Saturday April 14, 2012
Anonymous: È possível afirmar que existiu uma evolução em equilíbrio pontuado no Egito quanto a cultura? Já que o Egito foi diversa vezes invadido por estrangeiros que desenvolveram sua tecnologia isoladamente, e depois eram expulsos tornando o Egito numa das maiores potências da sua época?. Aliás, há o que falar em equilíbrio pontuado, seleção natural e outras sobre cultura? peeee
Essa é uma questão complicada. Extrapolar um modelo sobre o padrão de mudança das espécies como inferido a partir do registro fóssil para áreas como a cultura e tecnologia deve ser feito com extremo cuidado. Embora as teorias em ciência possam beneficiar-se pela fertilização cruzada entre campos bem diferentes do conhecimento, é bom que fique claro que este tipo de raciocínio analógico muitas vezes mostra-se inadequado em função de dissimilaridades profundas entre os campos ou, pela simples, falta de métodos investigativos apropriados que possam levar essas analogias e metáforas além transformando-as em teorias científicas de verdade..
Falando um pouco sobre o Equilíbrio Pontuado (EP), proposto por Eldredge e Gould nos anos 70 do século passado, é importante que se deixe claro que ele diz respeito ao processo de especiação (ou seja, a subdivisão de populações de uma espécie que resulta na origem de novas espécies) e como ele parece ocorrer ao longo do tempo a partir do que podemos inferir do registro fóssil. Segundo Eldredge e Gould, ao invés daquilo que eles chamaram de ‘gradualismo filético’ (que seria caracterizado pela lenta e continua divergência entre linhagens), o registro fóssil é marcado por rápidas*descontinuidades que evidenciariam eventos de especiação que 'pontuariam’ grandes períodos em que as linhagens quase não mudam (do ponto de vista morfológico) que eles chamaram de períodos de 'estase’ (o 'equilíbrio’ do EP). Isto quer dizer que a maior parte das mudanças entre espécies nascentes ocorreria em períodos relativamente curtos de tempo (de novo, geologicamente falando), em paralelo com a especiação, o que, segundo os autores, seria exatamente o esperado se boa parte do processo de especiação ocorresse 'parapatricamente’ ou 'peripatricamente’** - ou seja, em pequenas subpopulações bem periféricas do ponto de vista de sua distribuição geográfica do resto da população mãe e que, por isso, encontrar-se-ia reprodutivamente isolados e, por algum, motivo mais propensos a mudarem, desviando-se fenotipicamente da população mãe.
Essas mudanças, mesmo demorando muitas e muitas gerações, como ocorreriam em populações pequenas (em que genes podem se disseminar mais rapidamente tanto por seleção divergente como por deriva), seriam, como já enfatizei, do ponto de vista geológico bem rápidas, por isso muitas delas não ficariam 'documentadas’ no registro fóssil. Com a nova linhagem só tornando-se nítida após aumentar seu efetivo populacional e, muitas vezes, só após colonizar a área de distribuição de sua espécie mãe/irmã e substituí-la, o que explicaria as descontinuidades e 'aparecimento’ abrupto de novas espécies. Não podemos nos esquecer, todavia, que essas 'mudanças rápidas’ são relativamente pequenas, envolvendo apenas diferenças suficientes para as novas linhagens sejam reconhecidas com tais. Isso quer dizer que essas novas linhagens não são drasticamente distintas, como algumas pessoas acreditam, levando a confusão entre EP e saltacionismo. Além disso, os mecanismos para explicar as estase em geral são bastante convencionais mesmo os preferidos por Gould como a existência de restrições desenvolvimentais associadas a processos de canalização genético-desenvolvimentais, ou os preferidos por biólogos evolutivos de formação mais tradicional (não paleobiólogos, em geral, geneticistas de populações evolutivos e geneticistas ecológicos) que preferem a seleção estabilizadora particularmente por rastreamento de habitat ou seleção multidirecional sem grandes diminuições do fluxo gênico que resultaria em um somatório zero de mudança até que algo permitisse uma subpopulação escapar desta dinâmica.
Voltando a sua pergunta, infelizmente, no caso específico do Egito antigo não tenho conhecimento suficiente para comentar mais profundamente, mas pelo que vc descreve não vejo o padrão de 'estase’ característico do EP, apenas sugestões de mudança rápida o que seria análogo a 'pontuações’. Desta forma, parece-me apenas uma analogia bem superficial que pode mostrar-se apropriada ou não, mas que precisaria ser avaliada após definições mais consistentes das mudanças fossem adotadas e, especialmente, depois que análises de dados quantitativos estivessem disponíveis. Por isso, por enquanto, eu teria muitas reservas em usar o termo EP para referi-mer a esta situação.
Por outro lado, existem sim várias tentativas de aplicar os insights do modelo de EP em áreas diferentes, como a história, ciência política e ciências sociais de modo geral (como na teoria social) especialmente nos estudos da evolução da cultura, particularmente no que se refere a mudança lingüística que conta, aliás, com um artigo muito interessante publicado na revista Science em 2008 com dados sugerindo surgimento abrupto de novas línguas, portanto, enfatizando o aspecto da 'pontuação’.
Neste caso, é preciso ajustar o modelo para o muito maior dinamismo das línguas, em relação as características morfológicas das espécies que geralmente são as levadas em conta no EP, para as escalas de tempo envolvidas, além de ter que se atentar para as diferenças entre línguas irmãs (e ancestrais-descendentes) de modo que a analogia faça sentido e o modelo vá além de uma analogia superficial. Todas essas tentativas, até o momento, são ainda bem preliminares e controversas, variando muito em termos de qualidade e rigor, precisando, portanto, serem ainda muito melhor investigadas, antes que possamos afirmar que o EP pode ser estendido para os estudos culturais de maneira produtiva.
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*Do ponto de vista geológico que fique bem claro, já que esses eventos ainda assim demoram centenas, milhares ou até dezenas de milhares de gerações acontecendo portanto de maneira consistente com o que sabemos de biologia populacional.
**Esses modos de especiação são uma decorrência natural da extensão do modelo de especiação alopátrica (envolvendo barreiras geográficas que limitariam o fluxo gênico), proposto por Ernest Mayr, já na época considerado a forma mais comum de especiação [Veja aqui].
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Literatura Recomendada:
Lieberman, Bruce S. and Eldredge, Niles (2008) Punctuated equilibria Scholarpedia, 3(1):3806.doi:10.4249/scholarpedia.3806
Atkinson, Q.D., Meade, A., Venditti, C., Greenhill, S.J., & Pagel, M. (2008) Languages evolve in punctuational bursts. Science, 319, 588. doi:10.1126/science.1149683
Bowern, Claire “Punctuated equilibrium and language change.” Encyclopedia of linguistics In Revision [Com cópia disponível via academia.edu]
Grande Abraço,
Rodrigo