Sunday December 04, 2011
Anonymous: Olá, não sei se a pergunta cabe a vocês, mas minha duvida é: o porque das doenças existirem? Porque o câncer exste? Porque nosso corpo tem essas imperfeições?
O paleontólogo, biólogo evolutivo e ensaísta Stephen Jay Gould escreveu na década de noventa um pequeno artigo na revista Science intitulado de “A Grande Assimetria” (“The Great Assimetry”) em que defendia que nossa capacidade de seguir caminhos morais e éticos duvidosos e tão facilmente descambar para o mal (discutindo especialmente a capacidade de utilização das ciências para fins nefastos) eram uma decorrência da fragilidade inerente a maneira como os sistemas complexos são gerados na natureza, o que resultaria em uma grande assimetria que pode ser percebida em nossa evolução cultural e biológica:
“O Homo sapiens não é uma espécie má ou destrutiva. Mas a arquitetura da complexidade estrutural, a grande assimetria do meu título, permite que se desfaça em momentos o que só pode ser construído em séculos. A tragédia humana essencial, e a verdadeira fonte de potencial utilização indevida da ciência para a destruição, reside na natureza inelutável desta grande assimetria, não no caráter do próprio conhecimento. Realizamos 10 mil atos pequenos, e sem qualquer registro, de bondade para cada infinitamente raro, mas, infelizmente, desequilibrante momento de crueldade” [1]
Estes sistemas originam-se através dos longos, tortuosos e contingentes processos evolutivos evolvendo mutações, seleção, migração, recombinação, deriva genética, fragmentação de habitats, solamento geográfico e reprodutivo etc. Surgindo, portanto, através da mudança incremental e errática, por meio de eventos oportunísticos, restringidos pelos materiais disponíveis e pela história pregressa de evolução. Devido aos múltiplos componentes e ao alto grau de integração entre eles, existiriam muito mais maneiras deles serem quebrados do que de serem restaurados. Neste sentido a perfeição seria uma quimera, especialmente em se tratando de organismos complicados como nós. Boa parte das doenças, portanto, poderiam ser explicadas desta forma, de forma análoga a perspectiva de Gould sobre a condição humana e os maus usos da ciência.
Podemos ir ainda mais fundo no processo de evolução e ressaltar que, como a variação herdável é aleatória (no sentido específico de que não prevê as necessidades do organismos) e depende de erros dos sistemas de replicação e reparo do DNA e de reprodução como um todo, boa parte desta variação acaba sendo neutra ou deletéria. Portanto, a própria fonte da capacidade dos seres vivos de se adaptarem ao longo das gerações é completamente dependente de imperfeições inerentes aos sistemas de replicação e reprodução que não poderiam ser fiéis demais.
A própria termodinâmica também nos oferece uma resposta, devido a limitação da eficiência dos processos termodinâmicos de conversão de energia e ciclagem de materiais (como fica patente ao observarmos a dissipação intrínseca associada aos processos bioquímicos e biofísicos mais fundamentais), a perda de ‘energia útil’ e o desgaste dos componentes passa a ser inevitável, mesmo que muitos processos biológicos alcancem uma impressionante eficiência. Como exemplo, nossa própria respiração celular produz uma quantidade de subprodutos altamente reativos (as espécies reativas de oxigênio, ERO) que causam lesões as biomoléculas e nas estruturas por elas formadas. Por causa disso, mesmo que lidar com o acumulo de avarias e de subprodutos indesejáveis seja possível, e executado em sistemas biológicos até certo ponto, nem sempre parece valer a pena fazê-lo de uma perspectiva evolutiva. [Este ponto específico será discutido mais adiante.]
De fato, nossa anatomia e fisiologia mostram imperfeições reveladoras (o que alguns se referem como “erros de projeto”) que são marcas históricas típicas de um processo não-planejado como a evolução biológica. Por exemplo, nosso sistema visual possui os nervosos exatamente no meio do caminho entre a luz e a camada de fotorreceptores. O nosso trato uro-genital e a nossa inervação faringeana são também merecedoras de destaque, pois ao invés de um caminho simples e direto, os canais e nervos, respectivamente, dos dois sistemas fazem um longo caminho e dão voltas por trás de outros órgãos que só fazem sentido quando nos damos conta que descendemos de ancestrais aquáticos sem pescoços e membros e, por causa disso, durante a evolução de nosso esqueleto axial e, mais tarde da nossa postura bípede, vários ajustes e remendos tiveram que ocorrer a partir dos padrões de organização ancestral dessas criaturas.
Essa dependência dos caminhos evolutivos passados, como colocam Nesse e Williams (1999), nos permite explicar também por que um ato tão simples como engolir pode ser fatal. Isso é assim por que nosso trato respiratórias e a passagem de alimentos intercruzam-se por que o início da abertura respiratória na superfície era compreensivelmente localizada no topo do focinho, levando a um espaço comum compartilhado com a via de passagem de alimentos, mais uma vez, em um ancestral aquático semelhante aos peixes pulmonados atuais. Então, simplesmente, por que a evolução por seleção natural não pode começar do zero, e redesenhar todas as vias de modo a evitar tais bizarrices anatômicas, mais apenas agir sobre modificações sobre o que já existe, os seres humanos acabaram por estarem expostos aos risco de que alimentos entupam a abertura para os nossos pulmões.
Outros exemplos também podem ser encontrados no ótimo livro do paleobiólogo e biólogo do desenvolvimento Neil Shubin, “A História de quando éramos peixes” (2008) e o artigo da Scientific American Brasil, “Se os humanos fossem feitos para durar” de Oshlasnky e colaboradores (2002), neste link do TalkOrigins. , e no próprio artigo de Randolph Nesse e de Geoge C. Williams (1999) também publicado na Scientific American, “Evolution and the origin of disease”.
A mensagem aqui é que não fomos projetados a partir do zero, mas sim produtos contingentes da evolução, cujo estudo pode sim nos ajudar a compreender muitos dos problemas que experimentamos ao longo de nossa vida.
Nesse e Williams (1999) resumem as 'imperfeições’ de nossos corpos e sistemas fisiológicos em termos da explicações evolutivas em cinco categorias:
Restrições/coerções
Trade-offs adaptativos ('soluções de compromisso’)
Sistemas de defesa
Conflitos evolutivos
Efeitos da entrada em novos ambientes
1) As restrições podem ser exemplificadas através dos casos já mencionados da retina e dos sistemas uro-genital e inervação vagal do coração, já que a forma como estavam organizadas os detalhes da anatomia e fisiologia dos nossos ancestrais restringe o que pode ser 'alcançado’ através da evolução de seus descendentes. Aqui a estrutura de nossa retina se sobressai como exemplo, já que outro grupo de animais, os cefalópodes, como os polvos lulas, também possuem olhos com câmaras e lentes, mas por que evoluíram de ancestrais com uma organização morfofisiológica distinta, possuem retinas bem menos problemáticas sem as nossas, isto é, sem um ponto cego e com a camada foto-sensível localizada na frente da camada nervosa, portanto, sem obstruções a passagem da luz.

Autor/uploader: Philcha Fonte: wikicommons
2) Os trade-offs são um outro fenômeno bastante importante em se tratando de evolução adaptativa e podem ser explicados também pela natureza complexa dos seres vivos e as múltiplas atividades fisiológicas e interações ecológicas que desempenham enquanto tais. Estes fatos tornam muito difícil satisfazer essas várias demandas adaptativas diferentes, principalmente quando são contraditórias, ao mesmo tempo. A chamada 'pleiotropia antagônica’ é um caso especial de trade-offs adaptativos que surge a partir do fenômeno conhecido como 'pleiotropia’, em que um determinado gene afeta vários processos fisiológicos e desenvolvimentais, podendo atuar em várias fases da ontogenia. Por causa disso, das várias características que uma dada variação genética pode influenciar, algumas delas podem ser vantajosas e outras prejudicais e o seu valor adaptativo final envolverá um balanço entre essas diversas características e a importância do fenótipos por elas controlados do ponto de vista evolutivo. Os trade-offs seriam, portanto, 'soluções de compromisso’ entre essas diversas demandas e pressões adaptativas associadas as limitações inerentes a oferta de variação genética e a composição demográfica particular de cada população biológica.
A senescência e o envelhecimento, e a concomitante perda da capacidade de reparar danos e responder a agentes infecciosos, podem ser compreendidas ao reconhecermos que o principal diferencial evolutivo é a replicação/reprodução, e isso pode ocorrer mesmo que as custas da longevidade dos indivíduos. Enquanto organismos unicelulares conseguem (pelo menos, em teoria) replicar-se indefinidamente (não envelhecendo, portanto), algo muito diferente acontece em seres multicelulares, como nós, nos quais ocorre uma divisão muito precoce entre as linhagens celulares que compõem o nossos corpos (as linhagens
As linhagens germinativas acabam sendo privilegiadas neste processo. Por isso apenas este segundo tipo de linhagem celular pode ser considerada potencialmente imortal. Por isso, mutações somáticas especialmente as que acometem aos indivíduos tardiamente ou cujos efeitos são sentidos após o auge reprodutivo dos indivíduos tem pouca influência sobre seu sucesso reprodutivo e por isso podem se acumular mais do que outros tipos de mutações que envolvem os gametas ou a fertilidade de modo mais geral.
Estas considerações são apoiadas por vários estudos têm sugerido que muitas doenças crônicas cardiovasculares e metabólicas, por exemplo, são na verdade resultado da ’pleiotropia antagônica’ em que uma série de alterações vantajosas em uma fase inicial da vida acabam por trazer efeitos deletérios em idades mais avançadas, mas como aumentam as chances dos indivíduos que as possuem de deixarem mais descendentes espalham-se rapidamente pelas populações.
Este modelo foi proposto originalmente por George C. Willians, ainda nos anos 50, para explicar a senescência e o envelhecimento. O modelo justifica por que problemas que acometem os indivíduos mais velhos seriam invisíveis a um tipo particular de seleção natural, conhecida como seleção purificadora, já que acometeriam os indivíduos bem depois de seu auge reprodutivo e vários modelos matemáticos e alguns estudos experimentais tendem a confirmar que reprodutores precoces (mesmo as custas de morte prematura) acabam por dominar os reprodutores tardios. Em contrapartida, estudos em que se selecionam artificialmente reprodutores tardios tendem a mostrar que, após algumas dezenas ou centenas de gerações, as populações tornam-se mais longevas, mas ao mesmo tempo tais organismos exibem uma maior propensão a acumular mutações em suas células germinativas o que leva a menores taxas reprodutivas, já que mais ciclos de replicação de DNA se passam antes que seus gametas formem novos organismos. Portanto, a conexão entre os processos parece bem robusta.
3) O terceiro item foge um pouco dos demais e depende do reconhecimento que muitos dos sintomas e sinais associados as doenças (e que podem até mesmo nos matar) são, de fato, partes da estratégias de resposta a infecções, traumas teciduais e doenças dos organismos. Tosses, febre, espirros, dor, prostração e inflamação podem funcionar como formas de expulsar muco e os corpos estranhos, economizar energia durante o combate a infecções, ativar sistemas de citocinas em resposta a certos tipos de patógenos e como decorrência direta de vasodilatação e aumento da permeabilidade vascular associadas a migração de células de defesa para os focos de infecção e trauma. O problema é que, além de desregulação de respostas, alguns patógenos podem se aproveitar dessas estratégias em proveito próprio ao longo da evolução, intensificando e desregulando essas respostas.
4) Em quarto lugar temos os conflitos que desde a evolução da multicelularidade, os corpos dos organismos formados por várias células e tecidos complexos, tornam-se excelentes habitas e fontes de nutrição em potencial para vários seres vivos desde ectoparasitas como carrapatos e piolhos até para endoparasitas e agentes infeciosos como bactérias e vírus. Neste caso as doenças são o resultado da “corrida armamentista” evolutiva em que nós e os parasitas estamos envolvidos sendo uma aspecto da co-evolução. Estes seres beneficiam-se da estabilidade de nossos sistemas homeostáticos e podem desta maneira nos tornar parte dos seus 'nichos ecológicos’. Como já aludido, está corrida pode envolver a co-optação dos próprios sistemas e reações de defesa do hospedeiro para aumentar sua transmissibilidade e eficiência de replicação.
Contudo, o que mais impressionante é o fato que nossas próprias celulas podem agir como parasitas. Vários tipos de tumores e cânceres seguem uma dinâmica evolutiva e ecológica muito similar ao que ocorre com organismos autônomos de verdade. Mutações que permitam que certas linhagens celulares multipliquem-se e expandam-se para outros órgãos são claramente vantajosas e rapidamente fariam que as células portadoras dominassem as demais [2]. Isso geralmente ocorre quando genes ligados ao controle da proliferação celular sofrem mutações que permitem às linhagens evadam os sistemas de controle de proliferação tecidual, como inibição por contato, reparo de telômeros, necessidade de fatores de crescimento, as barreiras físicas entre os tecidos como a matriz extracelular e morte celular programada. Com a diferença que essas linhagens tumorais que não possuem a capacidade de transmissão estão fadadas a extinção quando ocorrer a morte de seu 'hospedeiro, mas ainda assim este destino é análogo a alguns eventos de extinção de organismos vivos ligados a exaustão dos recursos ambientais por excesso de crescimento populacional. Em alguns casos algumas dessas linhagens tumorais conseguiram sobreviver aos seus hospedeiros, seja com uma ajuda humana, como no caso das linhagens celulares imortais utilizadas em pesquisa, como, a HeLa, ou em casos realmente assustadores, através de processos evolutivos, tornando-se tumores infeciosos transmissíveis, como os que acometem certos canídeos e marsupiais como o diabo da Tasmânia.
5) Por fim, chegamos ao quinto item. Certas doenças podem surgir como resultado de mudança de ambientes e a falta de tempo para que a evolução adaptativa ocorra pode responder por algumas doenças humanas também como parece ser o caso de certas populações que até bem pouco tempo atrás viviam em condições de escassez de alimentos. Nestas condições os indivíduos mais capazes de acumular calorias em tecidos adiposos mesmo a partir da baixa ingestão teriam sido favorecidos pois podiam manter homeostasia e o funcionamento mínimo de seus corpos mesmo quando os alimentos escasseavam, já que dispunham de reservas adicionais. Porém, devido a mudanças socioeconômicas e culturais, alguns desses povos foram inundados por uma oferta de calorias através de carboidratos e gorduras abundantes que deflagrou uma epidemia de diabetes e obesidade, como no caso de habitantes de certa silhas do pacífico. Este fenômeno enquadraria-se como um caso especial d chamada “hipótese do gene poupador”, “The Trift
Nestas populações modernas tal predisposição estaria associada a variantes específicas de certos genes como os da apoliproteína E (ApoE), envolvidos no transporte de gordura, mas no caso do resto da população humana esta variação estaria distribuída por um grande número de variantes genéticas de vários loci diferentes, que teria sido historicamente vantajosas para as populações de caçadores coletores que predominaram ao longo da evolução humana (ou dos primeiros agricultores) , explicando sua abundância atual a despeito das desvantagens atreladas a este tipo de genótipos nas condições atuais, com propensão a obesidade, alta pressão sistólica e diabetes. Esses genes e suas variantes possivelmente estariam associados ao controle do transporte, armazenamento, conversão e absorção de açucares e gorduras e também da retenção e eliminação/excreção de sais e água.
Existem vários candidatos em potencial com vários níveis de apoio empírico para estes genes, mas algumas questões ainda não estão bem resolvidas e precisamos manter um certo cuidado. Este modelo, além de ser utilizado para explicar a rápida escalada da obesidade e diabetes entre os habitantes de ilhas do Pacífico Sul, com as ilhas Samoa (em que foram introduzidos recentemente hábitos dietários ocidentais) também são empregadas para explicar fatos similares entre habitantes da África Subsaariana, entre populações nativas do sudoeste dos Estados Unidos, e nos Inuit [3].
A ansiedade e vários distúrbios ligados ao estresse psicossocial, que predispõem a uma série de condições como problemas cardiovasculares, diabetes, supressão imunológica e até mesmo a doenças neurodegenerativas, talvez possam também serem explicadas pela mudança de ambiente sociocultural. O estresse agudo pode ser visto (não só em humanos, mas também em outros animais) como um sistema de resposta ao perigo a iminência do ameaças, a conhecida “resposta de fuga ou luta”. Porém, caso estes sistemas, como os do eixo neuroendócrino HPA (Hipotálamo-Pituitária-Adrenal), sejam ativados cronicamente em base diárias em resposta a 'ameaças’ psicossociais (reais ou presumidas) que surgem em uma sociedade hierarquizada e competitiva, podem levar a sérios problemas de saúde.
Voltando aos processos moleculares responsáveis pela hereditariedade e evolução, como já aludido, normalmente, as mutações deletérias que diminuem as capacidades de sobrevivência e reprodução dos organismos acabam sendo 'purgadas’ seleção purificadora mas, também, como vimos antes, mutações de efeito mais tardio tendem a ser mais dificilmente eliminadas, simplesmente, por serem menos visíveis a seleção natural. Isso é especialmente verdade para aquelas associadas as linhagens somáticas, muitas dais quais estão envolvidas da geração de tumores e outros tipos de neoplasias. Porém, mesmo mutações que interfiram com o sucesso reprodutivo dos indivíduos mais jovens podem acumular-se em algumas situações. Isso é especialmente verdade em situações em que a eficiência da seleção natural é diminuída, como quando há a diminuição dos tamanhos efetivos das populações. Esta situação provoca o aumento do poder da deriva genética aleatória, ou seja, o efeito de flutuações ao acaso nas taxas de sobrevivência e reprodução dos indivíduos que podem levar a distorções na representação dos genes de uma geração para outra.
O tamanho das populações é fator chave na evolução biológica e pequenas populações também podem precipitar a ocorrência de outro fenômeno que se convencionou chamar de “Catraca de Muller”, batizado assim por Joseph Felsenstein, em homenagem ao geneticista H. J. Muller.
A Catraca de Muller é um fenômeno particularmente importante em populações que se reproduzem de forma não-sexuada e que não sofrem recombinação. Isso acontece por que na reprodução assexuada os genomas são herdados em bloco e, uma vez que o genoma com menos mutações, em uma população assexuada, contenham pelo menos uma mutação deletéria, nenhum genoma com menos mutações será encontrado em gerações futuras, exceto como resultado de raras mutações de reversão. E é isso que provoca um acúmulo eventual de mutações desvantajosas que constituem o que ficou conhecido como “carga genética”. O termo “catraca” serve para ilustrar a potencial unidirecionalidade do processo de acumulo de mutações deletérias por efeitos da deriva genética.
Mas como isso ocorre exatamente? Em geral, a seleção purificadora opõe-se à fixação na população dessas mutações, mas, caso o efeito prejudicial dessas mutações seja bem pequeno a catraca pode continuar rodando em apenas uma direção. Este processo pode ser agravado na ausência de recombinação (e de mutações de reversão que geralmente são bem raras), principalmente se associadas a altas taxas de mutação e enfraquecimento da seleção purificadora [4]. Mas mesmo em organismos que se reproduzem sexuadamente, porções cromossômicas que não sofrem recombinação como certos trechos do cromossomo Y de mamíferos ou em organelas qeu contem seu próprio DNA como as mitocôndrias e cloroplastos, a Catraca de Muller pode estar em ação.
Nestas condições, mutações ligeiramente deletérias acumulam-se por causa da perda de eficiência da seleção purificadora e da recombinação diminuída por causa do efeito de endogamia e do aumento dos homozigotos [5] de uma forma que também é função da taxa de mutação. Em teoria, a carga genética de populações assexuadas poderia, eventualmente, torna-se tão grande que a população se extinguiria, pois após várias gerações esse acúmulo de mutações deletérias poderia resultar em um diminuição progressiva da aptidão média da população, fazendo com que as taxas de mortalidade (sobretudo, precoce) excedessem as taxas de natalidade, levando à extinção por um colapso mutacional ou, pelo menos, fragilizando a população, deixando-a à beira de um vórtice de extinção [6].
Paradoxalmente, porém, os efeitos da deriva genética associadas a diminuição dos tamanhos das populações efetivas dos organismos (especialmente na transição de procariontes para eucariontes e, mais intensamente, na dos eucariontes unicelulares para eucariontes multicelulares) pode ter sido essencial para a evolução da complexidade biológica que vemos nos animais e plantas. Nestas situações mesmo que, por causa da baixa eficiência da seleção, as populações corram maior risco de serem extintas através de um colapso mutacional (ou por chegar na beirada de um vórtice de extinção), ao mesmo tempo, passa ser bem mais fácil acumular mutações mais extensas que permitem 'embelezamentos’ genômicos e proteômicos que podem ter dado origem a complexa rede de controle genético-desenvolvimental dos seres multicelulares mais recentes.
Sistemas de controle genético e de diversificação de função como introns, regiões UTRs elementos Cis-regulatórios, etc que em um primeiro momento, mesmo sendo desvantajosos, poderiam ainda assim acumular-se por causa do aumento de poder da deriva genética. Desta maneira, ocorreria o aumento das freqüências desses elementos nas populações que seria facilitado por mutações adicionais que 'remendariam’ tais mutações e, eventualmente, ao produzir novas funções (e um melhor sistemas de regulação) poderiam, aí sim, conferir, grandes vantagens que fariam que os indivíduos portadores espalhassem essas características pela população, através da seleção natural positiva. Algo equivalente foi proposto para explicar a evolução das rede de interações entre proteínas e a dos complexos multi-protéicos que cumprem papéis fundamentais no controle das atividades celulares e fisiológicas dos organismos vivos. Neste modelo, estas interações surgiriam em um primeiro momento apenas por causa do acúmulo de mutações deletérias que aumentariam a instabilidade delas e que a formação de complexos proteína-proteína serviria como maneira de restituir a estabilidade das proteínas. Estes complexos, entretanto, teriam aberto novas oportunidades de regulação intracelular que teriam possibilitado a evolução dos animais e plantas.
Várias evidências, por exemplo, mostram que as cadeias polipeptídicas que em eucariontes multicelulares de populações pequenas formam complexos de várias proteínas são bem menos estáveis estruturalmente do que seus equivalentes 'solitários’ em procariontes ou eucariontes unicelulares que possuem grandes populações. Porém, quando essas cadeias polipeptídicas estão unidas, formando os agregados multi-protéicos, a estabilidade de cada cadeia é equivalente a das cadeias solitárias dos organismos mais simples e com populações maiores. Esses e outros resultados fez com que alguns cientistas, como Michael Lynch, sugerissem que a evolução de proteínas complexas compostas de múltiplas cadeias, e de outras interações proteína-proteína, teria ocorrido, originalmente, como forma de compensar esta perda de estabilidade estrutural causada pelo acúmulo de várias pequenas mutações na superfície das proteínas que as tornavam menos estáveis. Este processo de acumulo de erros seguidos de reparos que, apenas mais tarde, seriam co-optados para novas funções e na formação de novas estruturas pode ter sido o que permitiu a evolução da complexidade biológica.
Porém, este mesmo processo deixou os seres multicelulares, especialmente os mais complexos e com populações menores, mais sensíveis a vários tipos de problemas como doenças degenerativas que ocorrem por causa prolemas no enovelamento e agregação de proteínas, tais como o mal de Alzheimer, Parkinson, coréia de Huntington etc que, além de tudo, por acometerem indivíduos mais velhos, seriam muito menos 'visíveis’ à seleção natural. Portanto, mesmo que as populações aumentassem, como tem acontecido nos últimos milênios, ainda assim teríamos poucas perspectivas de nos livrar destas fragilidades. Então, neste sentido as doenças e a senescência seriam parte do preço que pagamos pela evolução da complexidade, sendo também uma mostra da importância de processos estocásticos não-adaptativos como a deriva genética, e da extrema contingência da seleção natural.
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Notas:
[1] “Homo sapiens is not an evil or destructive species. But the architecture of structural complexity—the great asymmetry of my title—permits moments to undo what only centuries can build. The essential human tragedy, and the true source of science’s potential misuse for destruction, lies in the ineluctable nature of this great asymmetry, not in the character of knowledge itself. We perform 10,000 acts of small and unrecorded kindness for each surpassingly rare, but sadly balancing, moment of cruelty.”
Gould, Stephen Jay The Great Asymmetry Science 6 February 1998: 279 (5352), 812-813. DOI:10.1126/science.279.5352.812 .
[2]A dinâmica evolutiva e ecológica das próprias células tumorais pode também sofrer o impacto de processos evolutivos ao nível do organismo como um todo, como o efeito da fixação de mutações ligeiramente deletérias que espalham-se pela população através da deriva genética que veremos mais adiante ou em consequência da seleção natural de mutações vantajosas a curto prazo, mas que aumentem o risco de câncer a longo prazo, compensado pelo aumento a fertilidade dos indivíduos portadores, sendo outro exemplo de pleiotropia antagônica.
Weinstein BS, Ciszek D. The reserve-capacity hypothesis: evolutionary origins and modern implications of the trade-off between tumor-suppression and tissue-repair. Exp Gerontol. 2002 May;37(5):615-27. Review. PubMed PMID:11909679.
[3] O maior problema com esta hipótese, entretanto, encontra-se em uma de suas pressuposições de base (pelo menos, em sua formulação original proposta por Neel em 1962), a de que sociedades de caçadores-coletores experimentariam em média e de forma mais regular e mais graves episódios de escassez de alimentos do que os agricultores sedentários ou a versão oposta em que seriam nos períodos após os advento da agricultura que seriam marcados por essas oscilações associadas ao empobrecimento dietário intimamente associado ao consumo de produtos ricos em amido. Através de comparações estatísticas transculturais entre a quantidade de alimentos disponíveis e a freqüência e extensão dos períodos de escassez de alimentos entre 94 sociedades extrativistas e agrícolas, alguns cientistas não foram capazes de encontrar diferença estatisticamente significantes na quantidade de alimentos disponíveis, ou a freqüência ou a extensão dos eventos de escassez de alimentos entre sociedades forrageiras pré-industriais, forrageiras recentes, e de agricultores.
Benyshek DC, Watson JT. Exploring the thrifty genotype’s food-shortage assumptions: a cross-cultural comparison of ethnographic accounts of food security among foraging and agricultural societies. Am J Phys Anthropol. 2006 Sep;131(1):120-6. PubMed PMID: 16485298.
Além disso, a capacidade de sobrevivência aos períodos de escassez de alimentos e forme não parecem correlacionar-se bem com a capacidade de reter gordura, por exemplo, e seu impacto sobre a reprodução diferencial é difícil de prever. John Speakman propôs outra hipótese alternativa para explicar a abundância desses elos associadas a doenças metabólicas e cardiovasculares, The Drify Gene Hypothesis, ou “Hipótese do gene Derivante”, em que a liberação da predação e consequente redução da seleção natural sobre os genes que regulam o limite máximo do conteúdo total de gordura, tenham possibilitado o aumento de freqüência de variantes que possibilitam uma maior retenção de gordura que, tornam-se deletérias em certas condições. Esta segunda hipótese também têm seus problemas, mas ambas mostram como nosso passado evolutivo pode influenciar nossa saúde nos dias de hoje.
Speakman JR. Thrifty genes for obesity, an attractive but flawed idea, and an alternative perspective: the 'drifty gene’ hypothesis. Int J Obes (Lond). 2008 Nov;32(11):1611-7. Epub 2008 Oct 14. PubMed PMID: 18852699.
Prentice AM, Hennig BJ, Fulford AJ. Evolutionary origins of the obesity epidemic: natural selection of thrifty genes or genetic drift following predation release? Int J Obes (Lond). 2008 Nov;32(11):1607-10. Epub 2008 Oct 14. PubMed PMID: 18852700.
[4] A catraca de Muller é um processo fortemente dependente da deriva genética, tornando-se mais rápido em populações menores. Por causa disso tal processo estabeleceria limites ao tamanho máximo de genomas assexuados e ao tempo de continuidade evolutiva de linhagens assexuadas, ainda que algumas linhagens assexuadas, como dos rotíferos Bdelóides, por exemplo, tenham se mantido assim por dezenas de milhões anos.
[5] Isso ocorreria por que através do sexo e da recombinação seria possível combinar a variação deletéria em um único indivíduo que ao perecer levaria com ele boa parte dos alelos desvantajosos, restaurando assim os genomas mais saudáveis. Este modelo é um dos propostos para explicar as vantagens da reprodução sexual.
Kondrashov AS. Deleterious mutations and the evolution of sexual reproduction. Nature. 1988 Dec 1;336(6198):435-40. Review. PubMed PMID: 3057385.
[6] Alguns pesquisadores temem que isso possa ocorrer (ou já esteja ocorrendo) com as populações humanas, especialmente, por que as evidências, como antes comentado, indicam que nos recuperamos de alguns gargalos de garrafa recentes e que temos muita variação ligeiramente deletéria acumulada, e a seleção natural parece não estar operando de maneira tão eficiente em países mais abastados por causa dos desenvolvimento tecnocientíficos, na produção de alimentos e sanitários [veja aqui].
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Literatura Recomendada:
Ball, Philip [publicado on line em 18 de maio de 2011] The Achilles’ heel of biological complexity Nature News doi: 10.1038/news.2011.294.
Benyshek DC, Watson JT. Exploring the thrifty genotype’s food-shortage assumptions: a cross-cultural comparison of ethnographic accounts of food security among foraging and agricultural societies. Am J Phys Anthropol. 2006 Sep;131(1):120-6. PubMed PMID: 16485298.
Chakravarthy MV, Booth FW. Eating, exercise, and “thrifty” genotypes: connecting the dots toward an evolutionary understanding of modern chronic diseases. J Appl Physiol. 2004 Jan;96(1):3-10. Review. PubMed PMID: 14660491.
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Crédito da Figura:
GARY BROWN/SCIENCE PHOTO LIBRARY
Grande abraço,
Rodrigo