Sobre revistas, criacionismo e portais de imprensa Parte I
Vivemos em um mundo dependente da tecnologia e, de modo mais geral, dos conhecimentos científicos como um todo. Compreender as bases da investigação científica torna-se assim crucial para qualquer debate social, político e educacional de grande monta. Estas discussões não podem ser levadas com base em meras opiniões. Elas precisam ser informadas pelos nossos melhores conhecimentos que em muitos casos são aqueles produzidos pelas diversas disciplinas científicas, o que depende, não só que os cidadãos leigos sejam informados com certa precisão dos resultados e conclusões científicas, mas também que eles tenham um boa noção, pelo menos, dos rudimentos de como se dá a produção do conhecimento científico, acadêmico e técnico de modo geral. A disseminação de mitos, erros e distorções do conhecimento científico não serve a ninguém a não ser aos mais retrógrados setores de nossa sociedade. Por isso disseminação de tal desinformação por parte de imprensa é tão nefasta para nossa sociedade que precisa cada vez mais de cidadãos críticos e bem informados. Recentemente, sob o pretexto de um crítica a uma resposta dada a um leitor da revista Superinteressante, da editora Abril, o jornalista, teólogo e criacionista Michelson Borges, publicou no portal Observatório da Imprensa um texto eivado de mitos, erros e informações distorcidas sobre a evolução dos seres vivos (“Revista desconversa quando o assunto é evolução“), a teoria evolutiva e a biologia evolutiva.
Embora seja admirável e compreensível a postura adotada por veículos de imprensa sérios (como é o caso Observatório da Imprensa) de “mostrar os dois lados da questão” e, assim, “dar espaço ao contraditório” - principalmente, em se tratando de questões sociais e políticas mais polêmicas. Caso isso seja feito de maneira apropriada, de modo a permitir uma visão mais justa e equilibrada de questões polêmicas e de relevância social, estamos diante de um grande serviço a informação do público e ao debate honesto de ideias, mas nem sempre esse é o caso. Quando lidamos com questões mais técnicas e científicas que sofrem uma grande oposição ideológica, por parte de certos grupos específicos da sociedades, a abertura desse espaço de maneira não crítica pode facilmente ter o efeito oposto, sendo apropriado por setores mais retrógrados, colocando ao serviço da propagação da ignorância. Este é exatamente o caso da controvérsia envolvendo o criacionismo. Por isso, em nome da abertura à crítica e da cobertura justa de temas polêmicos, o Observatório da Imprensa acabou por prestar um desserviço a divulgação e a educação científica neste país.
Infelizmente, ao dar o espaço aos argumentos falaciosos, às alegações absurdas e a exposição distorcida das evidências e do estado de arte da pesquisa científica, tão típicas do modus operandi criacionista, o OI (pelo menos aos olhos dos leigos) equiparou uma posição doutrinária muito particular (e que nem pode ser vista como representativa dos religiosos) ao amplo e esmagador consenso atual da comunidade científica sobre a realidade da evolução biológica, um fenômeno estabelecido acima de qualquer dúvida razoável por múltiplas linhas de evidências convergentes que acumularam-se ao longo dos últimos 150 anos que foram revelados por pela biologia evolutiva, um campo essencialmente multidisciplinar e extremamente respeitado nos meios acadêmicos.
A questão aqui não é vetar toda e qualquer crítica a prática científica ou mesmo a comunidade científica. As ciências não são sagradas e parte do que as faz o que são em termos da confiança que depositamos nela é a constante crítica interna e mesmo externa as quais, as diversas áreas das ciências, estão sujeitas, especialmente no tocante as suas aplicações e ao impacto social que elas podem ter. As ciências - como uma grande e complexa empreitada intelectual e pragmática humana que são - são falíveis, existindo muitas dúvidas e questões em aberto em várias áreas da pesquisa, entretanto, isso não quer dizer que não haja uma ampla gama de consensos, ou seja, fatos, fenômenos, teorias e modelos muito bem estabelecidos cuja negação de sua realidade (e poder unificador e explanatório) é simplesmente contraprodutiva para o desenvolvimento de nossa sociedade. Por isso, a apresentação distorcida de fatos, métodos, teorias (e campos inteiros do conhecimento científico) com óbvias intenções de confundir um debate ideológico, tentando transformá-lo, aos olhos do público, em uma discussão científica, não podem ser equiparados a crítica justa e sadia.
Neste texto pretendo explicar por que um pequeno texto como o de Borges pode estar tão crivado de erros e distorções o que o torna capaz de fazer um grande estrago em termos de educação e divulgação científica, já que é muito mais fácil distorcer conceitos, omitir fatos e exagerar ou mesmo inventar polêmicas, descaracterizando completamente um assunto, do que explicar como um campo de conhecimento científico multidisciplinar como é a biologia evolutiva opera. O nosso colega, biólogo, mestre em ecologia e professor de biologia, Adelino de Santi Júnior, do Bule Voador, já escreveu e publicou no próprio OI uma ótima e precisa resposta ("Alguns pontos sobre a evolução das espécies") aos devaneios de Borges, mas eu não poderia deixar de me aprofundar mais em algumas questões, expondo e desarticulando algumas estratégias criacionistas de criar polêmica e disseminar a confusão.
“Criacionismo X Evolucionismo” não é a polêmica, e muito menos “Religião X Ciências”, a polêmica é apenas “Ciências x Criacionismo”:
O criacionismo, em contraste com a moderna biologia evolutiva, não é um movimento científico, embora muitas vezes - por meio da adoção de certos rótulos como 'criacionismo científico' ou o movimento do 'Design Inteligente' e estratégias de marketing - busque passar-se por tal. Esta tentativa tem como objetivo maquiar uma polêmica ideológica e social - caracterizada pela não aceitação, por parte de alguns grupos religiosos, das conclusões consensualmente estabelecidas pela comunidade científica sobre a evolução dos seres vivos, transformando-a em uma suposta 'polêmica científica', o que é um terrível equívoco.
Antes de destrinchar o texto de Borges é preciso que fique claro que a evolução dos seres vivos não é uma 'simples teoria', mas é um fenômeno consensualmente aceito para todos os fins práticos pela comunidade científica. Esta distinção parece sutil, mas é fundamental que compreendamos que as ciências não lidam com provas absolutas e os cientistas geralmente reconhecem a natureza falível e aperfeiçoável do conhecimento humano, o que não quer dizer que não tenhamos uma nível extraordinário de confiança em certas áreas e na realidade de certos fenômenos.
Além das evidências científicas, que podem ser facilmente encontradas em livros-texto de biologia evolutiva [1, 2, 3, 4] e de paleontologia, e além do material disponível em vários sites de instituições de pesquisa e museus do mundo à fora, a confiança da comunidade científica na realidade da evolução também pode ser facilmente atestada pela ampla aceitação da evolução nos meios acadêmicos. A biologia evolutiva é disciplina curricular nos cursos de ciências biológicas e encontramos laboratórios e grupos de pesquisas de áreas relacionadas com a evolução, bem como de programas de pós-graduação, em institutos de pesquisa e departamentos e museus de história natural das mais bem conceituadas universidades de todo o mundo. De maneira complementar, podemos encontrar publicações constantes de artigos revisados por pares sobre esse tema em periódicos científicos multidisciplinares de primeira linha, como são caso das revistas Science, Nature, PNAS, Cell, etc, além de uma impressionante quantidade de material publicado em periódicos indexados, também revisados por pares, especializados em biociências, paleontologia e geologia, campos que lidam mais diretamente com a evolução. O apoio a biologia evolutiva (e o consequente repúdio ao criacionismo, em suas diversas roupagens) por parte de sociedades e associações científicas internacionais (algo, aliás, que não é de hoje) e nacionais – no Brasil exemplificado pela declaração de nossa Sociedade Brasileira de Genética e pela sua disseminação pela própria Academia Brasileira de Ciências – é outro exemplo bem direto que mostra o nível de consenso que há sobre a evolução. Como explica, Jason Wiles, existe uma “esmagadora confiança científica na realidade da Evolução e sobre sua centralidade na Educação Científica” [8], mas, ao mesmo tempo, é fácil percebemos que também existe um grande descompasso entre este consenso acadêmico e a opinião pública, principalmente, naqueles setores da população mais ligados a grupos religiosos específicos, mais conservadores e literalistas. Os criacionistas aproveitam-se, exatamente, deste descompasso para disseminar suas ideias anacrônicas e travesti-las de ciência aos olhos dos leigos que impressionam-se com o jargão e não com a substância dos argumentos.
Por isso é importante frisar que o fenômeno da evolução, compreendido como ancestralidade comum dos seres vivos por meio da descendência com modificação - o que inclui tanto a microevolução como a macroevolução (como discutirei mais adiante) - é diferente do que modernamente chamamos de 'Teoria Evolutiva'. É por isso que muitos pesquisadores enfatizam que a evolução é tanto um 'Fato' como uma 'Teoria' (Veja a posição da National Academy of Sciences, dos EUA, os textos de Gould, Moran, Lenski, Futuyma e os artigos de Gregory [5] e de Hoffmann e Weber [6] e Weber [7]). A Teoria Evolutiva é gigantesco corpo teórico-matemático que explica e orienta a investigação sobre COMO o fenômeno [5] da evolução ocorreu e ocorre, ou seja, ela lida com questões sobre os padrões e os mecanismos evolutivos [5, 6, 7]. Vale também indicar os comentários do professor Sérgio Pena, geneticista e professor da UFMG, sobre esta questão em sua coluna da ciência hoje em que cita uma resposta a uma visão equivocada do status da evolução na comunidade científica e que foi dada pelo filósofo Philip Kitcher a Nicholas Wade, em razão de uma crítica ao uso do termo fato ao ser referir a evolução. Segue a tradução da carta de Kitcher feita pelo próprio Sérgio Pena:
“Na resenha do livro The Greatest Show on Earth, Nicholas Wade acusa Richard Dawkins de um erro filosófico. De acordo com Wade, os filósofos da ciência dividem proposições científicas em três tipos — fatos, leis e teorias — e, de forma contrária às afirmativas de Dawkins, a evolução, que é simplesmente uma teoria, não pode ser considerada um fato. Entretanto, a filosofia da ciência contemporânea oferece um vocabulário muito mais vasto e detalhado para o pensamento das ciências do que é pressuposto na taxonomia supersimplificada de Wade e seus confusos palpites sobre “verdade absoluta”. Embora filósofos possam discordar de aspectos dos argumentos de Dawkins em outros tópicos, ele tem uma compreensão mais firme e sutil do que sugere a resenha de Wade.
O ponto crucial é que, como Dawkins corretamente percebe, a distinção entre teoria e fato, em discussões filosóficas assim como coloquialmente, pode ser estabelecida de duas maneiras diferentes. Por um lado, teorias são concebidas como sistemas gerais de explicação e predição, enquanto fatos são relatos específicos sobre processos e eventos. Por outro lado, “teoria” é usada para sugerir que há espaço para dúvidas racionais, enquanto “fato” sugere algo que é tão amplamente confirmado pela evidência que pode ser aceito sem debate.
Os oponentes da evolução se deslocam da ideia de que a evolução é uma teoria, no primeiro sentido, para concluir que é (apenas) uma teoria, no segundo. Qualquer inferência desse tipo é falaciosa, pois muitos enfoques sistemáticos de fenômenos naturais – como a compreensão de reações químicas em termos de átomos e moléculas e o estudo da hereditariedade em termos de ácidos nucleicos – são tão bem alicerçados que contam como fatos (no segundo sentido). Muitos cientistas e filósofos que já escreveram sobre evolução têm indicado que a teoria contemporânea, que descende de Darwin, tem o mesmo status – ela também deve ser considerada um “fato”. Dawkins está plenamente justificado em segui-los.” [A carta original aos editores do NYT pode ser encontrada aqui, junto a outra carta do também filósofo Daniel Dennet]
Esta pequena diferenciação é extremamente importante, pois muitas das críticas criacionistas dependem desse tipo de confusão conceitual. Discussões e debates internos a comunidade científica sobre os padrões e mecanismos evolutivos são normais entre os biólogos evolutivos, como em qualquer campo científico sadio e em pleno desenvolvimento da pesquisa científica. Essas discussões são um sinal da vitalidade e vigor da biologia evolutiva como campo de pesquisa e não, como querem fazer parecer os criacionistas, um sinal de dúvida sobre o fenômeno básico da evolução. É muito importante que as pessoas compreendem claramente que estas discussões científicas não dizem respeito ao FATO da evolução. Não existem debates dentro da comunidade científica, nos congressos e periódicos gerais e especializados, sobre se a evolução ocorreu ou não. Entretanto, uma das estratégias mais usadas e abusadas pelos criacionistas é desvirtuarem as discussões que, de fato, ocorrem sobre o COMO, apresentarem-nas com se estas fossem uma pretensa 'prova' da suposta natureza cientificamente controversa do fenômeno evolução.
As típicas confusões criacionista
Agora entremos nas alegações de Borges e em sua mal fadada tentativa de criticar a resposta da revista Superinteressante ao seu leitor criacionista e, assim, a evolução dos seres vivos como um todo.
Borges começa seu texto reproduzindo o questionamento de um leitor sobre a menção, por parte da revista Superinteressante, de que os seres humanos e chimpanzés são parentes em termos evolutivos. O leitor acusa a revista de manifestar uma opinião pessoal e não (como, de fato, a revista fez) de apresentar a visão consensual dentro da comunidade científica - principalmente entre os pesquisadores que lidam diretamente com questão, como os das áreas de antropologia, paleoantropologia, genética evolutiva humana, sistemática, primatologia etc. O leitor coloca a questão em termos bem viciados, ou seja, por meio da ideia do 'homem ter vindo do macaco'.
“Na seção de cartas da revista Superinteressante deste mês foi publicada a opinião do leitor *****: “Sou assinante e gostaria muito de manifestar minha insatisfação com a posição desta revista em defender a ideia (sem nenhuma prova) de que o homem tenha vindo do macaco. Na seção Ideia Visual (agosto), o texto diz que ‘um chimpanzé macho, nosso parente mais próximo, não olharia duas vezes para a mulher’. Acredito que uma revista tão conceituada não deve manifestar sua posição pessoal sobre um fato não comprovado.””
Michelson reproduz, então, a resposta da revista ao leitor:
“****, nós nunca dissemos que o homem ‘veio’ do macaco, mas que o chimpanzé é o seu parente mais próximo – somos descendentes de um ancestral comum, como fica claro pela teoria da evolução, que é um modelo científico sólido. Agora, se a sua religião não permite que você acredite na teoria da evolução, não tem problema algum, temos pleno respeito por todas as religiões. Achamos que a Bíblia é um documento histórico belíssimo, mas, na hora de falar de ciência, ficamos mesmo com A Origem das Espécies.”
Em seu primeiro ponto, Borges, critica a revista por ter corrigido o leitor. A revista havia explicado, acertadamente, que não havia afirmado que o homem tivesse vindo do macaco, mas tão somente havia colocado que os chimpanzés e seres humanos são parentes próximos o que é basicamente correto. Michelson, entretanto, opõe-se a esta resposta ao afirmar que o tal ancestral “seria um tipo de... macaco”, o que não é incorreto, mas esconde duas questões importantes frequentemente distorcidas e abusadas pelos criacionistas, além de serem completamente irrelevantes no que se refere a questão do parentesco evolutivo entre seres humanos e chimpanzés.
O primeiro problema com a crítica de Michelson a resposta da revista Superinteressante é que, muitas vezes, quando algum criacionista questiona a ancestralidade comum afirmando que isso implicaria que o 'homem veio do macaco', está implícita a sugestão que os seres humanos, de acordo com a bilogia evolutiva, seriam ancestrais descendentes diretos de primatas não-humanos modernos, como os chimpanzés, por exemplo (os tais macacos). Porém, isso é um equívoco e não corresponde ao que os cientistas estabeleceram. Na realidade, nós somos apenas 'primos' dos chimpanzés, em termos do parentesco evolutivo, bem como somos em nível mais distantes de outros macacos, como os gorilas, orangotangos etc. Portanto, neste sentido, a resposta da Superinteressante é adequada, ainda que não totalmente precisa e abrangente. O mais importante é que ela evita um dos principais equívocos na apresentação da evolução humana para um publico leigo.
Mas ainda existe ainda uma segunda questão. O termo 'macaco' não é um termo estritamente científico. De fato, ao o analisarmos tendo como base uma perspectiva científica, ele, na realidade, é bastante arbitrário e impreciso. Isso é assim por que, geralmente, ele é empregado para designar os primatas do grupo dos antropoides ('simiiformes'), porém, excetuando os seres humanos (e outras espécies da subtribo hominina já extintas) que também são primatas simiiformes. De fato, na perspectiva da moderna sistemática filogenética e das filogenias moleculares (dois campos da biologia evolutiva) somos muito mais próximos aos chimpanzés e bonobos do que nós e eles somos de qualquer outro macaco. Portanto, fica difícil de argumentar que nós, seres humanos, sejamos outra coisa além de um tipo de 'macaco', cujos parentes mais próximos não extintos são os chimpanzés e bonobos, mesmo que o termo 'macaco', por definição, arbitrariamente, nos exclua em virtude de ter se originado em uma tradição pré-Darwiniana [Vejam, para maiores detalhes, este artigo e este vídeo]. Assim, a crítica de Borges é vazia, a menos que ele conseguisse mostrar que a sistemática moderna está completamente errada, algo que ele nem tenta fazer.
Borges, continua seu texto fazendo afirmações bombásticas (“É leviandade afirmar que isso é um “fato estabelecido” ...”) e abusando de certos resultados científicos, apresentando-os como se eles desabonassem a evolução, quando, na verdade, eles em nada opõem-se ao nosso parentesco entre humanos e chimpanzés e a evolução em sentido mais amplo de modo geral:
“... mesmo que se apele para os alegados 90 e tantos por cento de semelhança genética entre chimpanzés e humanos, o que também é discutível (confira). Alias, já apontaram semelhanças genéticas entre humanos e anêmonas! E até porcos.”
Aqui, mais uma vez, podemos observar duas grandes confusões tipicamente criacionistas. A primeira envolve confundir diferentes estimativas da distância genética entre organismos de diferentes espécies e que são baseadas em tipos de comparações distintas, interpretando essas diferentes medidas como se elas fossem estimativas diferentes do mesmo tipo de comparação e, portanto, conflitassem umas com as outras. Os “90 e tantos por cento de semelhança genética entre chimpanzés e humanos” que seriam discutíveis, de acordo com Michelson, na realidade, não são discutíveis, como ele quer fazer parecer.
Os valores de aproximadamente de 98 ou 99% de similaridade, comumente apresentados em obras de divulgação científica, dizem respeito a comparação entre as regiões alinháveis dos genomas dos chimpanzés e dos seres humanos, em que são contadas apenas as diferenças de nucleotídeo em nucleotídeo (base a base, letra a letra do alfabeto genético) entre regiões ortólogas - seja ao longo de todo o genoma ou apenas nas ao longo das regiões codificadoras de proteínas. O fato de existirem outras formas de medir as diferenças genéticas entre espécies, como as que contabilizam sequencias de bases perdidas ou ganhas em genoma (indels) ou as que em são contadas sequencias presentes em números de cópias variados nos genomas de cada espécie não tornam discutíveis os números em si. Mesmo por que, problemático mesmo, seria combinar essas diferentes medidas em um mesmo número pois tratam-se de métodos diferentes que partem de premissas distintas, dando porcentagens que nem se quer fariam muito sentido. Porém, o que é realmente importante (e que Borges nem ao menos menciona) é que os resultados das comparações são consistentes caso comparemos diferentes organismos empregando os mesmos tipos de medidas, entre regiões alinháveis de seus genomas, mostrando, claramente, que certos organismos são mais próximos do que outros. Isto quer dizer que - ao usarmos as mesmas medidas em diversos organismos como chimpanzés, seres humanos, gorilas, macacos rhesus etc - obtemos, claramente, uma “hierarquia aninhada”, ou seja, um padrão arborescente no qual certas espécies são mais semelhantes umas as outras do que elas são de outras, formando conjuntos uns dentro dos outros. [Para saber mais sobre este assunto, veja aqui]. Este padrão arborescente sugere fortemente uma genealogia dos seres vivos. Ele, até onde nossas melhores evidências mostram, universal e não se limita aos primatas, por isso a existência de similaridades genéticas (bem como celulares, teciduais, fisiológicas embriológicas etc) dos seres humanos com outros animais e mesmo genéticas, bioquímicas e celulares com outros seres vivos não negam a maior similaridade entre seres humanos e chimpanzés.
Portanto, não são apenas as porcentagens de similaridade genética (e muito menos apenas o fato de haverem similaridade genéticas entre duas espécies) a grande evidência da ancestralidade comum por descendência com modificação, isto é, da evolução biológica [1, 2, 3, 4], mas sim o complexo e intrincado padrão de similaridades das mais variadas, organizado hierarquicamente em grupos dentro de grupos dentro de grupos (e assim por diante), e que, por sinal, pode ser recuperável por várias linhas de análise e por muitos conjuntos de dados distintos [1, 2, 3, 4].
A sugestão de Michelson de que a similaridade genética entre seres humanos e anêmonas (ou entre seres humanos e porcos) refutaria a ancestralidade entre seres humanos e chimpanzés seria equivalente a alguém, ao constatar que seu primo também é semelhante geneticamente a você, conclua que seu irmão (que é ainda mais geneticamente semelhante a você) não deve ser seu parente mais próximo, afinal, por que somos similares geneticamente a outras pessoas. Ou seja, esta sugestão não faz o menor sentido. As semelhanças ao nível das sequências de DNA genômicas, como da estrutura dos cromossomos, no padrão de expressão dos genes, das estruturas nos embriões, bem como as reveladas pela anatomia e mesmo aquelas que existem ao nível cognitivo e comportamental convergem para revelar nosso íntimo parentesco evolutivo com os demais primatas. Além disso, os dados paleoantropológicos são outra grande fonte de corroboração desta simples ideia, pois deixam claro essa continuidade evolutiva ao revelar os fósseis de várias outras espécies da subtribo hominina já extintos que ainda são morfologicamente mais parecidos conosco do que são os chimpanzés, mas muitos dos quais apresentam características intermediárias [Veja esta resposta de nosso tumblr]. Estes fósseis mostram características em estado de derivação intermediárias entre nós e nossos primos vivos, o que nos permite reconstruir nosso padrão de ancestralidade comum e desvendar a árvore filogenética dos seres humanos e dos outros primatas, mas que é só um dos ramos de uma árvore filogenética muito mais ampla [Sobre a evolução humana, veja a belíssima exibição online do Museu Smithsoniano de História Natural, dos EUA, sobre a origem humana], além das informações disponíveis no Museu Americano de história natural e o Museu de História Natural Britânico [9].
Evolução não é cientificamente controversa nem no Micro e nem no Macro
Após questionar o fato da revista ter enfatizado a questão do parentesco humano/chimpanzé, como se isso fosse um desrespeito a opinião do leitor, Borges, volta a soltar algumas pérolas criacionistas, trazendo à tona a velha confusão entre macro e microevolução (que ele chama estranhamente de 'microdiversificação').
“Qual teoria da evolução? A macroevolução ou a microdiversificação? Diversificação étnica humana e variações entre cães e tentilhões, por exemplo, são fato e permanecem na categoria da diversificação de baixo nível (ou “microevolução”).”
Microevolução e macroevolução são ambas partes integrantes da moderna biologia evolutiva e, na realidade, os termos marcam mais uma divisão operacional no estudo de fenômenos evolutivos envolvendo escalas de tempo e geográficas diferentes. Estes termos referem-se, portanto, mais a diferenças de foco e interesse entre os biólogos evolutivos que estudam diretamente os mecanismos e processos evolutivos intrapopulacionais, por um lado, daqueles que investigam o que ocorre a partir do nível de espécie, especialmente, em escalas geográficas e de tempo mais amplas, por outro. Existem obviamente diferenças metodológicas entre as duas abordagens, mas existe muito mais sobreposição do que os criacionistas gostam de admitir.
Vale a pena destacar que os dois termos, “microevolução” e “macroevolução”, foram cunhados, somente, em 1927 pelo entomologista Russo Yuri Filipchenko [10], mas mais importantes do que isso, as evidências originais para a evolução das espécies compiladas por Darwin e Wallace são todas evidências macroevolutivas e não microevolutivas [11]. Estas evidências que foram ampliadas e corroboradas por outros pesquisadores convenceram a comunidade científica da realidade da evolução e são aquelas oriundas da anatomia e embriologia comparada, do registro fóssil e da biogeografia. Estas evidências juntam-se hoje as evidências moleculares que vão desde as sequencias de genes, cromossomos e genomas inteiros. Estas todas são evidências da macroevolução, ou seja, da ancestralidade comum ampla entre vários grupos de seres vivos bem distintos entre si. Na verdade, o termo “microevolução” só passou mesmo a fazer sentido - e, portanto, a ser empregado de maneira mais sistemática - quando os cientistas começaram a experimentar e monitorar populações biológicas em temo real, investigando as mudanças nas frequências alélicas ao longo das gerações em estudos de campo e as manipulando em estudos controlados de laboratório. Estes estudos empregavam espécies com ciclos de vida mais curtos e de fácil monitoramento e manipulação, como plantas e insetos. Portanto, o estudo da microevolução, em senso estrito, passa a entrar em cena com o advento da genética de populações, no começo do século XX, especialmente, a partir da síntese moderna da biologia evolutiva, no anos 30 e 40, que unificou as abordagens dos mendelianos e biometristas, dando uma roupagem matemática mais precisa à teoria de evolução por seleção natural, o que ocorreu somente a partir dos anos 20, com os trabalhos de Ronald Fisher, J.B.S. Haldane e Sewall Wright [ 1, 2, 4, 12]. Por meio deles é que os vários mecanismos evolutivos, como as mutações, deriva genética, fluxo gênico, seleção natural etc começaram a ser testados e investigados mais a fundo.
Mas o que é exatamente macroevolução de acordo com os cientistas?
Embora alguns pesquisadores possam defini-la de maneira um pouco diferente, normalmente, os cientistas consideram que a macroevolução diga respeito a evolução em vastas escalas de tempo e do espaço em que ocorre o surgimento e extinção de linhagens e nas quais as novidades evolutivas se estabelecem e especialmente nas quais novas categorias taxonômicas mais abrangentes evoluem. Porém, estes grupos mais abrangentes só fazem sentido biológico em retrospecto já que eles não surgem todos prontos mais são formados por múltiplos eventos de especiação e evolução de características genéticas e fenotípicas distintas, além da extinção de linhagens com características intermediárias, possibilitando que organizemos os grupos da maneira que organizamos hoje. São nestas escalas mais amplas de tempo e espaço é que mudanças ecológicas, geológicas e planetárias de grande monta costumam ocorrer, como a deriva continental, o movimento de placas tectônicas, a mudança dos ciclos planetários, além de eventos de grande magnitude e intensidade, como supervulcanismo e o impacto de grandes asteroides. Todos processos, fenômenos e eventos só podem ser testemunhados indiretamente, a partir do registro geológico, mas que mostra, claramente, a mudança das biotas, guardando sinais desses eventos e dos processos estendidos no tempo que por eles foram responsáveis [12, 13]. Para compreender um pouco melhor como estuda-se a macroevolução pelo registro fóssil clique no figura ao lado cujas informações foram retiradas do site da Entendendo a Evolução.
Porém, Borges não explica nada disso. Muito pelo contrário. Ele apenas afirma, mas sem oferecer qualquer argumento minimamente estruturado (e, quem dirá, evidências da moderna literatura científica), que a macroevolução seria um tipo de especulação e não um fenômeno bem estabelecido dentro da comunidade científica; uma alegação que está em franca oposição aos mais de 100 anos em que a evolução em larga escala é reconhecida e ensinada em universidades, nos cursos de ciências biológicas e geologia, além de ser parte integrante dos fenômenos investigados rotineiramente nos departamentos de biologia, paleontologia e geologia das maiores e melhores universidades, institutos de pesquisa e museus do mundo.
“Humanos e macacos provindo de hipotéticos ancestrais comuns (ou mesmo toda a biodiversidade atual tendo origem num ser unicelular desconhecido que teria vivido bilhões de anos atrás), isso é mera especulação hipotética oriunda da mentalidade naturalista, ou seja, é filosofia sem amparo científico (empírico).”
Este fenômeno que é muito bem corroborado é estudado por uma vasta gama de abordagens que incluem desde estudos observacionais envolvendo a biogeografia e o registro fóssil até aqueles que lançam mão de métodos experimentais, analíticos e estatístico-computacionais que integram os dados empíricos de várias áreas da biologia, paleontologia e geologia. Existem amplas evidências da realidade da macroevolução, como Douglas Theobald resume em seu artigo para o site TalkOrigins [14]. As afirmações de Michelson, portanto, são muito mais reveladores dos seus parcos conhecimentos de biologia evolutiva e ciência do que qualquer outra coisa. Ele nega a ancestralidade comum como a origem da biodiversidade, mas o faz sem ter qualquer amparo científico. Ao fazer estas afirmações, ele não fornece evidências e não cita qualquer fonte, muito menos uma que seja minimamente confiável. Isso sim é uma mera opinião e extremamente mal informada que choca-se frontalmente a avalanche de evidências e ao consenso científico.
Os Darwinistas misteriosos de Michelson
Borges continua a destilar suas críticas, fazendo afirmações ainda mais sem sentido, como a de que a 'teoria da evolução não é um modelo sólido'.
Quem está por dentro das discussões intramuros sabe que a teoria da evolução não se trata de um “modelo científico sólido”. Darwinistas honestos têm reconhecido isso. Mas o pessoal da Super parece fanático demais por Darwin para admitir isso.
Nem imagino quem seriam os tais 'Darwinistas honestos' aos quais Michelson faz menção. Ele convenientemente não dá nomes aos bois. O que parece, entretanto, é que Borges está simplesmente tentando mudar o foco da questão, empregando outra tática comum entre os criacionistas: confundir discussões internas sobre COMO a evolução ocorre com dúvidas sobre o FATO da evolução, sugerindo que o primeiro tipo de discussões abala o consenso sobre o fenômeno da evolução [5, 6, 7].
Como eu já havia comentado, existe uma grande diferença entre aquilo que podemos chamar do “fato da evolução”, ou seja, os fenômenos da “descendência com modificação e da ancestralidade comum” - que (não nos esqueçamos) é o que está em jogo quando discutimos o parentesco entre seres humanos e os chimpanzés - e a moderna teoria evolutiva que fornece o arcabouço teórico-matemático, metodológico e conceitual que nos permite investigar e explicar os padrões e mecanismos por trás do fato da evolução. Voltaremos a esta questão mais adiante quando o texto de Borges nos revela indícios mais específicos daquilo que ele parece querer sugerir ao mencionar os tais ''Darwinistas honestos'.
Borges, continua seu ataque a Superinteressante, agora afirmando que ela teria sido preconceituosa com o leitor, tanto por ter presumido que ele não aceitava a teoria evolutiva por causa de sua religião - o que faz todo o sentido, já que este tipo de ceticismo parcial é típico dos grupos religiosos mais literalistas e fundamentalistas – como pelo fato da revista, supostamente, não ter mostrado respeito as religiões que insistem em defender o criacionismo, quando, na verdade, o que a Superinteressante fez em sua resposta foi simplesmente aceitar a posição do leitor, porém, sem fingir que ela fosse cientificamente embasada. O que, aliás, também é perfeitamente razoável, já que o leitor (assim como Borges) não forneceu qualquer argumento ou evidência que sugerisse que a evolução biológica fosse controversa cientificamente ou que a biologia evolutiva e a moderna teoria evolutiva não fossem, respectivamente, um campo de investigação em pleno desenvolvimento e um conjunto multi-teórico sólido e cientificamente respeitável. Seria estranho a Superinteressante fazer qualquer outra coisa, além de explicitar sua posição pró consenso científico e deixar claro que, mesmo assim, respeitava a posição do leitor, apenas não a considerava cientificamente válida. Isso não é desrespeito.
“Se a sua religião não permite que você acredite na teoria da evolução...” Espere aí! O leitor não menciona em momento algum (pelo menos não no texto publicado) qualquer tipo de religião. Aqui, também, o pessoal da Super (ou, pelo menos, o editor de cartas e e-mails) cai no lugar comum da controvérsia ciência x religião. Essa é uma tática antiga para blindar o evolucionismo de discussões realmente científicas. Note que a revista muda rapidinho de assunto. Sai da ciência para a religião e tenta, assim, encerrar a questão. Esse é um típico argumento evolucionista de “roda de bar”, mas não deveria ser usado por uma revista que se propõe séria e científica.
Eles dizem ter respeito por todas as religiões, exceto (isso fica nas entrelinhas) por aquelas que insistem em defender o criacionismo.”
Michelson continua a criticar a revista, desta vez por ter suposto (mais uma vez, razoavelmente) que a posição do leitor fosse derivada de sua leitura literalista da Bíblia. De novo, precisamos lembrar que o leitor não forneceu qualquer evidência ou argumento para que os responsáveis pela revista achassem que as posições dele eram outra coisa, se não ideias derivadas de uma leitura particular bem literal de um livro sagrado, tomando-o como um compendio de história natural. As pressuposições da revista foram, na verdade, bastante razoáveis. Podemos até questionar se trazê-las à tona teria sido ou não necessário, mas não vejo como esta parte da resposta poderia ser uma demonstração de preconceito no sentido mais afrontoso do termo:
“Achamos que a Bíblia é um documento histórico belíssimo, mas, na hora de falar de ciência, ficamos mesmo com A Origem das Espécies.” Quem falou em Bíblia? O ***** não menciona (no texto publicado) qualquer livro religioso.”
Atacando Darwin, mesmo que isso seja irrelevante:
Ainda não se dando por satisfeito, Borges questiona se o livro a 'Origem das espécies' 'se quer falava de ciência', e apoia a esta sugestão parafraseando o professor de química da Unicamp, Marcos Eberlin, um outro conhecido criacionista:
“Mesmo assim, a resposta é reveladora. A “Bíblia” deles é o livro de Darwin, e eles não negam isso! Quem disse que A Origem das Espécies fala de ciência? Até porque, como diz o químico Marcos Eberlin, o maior instrumento de pesquisa no tempo de Darwin era a cadeira de balanço.”
Borges e Eberlin mostram não compreenderem o trabalho dos naturalistas no séculos XIX que certamente não baseava-se quase exclusivamente em especulação (como eles parecem sugerir), mas incluía um extenso trabalho de campo e, muitas vezes, a análise minuciosa das amostras coletadas, quando elas não ficavam a cargo de outro especialista com os quais estes pesquisadores mantinham contato e trocavam informações. Mas o mais estranho é que o próprio Darwin realizou trabalhos experimentais [15] com suas orquídeas e pombos, além de ter se correspondido incessantemente com outros naturalistas em várias partes do mundo, inclusive no Brasil (como foi o caso de Fritz Müller, em SC) checando fatos, mantendo discussões e trocando argumentos e outros tipos de informações, de maneira bem semelhante ao que fazemos hoje em dia. O trabalho de Darwin, portanto, dificilmente poderia ser descrito, como querem Borges e Eberlin, como baseado na “cadeira de balanço”, isto é, uma mera especulação descontextualizada. Contudo essa questão bem ao menos é relevante. Aqui temos outro desvio desnecessário e que tem fins puramente retóricos, não possuindo qualquer peso na crítica as evidências para a ancestralidade comum entre seres humanos e chimpanzés e entre os seres vivos de modo mais amplo. Afinal, o que importa para determinar-se esta questão são as evidências cumulativas que são atualmente aceitas, além da forma atual da teoria evolutiva. Por isso não é pertinente para esta questão se Darwin 'pesquisava' ou não em uma cadeira de balanço ou divagando ao caminhar pela Sandwalk em Down House.
As conclusões científicas não são fruto da mera opinião de pesquisadores isolados, mas estabelecem-se através do confronto de ideias e fatos e da apreciação coletiva e estendida no tempo dos argumentos e evidências que se acumulam. Além do mais, o trecho do artigo de Borges que acabei de citar é completamente irrelevante por outro motivo bem simples. Darwin não lida com a evolução humana em Origens, assunto que só viria a tratar de maneira mais consistente em A descendência do homem. Mas as críticas de Borges não param por aí. Ele continua seu ataque a Darwin, desta vez dirigindo-o a formação do naturalista britânico. Esta pequeno parênese aberto por Borges (colocado em negrito por mim) é bastante curioso, pois, como Darwin, Borges também é um teólogo, mas isso não o impediu de expor suas opiniões sobre a evolução. Chega a ser irônico.
“Quem disse que as informações do naturalista/teólogo (sim, Darwin estudou teologia) do século 19 estão todas de acordo com a ciência experimental?”
Porém, diferentemente de Darwin, Borges nasceu em uma época de superespecialização acadêmica, e, pelo menos até onde sabemos, jamais desenvolveu trabalhos e publicou em biologia. Além do extenso trabalho observacional e experimental de Darwin, o naturalista inglês publicou vários livros e artigos científicos, principalmente, nas áreas de geologia e história natural, além das enormes monografias sobre a biologia e taxonomia de cracas que lhe valeram o reconhecimento por parte dos seus pares na comunidade científica, mesmo antes da publicação de Origens e dos seus outros vários livros.
“Quem disse que as ideias macroevolutivas de Darwin resistem ao laboratório e às observações possibilitadas pelos modernos recursos do nosso tempo? Se resistissem, não haveria rumores de uma nova teoria da evolução não selecionista sendo gestada... (confira aqui,aqui, aquie aqui). Apesar do título, Darwin não entregou o que se propôs explicar – a origem das espécies. Um título melhor para o livro seria Origem das Variações, assunto que Darwin muito abordou, mas nem isso conseguiu explicar. Que ciência Darwin praticou nesse livro?””
Porém, talvez a pior parte deste parágrafo seja mesmo as sugestões (feitas na forma de questionamentos) sobre a suposta falta de coerência das ideias de Darwin sobre macroevolução com a “ciência experimental”. Mais uma vez, Borges insiste na dicotomia entre micro e macroevolução ao questionar se “as ideias macroevolutivas de Darwin resistem ao laboratório e às observações possibilitadas pelos modernos recursos do nosso tempo?”. Vale ressaltar que Borges não nos oferece quaisquer evidências ou fontes que mostrem que (e quais) as ideias sobre macroevolução de Darwin seriam cientificamente controversas, ou seja, àquelas que não teriam resistido “ao laboratório e às observações possibilitadas pelos modernos recursos do nosso tempo” e, o que seria ainda mais importante, qual a relação destas supostas ideias com a questão do parentesco entre seres humanos e chimpanzés, o ponto principal da resposta dada pela Superinteressante ao comentário do leitor criacionista. Não há qualquer argumento claro e cogente sobre esta questão. Na realidade, o que mais se assemelha a um argumento sobre esta questão, no texto de Borges, é a menção “de uma nova teoria da evolução não selecionista sendo gestada...”, para o que ele oferece três links, todos eles do mesmo site criacionista, como aliás são todos os seus links.
O problema é que estas questões levantadas por Borges, na verdade, são meros artifícios retóricos. Apenas 'espelhos e fumaça', como dizem os anglófonos. Essas perguntas não têm nenhuma relevância para a questão que motivou a carta do leito, a resposta da Super e o texto de Borges no OI. Isso acontece por que as atuais discussões científicas dentro da biologia evolutiva não têm qualquer relação com os fenômenos mais gerais da descendência com modificação e da ancestralidade comum, principalmente, no tocante ao parentesco entre seres humanos e chimpanzés. Ele, Borges, não nos oferece qualquer argumento ou evidência para ligar as duas questões, muito provavelmente, por que o que ele espera é gerar confusão. Ele não tem o menor interesse de esclarecer como a biologia evolutiva funciona e nem o que tem sido discutido em relação a moderna teoria evolutiva. Neste ponto percebemos claramente a tentativa de misturar duas questões bem distintas.
O 'argumento' de Borges esbarra em vários problemas. Primeiramente parece que ele não percebe que a proposta original de Darwin e Wallace sobre como a evolução ocorreria passou por várias mudanças ao longo dos anos. O que foi mantido foi a perspectiva da evolução como um processo variacional de descendência com modificação que resulta em um padrão de ancestralidade comum amplo por meio da divergência entre populações ao longo das gerações que adaptam-se ao seu meio por meio da seleção natural das variantes fenotípicas herdáveis existentes nas populações.
De uma perspectiva histórica podemos separar a biologia evolutiva em várias fases, inciando-se pelas propostas pré-darwinianas, como as especulações sobre evolução de Buffon e Maupertuis, passando pelas propostas mais explícitas de Erasmus Darwin, chegando a teoria mais geral de Lamarck (deixando de lado a obra mais polemizadora de Chambers). Depois, entre 1858 e 1859, temos a proposta inicial do modelo variacional de Darwin e Wallace que estava sendo gestado desde o final da década de 30 daquele século. Os dois pesquisadores propuseram a seleção natural (diferenças na sobrevivência e no sucesso reprodutivo dos indivíduos causadas por diferentes em suas características fenotípicas) de variantes herdáveis como o mecanismo essencial da mudança adaptativa. A esse modelo podemos nos referir como 'Darwinismo'. Após a morte de Darwin, houve um recrudescimento da teoria baseado principalmente nas visões de Wallace e August Weismann ao que George Romanes chamou de 'Neo-Darwinismo'. Nesta versão, as especulações sobre herança de caracteres adquiridos (como as relativas a pangênese) foram completamente extirpadas da teoria evolutiva. Este período, do final do século XIX e comecinho do século XX, foi marcado pela aceitação generalizada do fenômeno da evolução, mas ao mesmo tempo destacou-se pela perda da centralidade do mecanismo evolutivo responsável por este fenômeno, de acordo com Darwin e Wallace, a seleção natural. O chamado 'Neo-Darwinismo', neste período, foi representado principalmente pela tradição biometrista, centrada em pesquisadores como Karl Pearson. Esta teoria coexistiu com várias outras 'Teorias Evolutivas' - como a Ortogênese, o Neo-Lamarckismo Americano e o Mutacionismo/Mendelismo – até que, por fim, nos anos de 20, 30 e 40 do século XX, ocorreu uma síntese moderna da biologia evolutiva [Veja o verbete da wiki sobre o chamado eclipse do Darwinismo] [12, 16, 17]. Antes da síntese haviam grandes disputas sobre COMO a evolução ocorria e quais os mecanismos básicos responsáveis pelos padrões biogeográficos e estratigráficos das biotas, mas o FATO da evolução já havia sido aceito consensualmente pela comunidade científica.
Porém, mesmo depois da síntese moderna da biologia evolutiva (que alguns chamam de teoria sintética da evolução ou mesmo Neo-darwinismo, para confundir ainda mais as coisas), o campo e a teoria evolutiva, em si, jamais deixaram de incorporar novas abordagens, hipóteses, teorias, modelos e estratégias de investigação. Ou seja, nesta período pós-sintético, a teoria evolutiva jamais deixou de ser corrigida, aperfeiçoada e expandida, ainda que certos cânones tenham permanecido bem firmes como a centralidade da genética evolutiva de populações. O desenvolvimento das teorias neutra e quase-neutra da evolução molecular desenvolvidas por Kimura, Jukes, King e Ohta [18, 19, 20] e o desenvolvimento das pesquisas em evolução molecular; a proposta do equilíbrio pontuado, por Gould e Eldrege [21, 22] e os crescentes estudos quantitativos em paleobiologia sobre o tempo e modo da evolução [23]; a incorporação da teoria dos jogos a evolução por John Maynard Smith [24, 25, 26] e a modelagem da evolução do altruísmo por Hamilton e Williams [27]; os debates sobre o nível e os alvos da seleção natural [28, 29]; as discussões e estudos sobre o impacto das restrições filogenéticas e desenvolvimentais na evolução [30, 31, 32,]; além do desenvolvimento de áreas com a genômica comparativa, bioinformática (possibilitadas pela criação de instrumentos de análise de sequências e pelo aumento da capacidade dos computadores) são todos exemplos de como a biologia evolutiva tem sido a ampliada e aperfeiçoada [33]. Para maiores detalhes sobre as mudanças na biologia evolutiva e contínuo aprimoramento da teoria evolutiva veja esta resposta de nosso tumblr.
Portanto, a moderna teoria evolutiva é uma teoria robusta, o que não quer dizer que seja completa, no sentido de ter respondido a todas as questões e esgotado os fenômenos, como vamos ver em seguida. Porém, o consenso sobre a realidade do fenômeno evolução jamais foi posto em dúvida de maneira séria após seu estabelecimento no seio da comunidade científica. Desta maneira, assim como ocorreu no passado, as propostas de uma síntese ampliada da biologia evolutiva (cuja suposta necessidade ainda é bem debatida) em nada abalam os consensos sobre a realidade da macroevolução e dos mecanismos, processos e princípios propostos, investigados e testados dentro da biologia evolutiva. Então, embora alguns biólogos evolutivos, como o finado Stephen Jay Gould [34], Robert L. Carroll [35], Sean B. Carroll [36], Massimo Pigliucci [37] e Gerd Muller [38], propuseram e propõem a necessidade de uma expansão da moderna síntese da biologia evolutiva, de modo que os avanços das últimas décadas sejam incluídos mais explicitamente na TE, isso em nada ameaça o consenso sobre a ancestralidade comum e a descendência com modificação, o que inclui o nosso parentesco com os chimpanzés, demais primatas e seres vivos em geral.
Em resumo, mesmo que a TE incorpore de maneira mais explícita os modelos de auto-organização e a teoria dos sistemas dinâmicos (como propõem Kauffman, Weber, Solé, Salazar-Ciudad) ou os processos 'físicos genéricos' como propõem (Muller e Newman), múltiplos sistemas de herança não-genéticos (como querem Lamb e Jablonka), incorpore uma teoria hierárquica macroevolutiva (como propõe Eldredge e propunha Gould), além de modelos evolutivos baseados em mecanismos e vieses não-adaptativos direcionais (como querem Arthur, Dover) ou estocásticos (como Lynch, Koonin, Nei, Stoltzfus, Hughes e Otha etc), estas adições (e mesmo mudanças de foco explicativo) não mudam o fato de que as evidências em peso mostram que somos parentes próximos dos chimpanzés, assim como não vai mudar o fato de sermos parentes mais distantes de outros seres vivos [9, 39, 40, 41, 42, 43, 44, 45, 46, 47, 48, 49].
------------------------------------------------------
Continua com a parte II ("Sobre revistas, criacionismo e portais de imprensa. Parte II") na qual encontram-se todas as referências citadas nas duas partes.
--------------------------
Créditos das figuras:
Amonita Fóssil: GEORGE BERNARD/SCIENCE PHOTO LIBRARY
Darwiin e colaboradores: NATURAL HISTORY MUSEUM, LONDON/SCIENCE PHOTO LIBRARY