Hammer M: Archaic admixture in the human genome. Curr Opinin Genet Dev 2006, 16:606-610.
Cann, RL; Stoneking, M; Wilson, AC (1987), "Mitochondrial DNA and human evolution", Nature 325 (6099): 31–6, doi:10.1038/325031a0, PMID 3025745
Lewin R. The unmasking of mitochondrial Eve. Science. 1987 Oct 2;238(4823):24-6. PubMed PMID: 3116666. [Link]
Gibbons A. Y chromosome shows that Adam was African. Science. 1997 Oct 31;278(5339):804-5. PubMed PMID: 9381191.
Thomson R, Pritchard JK, Shen P, Oefner PJ, Feldman MW. Recent common ancestry of human Y chromosomes: evidence from DNA sequence data. Proc Natl Acad Sci U S A. 2000 Jun 20;97(13):7360-5. PubMed PMID: 10861004; PubMed Central PMCID: PMC16550. [Link]
Créditos das Figuras: