Respondendo
“Gostaria de saber qual foi o impacto da elaboração e confecção de ferramentas/instrumentos/armas para a evolução humana…”
“Gostaria de saber um pouco mais sobre a importância da produção de instrumentos/ferramentas e o impacto disso na evolução da cognição humana…”
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A criação e utilização de ferramentas é uma das principais características humanas e mesmo que não seja uma exclusividade nossa, o grau de refinamento e dependência que temos delas é realmente sem precedentes conhecidos entre os animais. Aprender a usá-las e fazê-las envolve modificações nos circuitos dos nossos cérebros oriundas do aprendizado que se dão por meio muitas vezes de interação social complexa e nos permitem expandir nosso domínio sensório-motor e ‘projetarmos além de nós mesmos’. Só isso já nos dá uma amostra da importância das ferramentas e da sua construção para nossa espécie e aponta para sua relevância para nossa evolução. Com elas conseguimos nos vestir, construir abrigos e através delas entramos em outro mundo dietário, já que nos possibilitaram comer a carne de presas grandes, e mais tarde seu cozimento e ainda mais tarde nos possibilitou executar, planejar e estocar colheitas, além de criar e utilizar animais domésticos.
Como a evolução cultural e tecnológica tende a ser bem mais rápida do que a evolução biológica é bem possível que o uso e confecção de ferramentas tenha acelerado, retardado ou mudado de direção a evolução da várias características biológicas que dependiam dos contextos socioambientais afetados pelas ferramentas e pelo aprendizado de seu uso.
Simplificando bastante a questão, existiriam duas formas de encarar o impacto do uso de ferramentas na cognição humana ao longo da evolução. Na primeira forma de encarar, a liberação das mãos a partir da adoção da postura bípede seria o fato crucial que teria permitido aos hominines mais antigos começarem a usar ferramentas mais complexas o que teria possibilitado a eles usarem-nas na caça, construção e em outras atividades que demandariam maior controle motor e cooperação social, o que, por sua vez, serviria de pressão socioecológica para a evolução de cérebros maiores e complexos tanto por que assim poderiam usar de forma mais coordenada as ferramentas com interagir de maneira mais adequada inclusive ensinando o uso de utensílios, descobrindo novas aplicações etc. Portanto, o uso de ferramentas teria alavancado a evolução da complexidade dos cérebros em várias linhagens de hominines, especialmente na que levou a nossa.

O outro cenário, porém, advoga que antes que a utilização de ferramentas pudesse realmente impactar a evolução sociocognitiva humana seria preciso que já houvesse um cérebro relativamente complexo que uma vez existente, aí sim, poderia se beneficiar das habilidades extras conferidas pelas ferramentas. Nesta caso as ferramentas mais complexas seriam mais um refelxo e uma projeção de habilidades cognitivas prévias, mas em ambos os casos as ferramentas têm um papel importante pois o tipo de coisas que podemos fazer com elas modificaram as pressões socioculturais que por sua vez moldam o contexto evolutivo de nossa linhagem, diferindo em quão direta e gradativa teria sido essa contribuição.
Existem duas linhas de evidência que tendem a favorecer a segunda visão ou pelo menos alguma forma bem mais complicada da primeira hipótese coevolutiva. A primeira envolve o registro fóssil e advém do fato dos hominines terem permanecido com cérebros pequenos durante milhões de anos, mesmo após o advento do bipedalismo e da utilização de ferramentas, com as culturas mais complexas e ricas em termos de habilidades na confecção de ferramentas vindo bem mais tarde. Veja este trecho traduzido de um artigo do antropologistaRicherson, Boyd e Henrich,no PNAS, sobre o modelo mais simples para o primeiro cenário coevolutivo, como proposto por Sherwood Washburn, ainda na década de 60:
“Washburn especulou que um processo de co-evolução foi iniciado pelo desenvolvimento das tradições de construção de ferramentas de pedra simples. O uso de ferramentas teria criado ambientes que favoreceriam a especialização das mãos para fabricação de ferramentas, levando a postura ereta. Conforme as mãos tornaram-se mais especializadas para fabricação de ferramentas, a seleção favoreceria cérebros maiores, incluindo a destreza manual melhorada para manipulações refinadas, que iriam servir de base para tradições de ferramentas mais complexas. Essa hipótese não é correta, pelo menos não na forma simples que Washburn havia proposto. Australopitecos eram bípedes por vários milhões de anos sem qualquer evidência de cérebro de tamanho ou aumento do uso de ferramentas. Muitos cenários plausíveis sobre a evolução humana no Plio-Pleistoceno foram propostos. A maioria destes são difíceis de testar usando esqueletos e evidências de ferramentas de pedra sozinhas.”
Embora a ideia que a capacidade de aprendizado principalmente social e da cultura como um todo tenha um grande impacto na evolução biológica tenha nos trazido insigths importantes e esteja motivando muitos trabalhos nesta área - como os sobre a influência da agricultura e da pecuária na evolução da tolerância a lactose, assim com o aumento do número de cópias do gene da amilase e sua variação -, precisamos ficar atentos para as dificuldades em testar certos cenários com os tipos de evidências disponíveis, pois nem sempre é fácil refutar uma hipótese como a versão de Washburn para o primeiro cenário que comentei.
O registro paleoantropológico infelizmente deixa a desejar em vários aspectos, sendo muito deficiente, como é típico do registro fóssil de modo geral. Muitas formas de tecnologia são apenas muito raramente preservadas, especialmente as feitas de madeira, bem como aqueles feitas de fibras orgânicas e couro, apesar dos padrões de uso e desgaste das ferramentas de pedra sugerirem que algumas delas eram usadas para fazer esses produtos também. Os autores do artigo do PNAS dão o exemplo de uma achado muito raro: três sofisticadas lanças aerodinâmicas de madeira encontradas em um depósito anaeróbia na Alemanha datado de 400 mil anos atrás, o que nos deve alertar para não confiarmos demais apenas em artefatos de pedra para analisarmos a sofisticação técnica das linhagens de seres humanos arcaicos.
Dito isso, embora as evidências de construção de ferramentas de pedra grosseiras por ancestrais humanos datem de 2,5 milhões - e provavelmente dependeram da evolução do bipedalismo, sem o qual este tipo de tarefa não seria possível-, alguns pesquisadores, entre eles John Hoffecke, afirmam que os primeiros vislumbres de um tipo de cognição social mais abstrata e compartilhada teria se dado por volta de 1,6 milhões de anos atrás, quando os primeiros seres humanos começaram a elaborar machados de pedra, considerados por Hoffecker e outros pesquisadores uma das primeiras representações externas de um pensamento interno [Para mais veja aqui]. Isso nos leva a nosso segundo conjunto de evidências que tendem a favorecer a segunda ideia.

A segunda linha de evidências baseia-se em estudos mais modernos que combinam neurociência, biomecânica e processamento computadorizado aplicados aos métodos de arqueologia experimental em que cientistas buscam reconstituir as técnicas de construção e uso de ferramentas pré-históricas. Os cientistas responsáveis pelo estudo publicado da revista PloS ONE em 2010, Aldo Faisal, Dietrich Stout, Jan Apel e Bruce Bradley, usaram uma luva de sensores especialmente projetada para a coleta e registro de dados da utilização das mãos, especialmente dos ângulos articulares, e a colocaram em um construtor de ferramentas experimental moderno (um dos próprios autores do trabalho, Bruce Bradley), analisando os dados de suas tentativas de replicar técnicas de construção de ferramentas antigas, a fim de caracterizar e comparar a complexidade de manipulação das duas grandes tecnologias do Paleolítico inferior: Oldowaniana e Acheuliana. Os autores usaram uma métrica especial para calcular a complexidade comportamental com base nas estatísticas dos movimentos articulares.
Assim, foi possível constatar que as diferenças anteriormente observadas na ativação do cérebro associadas as tecnologias Oldowanianas vs tecnologias Acheulianas refletiam realmente alto nível da organização comportamental ao invés de diferenças de baixo nível na complexidade de manipulação. Os estudos anteriores de 2008 já haviam mostrado a necessidade de maior coordenação visuomotora e de uma mais eficaz organização hierárquica para a confecção das formas mais avançadas de ferramentas, o que incluiu um aumento da ativação da região pré-motora ventral e dos elementos parietais inferiores dos circuitos de práxis parietofrontal em ambos os hemisférios e, no hemisfério direito homólogo, na área de Broca.

Os pesquisadores enfatizam que tais resultados são consistentes com a hipótese de que os primeiros estágios da evolução tecnológica humana dependeram mais de novas capacidades perceptomotoras, como o controle da rigidez articular, enquanto desenvolvimentos subsequentes mais tardios, como a construção de machados, aos poucos foram dependendo mais e mais de mecanismos mais complexos e sofisticados de controle cognitivo, sugerindo até mesmo conexões entre a excelência no uso de ferramentas e a evolução da linguagem.
Os padrões de ativação neural observados no estudo de 2008 mostravam sobreposição com circuitos de linguagem e sugeriam que partes a confecção de ferramentas e a linguagem seriam ambas baseadas em capacidades humanas mais gerais voltadas para ação complexa direcionada a objetivos.
Os resultados desses dois estudos são consistentes, portanto, com hipóteses coevolutivas que ligam o surgimento da linguagem, construção de ferramentas, e lateralização funcional ao nível populacional, além da expansão do córtex de associação durante a evolução humana. Isso sugere que para que os tipos de ferramentas que surtiriam um impacto realmente mais significante no ambiente dos seres humanos, os seres que as manuseavam já deveriam possuir cérebros mais desenvolvidos.
Ao mesmo tempo uma ligação mais direta com a evolução da linguagem parece começar a ficar mais clara, uma vez que a complexidade de certas tarefas manuais exigem um auto grau de planejamento prévio, além de refinada coordenação sensório-motora, ambas características que poderia muito bem ter sido cooptadas para a linguagem, naquilo que os autores chamam de 'hipótese das ferramentas’ para a evolução da linguagem, uma ideia que relaciona-se com a 'hipótese gestual’ para a evolução da linguagem que também defende que a evolução de sistemas de planejamento e controle motor fino manual teriam sido, mais tarde, cooptados na evolução dos sistemas de controle do aparato fonador e da audição e compreensão, dando origem a nossa linguagem falada.
Stout, em um artigo mais recente, de 2011, afirma que em uma estimativa preliminar os indícios apontam para o fato das taxas de mudança cultural no paleolítico terem sido subestimadas e que haveria sim uma relação ainda mais direta entre o aumento da complexidade e diversidade tecnológica. Stout sugere que isso pode ter se dado tanto por causa da evolução cognitiva e como por causa da maior latitude de variação cultural ambas proporcionadas pelas cada vez mais complexas tecnologias.
Por isso, posso dizer que a utilização de ferramentas deve ter tido um impacto enorme na evolução cultural, comportamental e neurobiológica humana, mas ainda estamos longe de entender com isso se deu de maneira mais precisa, mas pelo jeito as coisas foram mais complexas do que muitas das primeiras ideias sobre o assunto tenderam a supor.
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Literatura Recomendada:
Richerson PJ, Boyd R, Henrich J. Colloquium paper: gene-culture coevolution in the age of genomics. Proc Natl Acad Sci U S A. 2010 May 11;107 Suppl 2:8985-92. Epub 2010 May 5. PubMed PMID: 20445092; PubMed Central PMCID: PMC3024025. [Link]
Faisal A, Stout D, Apel J, Bradley B (2010) The Manipulative Complexity of Lower Paleolithic Stone Toolmaking. PLoS ONE 5(11): e13718. doi:10.1371/journal.pone.0013718 [Link]
Stout D, Chaminade T. Stone tools, language and the brain in human evolution. Philos Trans R Soc Lond B Biol Sci. 2012 Jan 12;367(1585):75-87. Review. PubMed PMID: 22106428; PubMed Central PMCID: PMC3223784.
Stout D, Toth N, Schick K, Chaminade T. Neural correlates of Early Stone Age toolmaking: technology, language and cognition in human evolution. Philos Trans R Soc Lond B Biol Sci. 2008 Jun 12;363(1499):1939-49. PubMed PMID: 18292067; PubMed Central PMCID: PMC2606694. [Link]
Stout D. Stone toolmaking and the evolution of human culture and cognition. Philos Trans R Soc Lond B Biol Sci. 2011 Apr 12;366(1567):1050-9. PubMed PMID: 21357227; PubMed Central PMCID: PMC3049103.
Créditos das Figuras:
CHRISTIAN JEGOU PUBLIPHOTO DIFFUSION/ SCIENCE PHOTO LIBRARY
PHILIPPE PSAILA/SCIENCE PHOTO LIBRARY
SHEILA TERRY/SCIENCE PHOTO LIBRARY
Grande Abraço,
Rodrigo