Saturday June 01, 2013
Anonymous: Sobre a evolução do homem. Por que dizem ter encontrado DNA neandertal em sapiens e que eles provavelmente relacionaram-se se duas espécies diferentes não podem gerar descendentes férteis? Obrigado.
O primeiro ponto que deve ficar claro é que apesar do chamado ’conceito biológico de espécies’ (CBE) proposto por Dobzhansky e Mayr, ser ainda um dos mais usados, ele têm limitações bem conhecidas [1]. Por exemplo, ele só pode ser empregado, pelo menos em sua versão mais tradicional, em organismos multicelulares que se reproduzem sexuadamente, o que deixa de fora um contingente enorme de organismos que se reproduzem assexuadamente [1, 2]. Mas, além disso, ele simplesmente não pode ser aplicado a espécies extintas das quais só nos restam os fósseis ou, na melhor das hipóteses, como é o caso dos Neandertais e Denisovanos, porções fragmentadas dos genomas que foram isolados dos restos de espécimens destes grupos. E é com base nestas características morfológicas e genéticas que os critérios de diagnóstico das espécies são implementados. Veja além da referência 1, o ótimo artigo de Carl Zimmer sobre a questão, as páginas sobre o tema do site ’Entendendo a Evolução’, ’Outros Conceitos de Espécies’ e ’Definindo Especiação’.
Certos grupos entre organismos, como os canídeos, por exemplo, são bastante conhecidos por vários dos cruzamentos entre indivíduos de espécies diferentes produzirem prole fértil, o que leva alguns pesquisadores mais puristas a acreditarem que muitas das diversas espécies de canídeos seriam, na realidade, uma única e super diversificada espécie [3]. Porém, a maioria dos pesquisadores, mesmo os que defendem o CBE, não concordam com esta abordagem, mesmo por ela implicaria em modificar a classificação tradicional de uma série de linhagens morfologicamente, ecologicamente e comportamentalmente bem diferenciadas uma das outras e que, normalmente, não se intercruzam, perdendo uma enorme quantidade de informação. Por isso, mesmo entre os defensores do CBE [outros conceitos de espécie têm muito menos problemas com a hibridização], é comum que se considere as barreiras reprodutivas entre espécies mais porosas e, portanto, aceita-se algum nível de hibridização entre espécies próximas*, desde que ela não seja tão comum. Isso na realidade faz bastante sentido pois o processo de evolução e a variabilidade genética e fenotípica são bem mais fluidos do que uma categorização fixa e estanque, com base exclusivamente em conjuntos de critérios necessários e suficientes, poderia dar conta.
Outro ponto importante é que apesar do CBE ser ainda um dos mais usados entre os biólogos organísmicos, na prática durante o processo de identificação de espécies, raramente, se testa para o isolamento reprodutivo em relação a outras espécies, a não ser quando o objetivo é estudar o processo de especiação, o que ocorre por exemplo, no estudo de espécies em clinas e, principalmente, em espécies em anel. Os critérios de diagnóstico das espécies, portanto, são muito mais pragmáticos e locais [1].
Desta maneira baseado em critérios morfológicos, os Neadertais mostram-se morfologicamente bem distintos dos seres humanos modernos [veja aqui], nós, os Homo sapiens sapiens, bem com tanto eles como os Denisovanos, exibem uma variação genética, em média, além da encontrada em populações humanas modernas. Porém, e aí que entram as evidências de miscigenação ancestral é que certas populações humanas modernas, cuja distribuição parece sobrepor-se a dos restos dos espécimens destas duas outras espécies de humanos arcaicos, exibem algumas das variantes genéticas típicas das encontradas nestas amostras de Neandertais e Denisovanos. Assim, com base nos modelos matemáticos e estatísticos de genética de populações e filogenia, este fato é muto melhor explicado pela ocorrência de miscigenação das populações ancestrais destas populações humanas modernas com populações com membros de populações de Neandertais e Denisovanos [Veja “Mais sobre os Denisovanos: Muita informação de apenas um ossinho”].

Escrevi alguns posts sobre miscigenações ancestrais e evolução humana [“Mais vislumbres de miscigenações ancestrais no DNA humano”, “Quem somos nós e como sabemos quem somos?”, “Quem somos nós e como sabemos quem somos? Parte II”, “Quem somos nós e como sabemos quem somos? Parte III”] que podem complementar a resposta que dei agora. Também respondi uma pergunta similar a sua, feita no ano passado, cuja leitura da minha resposta, talvez, também possa lhe interessar.
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*Inclusive a hibridização pode ser uma fonte de origem de espécies novas [veja hibridização introgressiva], uma forma de evolução que se enquadra dentro do que alguns cientistas chamam de evolução reticulada que também incluiria, além da especiação iniciada por hibridização, a endossimbiose e a transferência horizontas de genes[2, 3, 4, 5].
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Literatura Recomendada:
Zimmer, Carl ’O que é uma espécie?’ Ciência Hoje Aula Aberta edição 111, Agosto, 2011.
de Queiroz K. Ernst Mayr and the modern concept of species. Proc Natl Acad SciU S A. 2005 May 3;102 Suppl 1:6600-7. doi: 10.1073/pnas.0502030102
Stronen AV, Tessier N, Jolicoeur H, Paquet PC, Hénault M, Villemure M,Patterson BR, Sallows T, Goulet G, Lapointe FJ. Canid hybridization: contemporary evolution in human-modified landscapes. Ecol Evol. 2012 Sep;2(9):2128-40. Doi: 10.1002/ece3.335.
Bullini L. Origin and evolution of animal hybrid species. Trends Ecol Evol. 1994 Nov;9(11):422-6. doi: 10.1016/0169-5347(94)90124-4. PubMed PMID: 21236911.
Holliday, T. W., Dec. 2003. Species concepts, reticulation, and human evolution. Current Anthropology 44 (5), 653-673. DOI: 10.1086/377663
Xu S. Phylogenetic analysis under reticulate evolution. Mol Biol Evol. 2000Jun;17(6):897-907. PubMed PMID: 10833196.
Crédito das Figuras:
Filogenia retirada de The Australian
Grande Abraço,
Rodrigo
