Saturday October 22, 2011
Anonymous: Há algum estudo sobre como teriam surgido os pelos? E as penas?
Sim, existem vários estudos sobre a origem dos pelos e penas, já que ambas estruturas são empregadas pelos sistematas como características para diagnostico, respectivamente, dos modernos mamíferos e aves. Portanto, elas são encaradas como importantes inovações evolutivas. Estudos sobre a evolução das penas são ainda mais abundantes, pois, além de terem sido conduzidos muitos estudos em biologia do desenvolvimento dessas estruturas, temos sido brindados, nas últimas décadas, com a descoberta de muitos fósseis de penas e até de melanossomas, organelas das células pigmentares a elas associadas, que permitem aos pesquisadores reconstruir com eram as cores destes apêndices nos animais extintos [1, 2, 3].
Os pelos são estruturas que originam-se dos folículos dérmicos e são formadas por um biomaterial filamentoso cujo principal componente é alfa-queratina, uma proteína rica em resíduos de cisteína que provavelmente surgiu em um ancestral comum dos mamíferos modernos e extintos, centenas de milhões de anos atrás. Infelizmente, devido a delicadeza deste material, sua fossilização é tremendamente difícil. Isso dificulta muito estudos desse tipo. Felizmente, temos os genes associados a essas estruturas e a moderna biologia molecular que nos permite procurar ativamente genes homólogos em outros animais modernos que, por sua vez, possibilitam inferirmos a origem dessas inovações.
Recentemente, genes muito similares aos encontrados em mamíferos, que codificam para variantes das proteínas alfa-queratina, foram encontrados também nos genomas de lagartos e aves [4]. Porém seus produtos protéicos são expressos nas unhas e garras desses animais e não nos folículos dérmicos como ocorre nos mamíferos [4]. Essa descoberta evidencia que, pelo menos, um dos principais componentes dos pelos surgiu bem antes na história da evolução dos vertebrados tetrápodes, provavelmente, tendo sido co-optado apenas mais tarde em nossa linhagem, passando a ser expresso em outras regiões do corpo, dando, aí sim, origem aos pelos, que funcionaram como sistema de isolamento térmico; função essa tremendamente importante em animais endotérmicos termorreguladores, como são a maioria dos mamíferos que mantém suas temperaturas corporais estáveis a despeito de variações ambientais, faznedo isso através de calor metabólico e de vários processos de regulação fisiológica.
Esses mesmos estudos permitiram estimar que os pelos devem ter se originado cerca de 310-330.000.000 anos atrás - depois da divergência sinapsídeos terapsídeos, nossos ancestrais, e os sauropsídeos, ancestrais das dinossauros/aves, crocodilos e lagartos - principalmente porque nenhum dos outros vertebrados têm pelos, como uma característica central [1].
Contudo, além da duplicação e cooptação de algumas das cópias de um gene ancestral para a produção dos biomateriais específicos, durante a evolução das penas e pelos foi também preciso que ocorressem alterações nos processos desenvolvimentais, especialmente na regionalização e interação entre células e tecidos derivados da ectoderme que formam as diversas camadas da pele e que dão origem aos diversos apêndices presentes em diversas linhagens.
Pelos e penas, juntamente com as escamas, são apêndices endurecidos da pele dos amniotas que se originam durante o desenvolvimento de áreas especializadas por meio de interações dermo-epidérmicas do intertegumento. A origem deste tipo de estrutura endurecida está ligada a transição da água para a vida em ambientes terrestres pelas quais passaram os vertebrados tetrápodes - que deram origem aos amniotas, grupo que inclui os sauropsídeos e sinapsídeos modernos (como os répteis, aves e mamíferos) - como uma das adaptações contra o ressecamento [5].
Tais apêndices podem ter originado-se evolutivamente através de variações na localização e extensão das regiões de interação dermo-epidérmica que formavam as grandes escamas presentes nos amniotas mais antigos, passando por escamas menores nos primeiros sauropsídeos e que teriam sido enrrijecidas em virtude da evolução de formas de queratina mais duras (no caso beta-queratinas) e, mais tarde, evoluindo nos apêndices modernos, como pelos e penas, dos mamíferos e dinossauros através da co-optação dos genes da a-queratina que antes eram expressos apenas nas garras e unhas [4, 6, 7].
Nos répteis modernos, extensas regiões de interação dermo-epidérmica formam a maior parte da superfície externa das escamas. Sendo assim, alguns pesquisadores sugeriram que, em algumas linhagens de amniotas ancestrais, deve ter ocorrido uma redução das grandes regiões de interações dermo-epidérmica, o que fez com que essas interações passassem a ocorrer em pequenas áreas da pele, dando origem à condensações dérmicas [6, 7]. Essas pequenas regiões de interações dermo-epidérmicas, em mamíferos, invaginaram-se, formando as papilas dérmicas e a epiderme da matriz pilosa associada. Já nas aves, essas pequenas regiões de interações dermo-epidérmica reduziram-se, diminuindo a superfície original das escamas presentes nos arcossauros, formando papilas dérmicas que teriam invaginado em associação com a epiderme colar, a partir da qual as penas são produzidas.
Em 2009, Danielle Dhouailly, uma embriologista especializada em desenvolvimento cutâneo, sugeriu que os pelos a-queratinizados encontrados nos sinapsídeos remanescentes (nós mamíferos) evoluíram a partir de um hipotético tecido glandular inter-tegumentar que teria existido nos primeiros amniotas, provavelmente, muito semelhante aos tecidos encontrados em anfíbios modernos terrestres. Já as penas podem ter evoluído independentemente das escamas dos squamata (como os lagartos modernos), com cada uma dessas estruturas sendo proveniente também de tecidos inter-tegumentares hipotéticos beta-queratinizados córneos e ásperos que teriam existido nos primeiros sauropsídeos[8].
As escamas sobrepostas das aves, que cobrem os pés de algumas espécies de aves, seriam ainda mais derivadas, tendo se desenvolvido mais tarde na evolução. Elas teria originado-se, secundariamente, das penas que cobrem o resto do corpo desses animais. Essa proposta é baseada em uma série de evidências da embriologia experimental, biologia de desenvolvimento, genética e embriologia comparativa, que em conjunto apontam para a constatação que a ectoderme aviária é primariamente programada para formação de penas, e a ectoderme dos mamíferos em direção a formação de pelos, sendo que os demais derivados ectodérmicos (como as escamas em aves, glândulas em mamíferos, ou a córnea em ambas as classes) podem tornar-se penas ou pelos através de processos metaplásicos, o que sugere que um sistema de regulação negativa parece estar agindo sobre este programa genético-desenvolvimental básico, isto é, bloqueando sua tendência natural de formar penas ou pelos [8].
Como já havia mencionado, as penas são ainda mais bem estudadas que os pelos do ponto de vista de sua evolução, principalmente, em função das descobertas deste tipo de estrutura morfológica em dinossauros terópodes, que podem ser estudadas em certos fósseis bastante bem conservados; especialmente aqueles encontrados em certos depósitos fossilíferos da China.
Estas descobertas corroboraram a ideia de que aves seriam apenas um subgrupo desta linhagem de dinossauros e que as penas, antes de serem co-optadas para o vôo por batimento ativo das asas, teriam evoluído, originalmente, em dinossauros bípedes não-avianos terópodes (coelurosáurios maniraptores) terrestres, isto é, que não voavam [veja aqui e aqui] e eram, muito provavelmente originalmenrte empregadas no isolamento térmico e, quem sabe, teriam diversificado-se por causa da seleção sexual, ao proporcionar padrões de “displays” coloridos no processo de corte e acasalamento. Porém, com o tempo, essas estruturas teriam adquirido outras funções, o que, por consequência, causou mudanças nas pressões ecológicas que foi o que permitiu a manutenção e refinamento (por meio de mutações e seleção natural) das penas simples para outras formas mais adequadas ao vôo planado e, mais tarde, ao vôo por batimento ativo das asas, como observamos nas aves modernas.
As penas que vemos hoje nas aves modernas são conjuntos complexos de múltiplas inovações morfológicas que ocorreram em seus ancestrais por um período de dezenas ou centenas de milhões de anos. Felizmente, vários estudos nas últimas décadas têm nos proporcionado uma melhor compreensão de como esse processo aconteceu ao longo da evolução das aves e de seus ancestrais. Muitos desses insights originam-se das já mencionadas descobertas de fósseis incrivelmente bem preservados de dinossauros com penas e de uma nova abordagem ao estudo da evolução que consiste na integração da moderna biologia do desenvolvimento (especialmente o estudo dos genes e circuitos de genes que controlam os processos de desenvolvimento ontogenético) com as várias disciplinas que fazem parte da biologia evolutiva, como a sistemática e paleobiologia, que os pesquisadores chamamm de biologia evolutiva do desenvolvimento ou EVO-DEVO [9].
As teorias provenientes da EVO-DEVO propõem que as penas evoluíram através de uma série de inovações evolutivas nos mecanismos de desenvolvimento do folículo e “germe” das penas. Esses modelos evolutivos têm sido corroborados a grosso modo pela descoberta de vários tipos de penas fósseis com características primitivas e derivadas encontradas em uma diversidade de dinossauros terópodes coelurosáurios, mostrando ao mesmo tempo que boa parte desse processo de evolução e diversificação das penas aconteceu em terópodes não-avianos, portanto, como já comentado, antes da origem das aves e antes da origem do vôo [9,10].
As evidências têm mostrado também que, a despeito das funções específicas para as quais foram selecionadas, as penas evoluíram através da seleção de um folículo que cresceria formando um apêndice emergente tubular. Os modelos que sugerem uma homologia entre as penas e escamas, além do fato de serem apêndices dérmicos, não encontram muito apoio empírico, sugerindo uma origem independente, talvez a partir de uma estrutura ancestral não diferenciada, mas não por um processo de evolução linear em que uma estrutura teria se originado a partir da outra [9].
No caso das penas, portanto, fica claro que elas evoluíram pela duplicação, organização hierárquica, interação, dissociação e diferenciação morfológica de vários módulos genéticos-desenvolvimentais, como afirma Richard Prum. Tudo isso graças a incrível capacidade de subdivisão em módulos semi-autônomos dos folículos tubulares e dos ‘germes’ das penas que, desta maneira, fomentaram a evolução das inúmeras inovações que caracterizam este fantástico apêndice [10].
Essas novas ideias, modelos e evidências também vêm nos permitindo compreender, de maneira muito mais ampla, como estruturas complexas surgem e se modificam ao longo da evolução a partir de mutações nos genes estruturais e nos que controlam a interação entre células e tecidos adjacentes, modificando seus padrões de interação e as estruturas formadas por eles. Isso ocorre, principalmente, por causa da organização modular e hierárquica desses sistemas de controle genético-desenvolvimental e das propriedades inerentes as células e tecidos em interação [Veja a série de artigos sobre evo-devo e previsibilidade da evolução genética, “É a evolução genética previsível? Partes I, II e III”].
Já discutimos anteriormente alguns dos muitos estudos sobre a evolução das penas em dinossauros não-avianos e estes podem ser encontrados no nosso site [evolucionismo.org], aqui, aqui e aqui.
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Literatura Recomendada:
Vinther J, Briggs DE, Prum RO, Saranathan V. The colour of fossil feathers. Biol Lett. 2008 Oct 23;4(5):522-5. PubMed PMID: 18611841; PubMed Central PMCID: PMC2610093.
Zhang F, Kearns SL, Orr PJ, Benton MJ, Zhou Z, Johnson D, Xu X, Wang X. Fossilized melanosomes and the colour of Cretaceous dinosaurs and birds. Nature. 2010 Feb 25;463(7284):1075-8. Epub 2010 Jan 27. PubMed PMID: 20107440.
Li Q, Gao KQ, Vinther J, Shawkey MD, Clarke JA, D'Alba L, Meng Q, Briggs DE, Prum RO. Plumage color patterns of an extinct dinosaur. Science. 2010 Mar 12;327(5971):1369-72. Epub 2010 Feb 4. PubMed PMID: 20133521.
Eckhart L, Valle LD, Jaeger K, Ballaun C, Szabo S, Nardi A, Buchberger M, Hermann M, Alibardi L, Tschachler E. Identification of reptilian genes encoding hair keratin-like proteins suggests a new scenario for the evolutionary origin of hair. Proc Natl Acad Sci U S A. 2008 Nov 25;105(47):18419-23. Epub 2008 Nov 10. PubMed PMID: 19001262; PubMed Central PMCID: PMC2587626.
Alibardi L. Adaptation to the land: The skin of reptiles in comparison to that of amphibians and endotherm amniotes. J Exp Zool B Mol Dev Evol. 2003 Aug 15;298(1):12-41. Review. PubMed PMID: 12949767.
Alibardi L. Dermo-epidermal interactions in reptilian scales: speculations on the evolution of scales, feathers, and hairs. J Exp Zool B Mol Dev Evol. 2004 Jul 15;302(4):365-83. PubMed PMID: 15287101.
Alibardi L, Dalla Valle L, Nardi A, Toni M. Evolution of hard proteins in the sauropsid integument in relation to the cornification of skin derivatives in amniotes. J Anat. 2009 Apr;214(4):560-86. Review. PubMed PMID: 19422429; PubMed Central PMCID: PMC2736123.
Dhouailly D. A new scenario for the evolutionary origin of hair, feather, and avian scales. J Anat. 2009 Apr;214(4):587-606. Review. PubMed PMID: 19422430;PubMed Central PMCID: PMC2736124.
Prum RO, Brush AH. The evolutionary origin and diversification of feathers. Q Rev Biol. 2002 Sep;77(3):261-95. Review. PubMed PMID: 12365352.
Prum RO. Evolution of the morphological innovations of feathers. J Exp Zool B Mol Dev Evol. 2005 Nov 15;304(6):570-9. Review. PubMed PMID: 16208685
CHRIS BUTLER/SCIENCE PHOTO LIBRARY
CHRIS HELLIER/SCIENCE PHOTO LIBRARY
POWER AND SYRED/SCIENCE PHOTO LIBRARY
STEVE GSCHMEISSNER/SCIENCE PHOTO LIBRARY
Grande Abraço,
Rodrigo