Recontruindo dentes de roedores ancestrais em laboratório.
Cientistas das Universidade de Helsinque e da Universidade Autônoma de Barcelona (além de instituições na Austrália, China e Estados Unidos) conseguiram reproduzir em laboratório certos tipos de alterações morfológicas, que ocorreram ao longo de milhões de anos, na dentição de mamíferos. Eles fizeram isso empregando culturas de células derivadas dos primórdios dentários (explantes dentais) de animais que não expressavam um gene específico - ou seja, que possuíam uma 'mutação nula', que é um tipo de mutação de 'perda de função'. Este gene codifica uma proteína chamada de ectodisplasina A [EDA, veja ao lado um modelo da proteína: PDB 1rj7] [1], que faz é parte de uma via de sinalização intercelular importante, estando envolvida nas interações entre o ectoderma e o mesoderma, duas camadas de células embrionárias que ao longo de desenvolvimento dão origem a muitos dos órgãos e tecidos dos vertebrados. Estas interações são particularmente importantes na formação de várias estruturas derivadas do ectoderma como glândulas sudoríparas, cabelo, unhas e dentes.
Ao lado uma micrografia eletrônica de varredura dos molares de um camundngo (Mus musculus). A coroa de cada molar (branco) começa a se desenvolver por volta do 110 de gestação no útero materno, com a raiz começando a crescer a partir da coroa no momento do nascimento. [Crédito: STEVE GSCHMEISSNER/Science Photo Library]
Variando a concentração da proteína EDA (e em certo momento inibindo a ação de uma outra proteína, a SHH, usando um antagonista desta molécula), os pesquisadores obtiveram uma série de padrões dentais, desde os mais simples, até os mais complexos, passando por alguns padrões típicos de espécies de mamíferos já extintas, reconstruindo assim 'estados de caráter ancestrais', para usar o jargão dos biólogos evolutivo [1, 2].
“Os pesquisadores observaram que os dentes formam-se com diferentes graus de complexidade em sua coroa. As mudanças mais primitivas observadas coincidem com as que tiveram lugar em animais do período Triássico, cerca de duzentos milhões de anos atrás. O desenvolvimento de padrões mais posteriores coincide com os diferentes estágios de evolução encontrados nos roedores que se extinguiram, já no Paleoceno, cerca de 60 milhões de anos atrás. Os pesquisadores, portanto, conseguiram experimentalmente reproduzir as transições observadas no registro fóssil dos dentes de mamíferos.” [1]
No artigo publicado na revista Nature, a equipe de pesquisadores também comparou seus resultados experimentais aos resultados obtidos com modelos computacionais do desenvolvimento dental, construídos por um dos autores do artigo, Isaac Salazar-Ciudad, da UAB. Estes modelos foram bem sucedidos ao replicar a forma como os dentes mudam ao longo do desenvolvimento, começando como um simples e homogêneo grupo de células até adquirir a complexa e característica estrutura tridimensional de um dente molar; sendo o modelo capaz, inclusive, de prever as mudanças em várias características do dente (como o espaçamento entre as cúspides) quando o gene é alterado.
Esses resultados mostram que muitas das etapas das transições morfológicas observadas nos dentes de mamíferos através do registro fóssil são, de fato, reprodutíveis experimentalmente. Isso também sugere que várias, senão a maioria, das características morfológicas analisadas estão desenvolvimentalmente interligadas [2]. Porém, essas características individuais (como número, tamanho e espaçamento entre as cúspides) ao mesmo tempo parecem responder a diferentes níveis do mesmo sinal molecular [1, 2] de maneira distinta, o que provavelmente permitiu alcançar um padrão de alteração incremental ao longo da evolução.
Acima podemos observar na parte superior da figura (em A) o padrão de culturas de tecido dental (portadores de uma mutação nula para EDA) cultivados conjuntamente com antagonista para a proteína SHH . Ali é mostrado o aumento do número e maior separação das cúspides com o passar dos dias. Logo abaixo, em B, temos a comparação dos segundos molares (produzidos por células que não expressam a proteína EDA) com os segundos molares produzidos quando os mesmos tipos de células recebem o inibidor da proteína SHH [abaixo um modelo da proteína, PDB 1vhh], que exibem uma melhor separação entre as cúspides. Do lado direito, vemos o padrão dental de camundongos sem a mutação nula e, logo abaixo, o padrão de Tribosphenomys minutus no qual faltam cristas que ligam cúspides. Por fim, em C, temos uma visão posterior obliqua dos molares que mostram a ausência da crista metalófida (setas) nas células nulas para Eda, mas que estão presentes nas culturas tratadas com inibidor de SHH, cujo tratamento acaba por replicar a morfologia ancestral de T. minutus. Os dentes de Tribosphenomys mostrados são os primeiros (V10776, à esquerda) e os segundos molares (V10775 holotipo, à direita). Todos os dentes mostrados foram espelhados quando necessário para representarem o lado esquerdo. A região anterior está voltada para a esquerda em A e B e no topo em C. As barras da escala indicam 500 um [1].
Uma das principais dificuldades para entendermos a evolução dos organismos multicelulares, como os animais, é exatamente a interdependência entre características morfológicas que, muitas vezes, interferem substancialmente em nossa compreensão dos processos evolutivos subjacentes e de suas etapas. Contudo, trabalhos em evo-devo (e em biologia computacional) como este permitem compreendermos melhor as bases do desenvolvimento embriológico por trás dessa interdependência entre características morfológicas e ajudam a avançar nossa compreensão das transições evolutivas e de como pequenas modificações genéticas resultaram nas mudanças registradas nos fósseis [1, 2]
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Referências:
Scientists Reproduce Evolutionary Changes by Manipulating Embryonic Development of Mice, Universitat Autònoma de Barcelona, 30 July, 2014.
Harjunmaa, E, Seidel, K, Häkkinen, T, Renvoisé, E, Corfe, I.J., Kallonen, A, Zhang, Zhao-Qun, Evans, A. R., Mikkola, M.L, Salazar-Ciudad, I., Klein, O.D., Jernvall, J. Replaying evolutionary transitions from the dental fossil record. Nature, 2014; DOI: 10.1038/nature13613