Reajustando e recalibrando o relógio da evolução humana
Sem dívida, um dos maiores desafios dos pesquisadores que trabalham com genética evolutiva é estimar, com maior precisão, quando, certos eventos evolutivos considerados importantes na história da vida, devem ter ocorrido. Na história da evolução humana um desses marcos ocorreu quando parte de nossos ancestrais deixaram o continente Africano e começaram sua expansão pelo resto do mundo. Rastrear estes primeiros passos e datá-los não é algo simples e exatamente fácil, embora vários métodos e estratégias tenham sido desenvolvidas nas últimas décadas. Uma das formas de produzir estas estimativas é usando os chamados 'relógios moleculares' que tradicionalmente são calibrados através de fósseis bem datados de hominídeos, mas este método tem lá seus problemas, como a eventual falta de fósseis de parentes mais próximos durante os eventos que devem ser datados, além de termos que presumir que os primeiros fósseis disponíveis de uma determinada linhagem marcariam o surgimento da mesma, o que simplesmente não parece ser verdade em muitos casos. Contudo, mais recentemente, essas calibragens tem sido feitas a partir do cálculo das taxas de mutações basedaos na frequencia de novas mutações em genomas de organismos recentes, inclusive seres humanos [1].
Os modernos métodos de sequenciamento de alta performance têm permitido aos geneticistas sequenciarem uma quantidade de genomas completos em pouquíssimo tempo, o que lhes permite calcular diretamente o número de mutações, em um grande número de famílias, que diferenciam trios de indivíduos relacionados, o pai, a mãe, e um de seus filhos. Nos últimos três anos os resultados de oito estudos, que foram revisados por Aylwyn Scally e Richard Durbin em um artigo da revista Nature Reviews Genetics, permitiram aos autores estimarem uma taxa bem mais lenta de mutação do que a obtida empregando-se os métodos anteriores, de acordo com Gibbons [3]. Um destes estudos, publicado em agosto do ano passado, em que os genomas completos de 78 trios de pais e crianças islandeses, permituoiu, a partir de medidas diretas, estimar a taxa de mutação em populações humanas. Este estudo mostrou que, em média, cada recém-nascido carrega 36 novas mutações espontâneas, ou seja, que não são herdadas de nenhum dos pais, as chamadas mutações de novo [2].
Na figura ao lado: O relógio molecular foi reajustado através de DNA antigo coletado entre outras fontes de três humanos enterrados há 31 mil anos, em Dolni Vestonice, na República Checa, de dois esqueletos enterrados há 14 mil anos, em Oberkassel, na Alemanha (vistos no detalhe). [Crédito: S. Svoboda; (no detalhe) J. Vogel/LVR-Landes Museum, Bonn; retirado de e traduzido de [1]]
Porém, talvez o mais impressionante, foi o fato de todos estes estudos chegarem mais ou menos a mesma estimativa da taxa de mutação humana, algo em torno de 1,2 ×10 -8 mutações por geração em qualquer sitio de nucleotídeo, o que daria cerca de uma em 2,4 bilhões mutações por sítio por ano, supondo-se um tempo médio de geração de 29 anos, o que é menos da metade das taxas de mutação estimadas a partir da calibração por fósseis [2].
Este relógio molecular empurrou para trás no tempo várias datas importantes, como a separação entre as linhagens dos seres humanos e dos chimpanzés e o êxodo dos humanos modernos da África, com uma das estimativas para a grande última migração para fora da África, que era de menos de 80.000 anos atrás, passando a ser algo entre 90.000 e 130.000 anos atrás, como explicado por Ann Gibbons para o Science Now [1].
Contudo, talvez estas estimativas não estejam muito corretas, como vários autores têm defendido, quando extrapoladas para tão longe no passado e os velhos métodos não estivessem tão incorretos assim. Agora, um novo estudo, empregando uma nova e promissora metodologia, revisou mais uma vez estas datas e promete colocar em patamares ainda mais rígidos as estratégias de calibração dos relógios moleculares. Vários cientistas em artigo de autoria de Fu e colaboradores [3], usando o DNA mitocondrial antigo - de um indivíduo congelado, Ötzi, o famoso Homem de Gelo (reconstruído à esquerda), de amostras coletadas de restos humanos mais modernos e de fósseis humanos ainda mais antigos, para realizar estas datações - estimaram, este mesmo evento, o êxodo Africano, como tendo ocorrido, no máximo, cerca de 95 mil anos atrás , e, talvez mesmo, há apenas 62 mil anos [1].
Johannes Krause, geneticista evolutivo da Universidade de Tübingen, na Alemanha, líder da equipe, e vários colegas resolveram sequenciar o DNA das mitocôndrias (mtDNA) - pequenas organelas típicas dos eucariontes e que são herdada de nossas mães - de restos mortais e fósseis de seres humanos modernos que viveram nos últimos 40 mil anos e que haviam sido datados de maneira confiável por métodos como oradiocarbono, como forma de calibrar o seu relógio molecular. O princípio é o seguinte, caso a idade do fóssil for de 40.000 anos, por exemplo, estaria faltando 40 mil anos de evolução, que teria tido lugar na linhagem entre aquelas pessoas e uma pessoa vivente, o qur quer dizer que haveriam mutações faltando no genoma antigo que seriam aquelas que teriam surgido durante o tempo desde que o ser humano fossilizado morreu e que agora estão presentes em nós [1].
Com base neste princípio, os pesquisadores analisaram 10 restos humanos e de fósseis bem datados, entre os quais estavam um homem medieval, que viveu na França há 700 anos, o já referido homem de gelo, de 4.550 anos de idade; dois fósseis de seres humanos de 14.000 anos de idade, encontrados em túmulos em Oberkassel, na Alemanha; três seres humanos modernos aparentados de 31 mil anos atrás, encontrados em Dolni Vestonice, na República Checa, além de humanos modernos bem antigos de cerca de 40 mil ano, encontrados, em Tianyuan, na China. Ao aplicarem as taxas de mutação do DNA antigo para estimarem a data da migração para fora da África, obtiveram como resultado que este evento deve ter se dado entre 62.000 e 95.000 anos atrás (o que é quase metade do que havia sido calculado pelo método usando taxas de mutações determinadas de novo, a partir de humanos atuais), evento que marcaria a separação dos não-Africanos dos Africanos subsaarianos do 'haplogrupo L3', o mais intimamente relacionado com os não-Africanos [3].
As novas estimativas encaixam-se bem melhor com as evidências dos fósseis e dos dados arqueológicos, como as referentes as ferramentas de pedra, do que com as estimativas de datas mais antigas anteriores para os mesmos eventos usando-se as estimativas de novo [1, 3].
"A coisa boa sobre isso é que era semelhante as evidências arqueológicas", diz Krause [1].
O método usado pela equipe de cientistas para verificar a taxa de mutação foi elogiado mesmo por Aylwyn Scally, geneticista do Instituto Wellcome Trust Sanger, em Hinxton, Reino Unido, co-autor do artigo que havia calculado uma taxa mais lenta mutação em seres humanos vivos e empurrado o êxodo Africano mais para o passado:
"É excelente que eles foram capazes de obter uma base melhor para calibrar a taxa de mutação do mtDNA, olhando DNA antigo." [1]
O estudo, entretanto, não deixou de receber críticas. Por exemplo, o próprio Scally, enfatizou que o mtDNA representa apenas uma única linhagem genética, que aliás nem é típica do genoma nuclear com uma taxa de mutação mais alta e com uma maior proporção de genes sob a seleção do que ocorre no genoma nuclear. O próprio Krause, bem como o conhecido paleogeneticista Svante Pääbo, do Instituto Max Planck de Antropologia Evolutiva em Leipzig, Alemanha (coautor do estudo), concordam que é necessário muito mais trabalho para resolver as diferenças entre as taxas de mutação do mtDNA e dos genomas nucleares.
"É possível que hajam coisas que não entendemos sobre a herança mitocondrial e seus padrões de mutação", disse Pääbo [1].
A questão é ainda mais complicada pois o problema também poder ser fruto dos pesquisdires terem subestimado o número de mutações nucleares em seres humanos vivos. Afinal de contas é bastante fácil perder alguma coisa quando estamos falando em cerca de 30 ou 50 novas mutações em um total de 3.200.000.000 de bases no recém-nascido do genoma. Segundo Krause, os métodos de sequenciamento correntes ao realizar estas contagens estão no limite das suas capacidades de distinguir mutações verdadeiras de erros de sequenciamento, podendo jogar dados reais fora [1].
"O caminho a seguir é realmente dominar o sequenciamento de genomas nucleares de forma precisa", disse Pääbo [1].
Na figura abaixo podemos ver uma árvore para os mtDNAs dos 54 humanos atuais, 10 seres humanos modernos antigos, e 7 seres humanos arcaicos. A filogenia, que pode ser vista no painel superior, foi construída utilizando o método de 'Máxima Parcimônia' e foi enraizada usando-se o enraizamento pelo ponto médio. Os ramos para os seres humanos de hoje em dia não terminam todos no mesmo ponto, indicando a incerteza inerente às medidas de tempo com base no DNA mitocondrial, devido a limitação da extensão dessas sequências. No entanto, o encurtamento consistente dos ramos dos seres humanos mais antigos, em relação ao seus parentes humanos atuais mais próximos, é evidente na figura e é a base da calibração do relógio molecular usado pelo grupo de Krause. As amostras antigas pré e pós-neolíticas são indicadas por círculos vermelhos e azuis, respectivamente, e os quadrados coloridos mostram a origem geográfica dos 54 seres humanos atuais cujas amostras de mtDNA foram co-analisadas, com as amostras de seres humanos antigos, pelo trabalho de Fu e colaboradores [3]. As estimativas para as datas dos eventos mais importantes de divergência entre populações Africanas e não-Africanas são mostradas nos nós da filogenia; e no painel inferior é mostrado um mapa em que são destacadas as origens geográficas das amostras (Fu, et al., [3])
De acordo com Krause, isso é fundamental, já que uma melhor noção dos tempos envolvidos na evolução humana é crucial para conseguirmos compreender em maior detalhe diversos eventos importantes. Por exemplo, também de acordo com Krause, como relatado no artigo de Gibbons [1], saber quando os seres humanos modernos se espalharam para fora da África, permitiiu aos cientistas responsáveis pelo artigo mostrarem que os seres humanos modernos eram os mesmos na Europa antes e depois das geleiras terem coberto o continente e, portanto, puderam concluir que essas populações tiveram a capacidade de adaptar-se a esta drástica mudança climática [1]. Os cientistas conseguiram chegar a esta conclusão ao descobrir que os seres humanos modernos que viveram na Europa, antes e depois da última idade do gelo, compartilhavam a mesma linhagem de mtDNA, o que os descendentes diretos um dos outros [1].
"O 'fora da África' é um dos principais eventos dentro da evolução humana", diz Krause[1].
"Nós precisamos saber quando isso aconteceu.", complementa o cientista [1].
Os autores também enfatizam que, seguindo as críticas de Scally, embora loci únicos, como os representados pelo mtDNA, realmente forneçam estimativas tendenciosas dos tempos de divergência entre as populações, eles, ainda assim, podem fornecer limites superiores válidos e, neste caso, já serviriam para excluir as datas mais antigas para as divergências populações africanas e não-africanas que foram recentemente sugeridas por métodos baseados em taxa de mutação de novo obtidas para o genoma nuclear [3].
Este trabalho ilustra outra característica importante das ciências. Mesmo que não possamos deixar de fazer certas pressuposições, sempre que possível devemos testá-las e comparar nossas conclusões e estimativas obtidas a partir delas com as obtidas a partir de outras pressuposições e por outros métodos de modo a avaliar a robustez das mesmas. Só assim avançamos e podemos passar a conclusões mais sólidas e precisas. Os métodos apresentados, as questões que surgem a partir de sua implemetação e a discussão de suas limitações são, portanto, mais uma exemplo do que tornam as ciências essas empreitadas dinâmicas e críticas, em constante revisão, em que as investigações não possuem um fim. A possibilidade de usarmos os dois novos métodos, o de novo e o basedo em sequenciamento de restos de organismos antigos e extraídos de fósseis bem datados, além da resolução das inconsistência entre ambos, oferece oportunidades de tornar o processo de estimação de datas de eventos evolutivos importantes muito mais preciso e confiável.
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Referências:
Gibbons, Ann Clocking the Human Exodus Out of Africa Science Now, published on 21 March 2013.
Gibbons A. Human evolution. Turning back the clock: slowing the pace of prehistory. Science. 2012 Oct 12;338(6104):189-91. doi: 10.1126/science.338.6104.189. PubMed PMID: 23066056. DOI: 10.1126/science.338.6104.189 [pdf]
Fu, Qiaomei; Mittnik, Alissa; Johnson, Philip L.F.; Bos, Kirsten; Lari, Martina; Bollongino, Ruth; Sun, Chengkai; Giemsch, Liane; Schmitz, Ralf; Burger, Joachim; Ronchitelli, Anna Maria; Martini, Fabio; Cremonesi, RenataG.; Svoboda, JiY ; Bauer, Peter; Caramelli, David; Castellano, Sergi; Reich, David; Paabo, Svante; Krause, Johannes A Revised Timescale for Human Evolution Based on Ancient Mitochondrial Genomes Current biology, 21 March 2013 doi:10.1016/j.cub.2013.02.044
Credito das figuras:
VOLKER STEGER/SCIENCE PHOTO LIBRARY
P.PLAILLY/E.DAYNES/SCIENCE PHOTO LIBRARY
JEAN-FRANCOIS PODEVIN/SCIENCE PHOTO LIBRARY