Saturday July 02, 2011
Anonymous: É verdade que o experimento de Urey-Miller nao tem peer review?
Essa é a primeira vez que ouço tal questão, principalmente, por que o experimento em questão foi publicado em 1953 pela prestigiosa revista Science, uma das mais conceituadas e respeitadas, cujo processo de peer review (juntamente com os de revistas como a Nature) é, geralmente, tido como dos mais rigorosos, além desta revista destinar-se a trabalhos de máxima relevância e impacto científico. Não sei de onde uma informação como a que vc citou poderia ter se originado, mas sabendo que falhas acontecem no processo de revisão por pares e mesmo as mais conceituadas publicações, às vezes, metem os pés pelas mãos, resolvi averiguar. Ao tentar me informar sobre essa questão, achei um ótimo artigo de Jeffrey Bada, aluno de Miller de quem herdou os aparatos originalmente utilizados no experimento, além da coleção de amostras originais.
O experimento de Miller foi encaminhado para a publicação em 1953 por Urey, seu orientador, mas com Miller como único autor, segundo Badda, para que Miller recebesse o devido crédito, caso contrário como autor senior e pesquisador estabelecido, os créditos seriam provavelmente atribuídos principalmente a Urey. Por causa disso, Urey passou a mencionar os resultados de Miller em todas as suas palestras e a contatar diretamente o escritório editoral da revista Science explicando a relevância do trabalho. e o divulgando. Então, após semanas sem notícias, Urey contatou Howard Meyerhoff na ocasião chefe do comitê editorial da AAAS, órgão que publica a revista Science. Algum tempo depois, um artigo na imprensa comum (publicado em 8 de março de 1953, no The New York Times) relatava que vários experimentos simulando a atmosfera da terra primitiva (e que relatava o aparecimento de várias grandes moléculas complicadas demais para serem analisadas) estavam sendo feitos por W. M. MacNevin e colaboradores na Ohio State University. Enfurecido com a aparente perda da prioridade e como a demora da revista Science em responder, Urey fez Miller solicitar a retirada do artigo para a publicação na Science e o re-submeteu ao Journal of the American Chemical Society. Outra reviravolta aconteceu quando, Meyerhoff, frustrado pelo ocorrido, escreveu a Miller afirmando que queria publicar o manuscrito como o artigo principal da edição, mas queria que Miller (e não o seu orientador, Urey) tomasse a decisão final sobre o manuscrito, o que Miller imediatamente acatou. Ele então retirou a submissão do artigo do Journal of the American Chemical Society e voltou a submetê-lo à Science que o publicou em 15 de maio de 1953. Talvez venha daí, dessa exasperante situação, a história que o experimento de Urey-Miller não tenha passado por revisão de pares, mas não achei menção direta que o artigo não tivesse sido avaliado, apenas de que houve um grande trabalho de lobby e confusão no processo.
Além disso, Miller e Urey publicaram outros artigos com resultados experimentais e novas análises sobre o mesmo tema e sistema experimental. Já em 1955, Miller publicou um artigo, desta vez noJournal of the American Chemical Society, em que identificou outros compostos. Um segundo artigo foi publicado de novo na revista Science com uma análise mais refinada, em 1959. Agora contando com a co-autoria de Urey. Portanto, não estamos falando de apenas um experimento isolado, mas de vários experimentos publicados em vários artigos. Além disso, outros pesquisadores utilizando aparatos semelhantes e usando as mesmas e até variando as condições das misturas de gases obtiveram resultados consistentes, ainda que menos dramáticos. Esse , de fato, é o maior problema com este tipo de experimento, já que a maior quantidade de moléculas orgânicas (especialmente aminoácidos) é obtida em condições redutoras que na época de MIller e Urey eram tidas como as condições da terra primitiva, mas que desde então foram criticadas como representativas do nosso passado remoto. Quando Miller repetiu o experimento em 1983, usando uma mistura de gases mais próxima ao consenso da comunidade científica, pouquíssimos aminoácidos foram produzidos e em pequenas quantidades. Desde então, este cenário foi colocado em um segundo plano.
No entanto, o próprio Badda ao repetir novamente os experimentos com as misturas de gases ‘corretas’ (menos redutoras) - mas desta vez acrescentando certos minerais de carbonatos e ferro que deveriam estar presentes na terra primitiva que impediriam a formação de nitritos e a acidificação (que degradam os aminoácidos formados nestas misturas não redutoras) - conseguiu obter bons resultados e produziu muitos aminoácidos. Contudo, algumas moléculas como ácidos nucleicos e alguns de seus precursores são bastante difíceis de serem obtidas em experimentos semelhantes e outras vias de investigação e modelo entram em ação.
Hoje, entretanto, conhecemos várias outras fontes abióticas de síntese de aminoácidos e de outros compostos orgânicos complexos. De fato, parece ser bem fácil gerar muitas dessas moléculas, inclusive no espaço, encontrando-se em abundância e em grande diversidade em certos tipos de meteoritos, como o famoso meteorito Murchinson [1].
A história não acaba por aí, entretanto. Há pouco tempo, alguns frascos de experimentos adicionais com mais de 60 anos realizados por Miller que ainda não haviam sido publicados, foram recuperados e analisados. O aparato experimental utilizado na produção desses “novos” resultados é diferente do original, mas as diferenças são pequenas. Este outro experimento inédito utilizava um afilamento de vidro que funcionava como um aspirador, aumentando o fluxo de ar através de um dispositivo oco de vidro vedado, criando um sistema de reação mais dinâmico. Esses frascos contém, surpreendentemente, uma maior variedade de moléculas orgânicas do que as que estavam presentes no experimento original de Miller, cerca de 22 aminoácidos, mas mesmo nos fracos não analisados - usando o aparato original de Miller -, graças a modernas técnicas de análise química, foram encontrados 14 aminoácidos, em contraste com os 5 relatados no artigo sobre o experimento original. Muito provavelmente as técnicas analíticas da época não permitiram identificar essas outras moléculas.
Quem sabe que outras surpresas mais esses experimentos ainda vão nos trazer?
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Notas: [1] Cenários mais complexos envolvendo reações em superfícies minerais e sistemas tridimensionais em fumarolas hidrotermais têm sido investigados e resultados muito interessantes têm sido apresentados. Assim como continuam as investigações sobre fases que se acreditam terem sucedido ao aparecimento das moléculas orgânicas, no processo de origem da vida, como a formação de vesículas e de sistemas biomoleculares auto-replicadores.
Literatura Recomendada:
Bada JL, Lazcano A. Perceptions of science. Prebiotic soup–revisiting the Miller experiment. Science. 2003 May 2;300(5620):745-6. PubMed PMID: 12730584.
Cleaves HJ, Chalmers JH, Lazcano A, Miller SL, Bada JL. A reassessment of prebiotic organic synthesis in neutral planetary atmospheres. Orig Life Evol Biosph. 2008 Apr;38(2):105-15. Epub 2008 Jan 19. PubMed PMID: 18204914.
Fox, Douglas [March 28, 2007] Primordial Soup’s On: Scientists Repeat Evolution’s Most Famous Experiment Scientific American More Science
Indiana University (2008, October 17). 'Lost’ Miller-Urey Experiment Created More Of Life’s Building Blocks. ScienceDaily. Retrieved July 2, 2011.
Llorca, Jordi. Matéria orgânica nos meteoritos. INT. MICROBIOL. [online]. 2004, vol.7, n.4, pp. 239-248. ISSN 1139-6709.
Llorca, Jordi. Matéria orgânica em cometas e em pó cometário. INT. MICROBIOL. [online]. 2005, vol.8, n.1, pp. 5-12. ISSN 1139-6709.
Miller, Stanley L. (May 1953). “Production of Amino Acids Under Possible Primitive Earth Conditions” (PDF). Science 117 (3046): 528. doi:10.1126/science.117.3046.528. PMID 13056598.
Miller, Stanley L.; Harold C. Urey (July 1959). “Organic Compound Synthesis on the Primitive Earth”. Science 130 (3370): 245. doi:10.1126/science.130.3370.245. PMID 13668555.
Miller, S. L. 1955 Production of some organic compounds under possible primitive Earth conditions". Journal of the American Chemical Society volume 77, pp2351-2361
Johnson AP, Cleaves HJ, Dworkin JP, Glavin DP, Lazcano A, Bada JL (October 2008).“The Miller volcanic spark discharge experiment”. Science 322 (5900): 404. doi:10.1126/science.1161527. PMID 18927386.
EMILIO SEGRE VISUAL ARCHIVES/AMERICAN INSTITUTE OF PHYSICS/SCIENCE PHOTO LIBRARY
HANK MORGAN/SCIENCE PHOTO LIBRARY
Abraços,
Rodrigo