Sunday December 23, 2012
Anonymous: qual a diferença entre hereditariedade e herdabilidade? e como podemos medi-las?
Os dois termos podem muitas vezes serem usados como sinônimos referindo-se simplesmente a propriedade de alguma característica fenotípica poder ser passada através das gerações. Porém, o termo herdabilidade frequentemente é empregado em um sentido bem mais técnico. Em estudos dos padrões de herança de características quantitativas, como peso, altura, produtividade de leite, Q.I. ou mesmo os riscos de se desenvolver certas doenças - que estão dentro do escopo da genética quantitativa (isto é de características quantitativas influenciadas por muitos genes diferentes)- o termo herdabilidade (H2) refere-se a uma medida da proporção da variabilidade da característica fenotípica em uma população que pode ser atribuída a variação genética e não a variação ambiental. Sendo assim a herdabilidade nos permite comparar a importância relativa dos genes e do ambiente em relação a variação das características dentro e entre populações em certos ambientes.
A forma tradicional de verificar se uma característica é herdável ou não é por meio de cruzamentos controlados entre indivíduos de duas populações selecionadas dos extremos de uma distribuição fenotípica da geração parental. Caso a distribuição da prole dos dois grupos for significantemente diferente uma da outra, a característica é considerada herdável e caso a distribuição da característica dos dois grupos seja similar a da geração parental a característica é considerada não herdável.
A ideia de medir a herdabilidade de uma característica fenotípica origina-se na ideia que os fenótipos observados (F) podem ser divididos, tendo como base um modelo estatístico, em componentes genéticos, representando a contribuição dos genótipos diferentes não observados (G), e componentes não-genéticos que representariam os fatores ambientais (A) também não observados, o que faz bastante sentido de acordo com modelos biologicamente plausíveis sobre as relações entre ‘natureza’ e ‘ambiente’.
Existem entretanto vários mal entendidos e controvérsias envolvendo este conceito, sua aplicação e sua interpretação, mas ainda assim a herdabilidade é um medida chave em estudos de seleção natural em biologia evolutiva e seleção artificial envolvendo as práticas de melhoramento genético da agricultura e pecuária, também desempenhando um papel importante nos estudos sobre fatores de risco genéticos associados a várias doenças humanas. Porém, como ressalta Griffths et al. (2000) saber se a variação em uma característica quantitativa observável é influenciada pelos genes não é o mesmo que saber se os genes influenciam aquela característica de alguma forma e nem o quanto estes genes influenciam esta característica em um indivíduo. Por isso tenha em mente estas ressalvas:
O primeiro ponto que merece atenção é que a herdabilidade tem como base modelos sobre as contribuições genéticas e ambientais que explicam a variação fenotípica em uma população e não em um indivíduo, medidas em termos da variância (uma medida estatística dos desvios em relação a média da população) dos fenótipos observáveis(σ2F) que desta maneira pode ser expressa como uma soma das variâncias não observáveis subjacentes, isto é, genética e ambiental, respectivamente, σ2G e σ2A:
Deste modo a herdabilidade é definida como a razão entre as variâncias, expressando a proporção da variação fenotípica que pode ser atribuída a variância dos valores genotípicos, o que nos dá a herdabilidade em sentido amplo (H2):
Porém, ainda é possível ser mais específico e dividir a variância genética em sub-componentes, como a variância resultante dos efeitos genéticos aditivos* (σ2AdG), a dos efeitos genéticos das interações entre alelos de um mesmo locus, isto é, a resultante dos efeitos de dominância (σ2DG) e aquela derivada dos efeitos genéticos da interação entre alelos em diferentes loci, isto é, resultantes da epistasia (σ2EG):
Esta subdivisão da variância genética é importante por que uma delas, a variância aditiva (σ2AdG), é de a maior interesse para estudos de evolução e melhoramento genético pois reflete a proporção da variância genética que responde a seleção natural e artificial, o que dá origem a chamada herdabilidade em senso estrito (h2):
A variância ambiental (σ2A), a exemplo da variância genética, também pode ser subdividida em subcategorias como: (i) a variância ambiental específica (σ2Aes), que refere-se ao desvio em relação a média populacional devido às condições ambientais que são singularmente experimentadas por cada indivíduo, o que no jargão estatístico é chamado de ‘erro ou variação residual’ (equivalente ao ‘ruído’ estocástico); (ii) a variância geral ambiental (σ2AGe) que é aquela atribuível às fontes não genéticas de variação entre os indivíduos que são vivenciadas por vários indivíduos em uma população (tipicamente o maior componente da variância em populações em relação a condições naturais); e (iii), a variância da interação genótipo x ambiente (σ2A*E) que envolve as respostas únicas ou diferentes de diferentes genótipos a variação ambiental geral.
Aqui é importante voltarmos a um conceito já discutido em outras ocasiões, o de ‘normas de reação’ (veja esta resposta de nosso tumblr, por exemplo) que é diretamente ligado ao conceito, também muitas vezes mencionado em outras respostas, de plasticidade fenotípica. Ambos conceitos dizem respeito a gama de fenótipos que cada genótipo pode gerar em diferentes condições ambientais. As normas de reação por exemplo são geralmente representadas por gráfico em que um determinado parâmetro fenotípico é plotado em um eixo com a variação de um parâmetro ambiental plotada em outro eixo e com cada uma das linhas (ou curvas) representando um genótipo distinto.
Na figura abaixo podemos observar genótipos distintos cujos fenótipos que podem gerar são representados por linhas com cores distintas, com os genótipos em 1A respondendo de maneira similar à mudança constante na disponibilidade de água, enquanto os genótipos em 1B apresentam respostas bem variáveis e distintas umas das outras. A principal consequência da existência de normas de reação e da plasticidade fenotípica é que dependendo da combinação de genótipos amostrada nos estudos e do conjunto de ambientes em que eles são avaliados, e em que as respostas fenotípicas médias são estimadas, é possível obter herdabilidades bem distintas e não extrapoláveis para outros conjuntos de ambientes e composições genotípicas populacionais diferentes.
Por causa destas complicações, muitas vezes a variância ambiental não é subdividida em fatores específicos, sendo a variância σ2Aes igualada a σ2A. Porém, em algumas situações mais controladas em que é possível grande controle experimental, é até mesmo possível dar um passo adiante e subdividir tanto a variância genética como a ambiental de uma característica, como peso ao nascer da prole, de modo a incluir os efeitos maternos genéticos e ambientais, aumentando ainda mais o detalhamento do modelo. Porém, mesmo estes modelos são bastante simplificados e a divisão da variância fenotípica (como mostrada na segunda equação) dos componentes apresentados toma como certa a ausência de covariância entre genótipo e ambiente (σG, E), assim como em geral ignora a existência de interações entre o genótipo e ambiente (G*E) de modo que uma divisão mais completa seria, caso haja G*E, F= G+E+G*E e F=G+E+G,E, caso haja covariância, o que por fim resultaria na equação abaixo:
A covariância entre genes e ambiente ocorrerá sempre que os diferentes genótipos presentes em uma dada população não estiverem aleatoriamente distribuídos em relação aos diferentes ambientes o que poderá confundir as estimativas de herdabilidade da característica, enquanto que a interação entre genes e ambiente é resultado dos efeitos não lineares multiplicativos que certos ambientes podem ter em certos genes e alelos e não em outros que podem diferir bastante. Infelizmente tanto a covariação G e A, como a interação G*A são na maioria das vezes ignoradas, muitas vezes pelo simples fato de não poderem ser estimadas a partir dos delineamentos observacionais típicos de estudos em seres humanos em que não é possível intervir experimentalmente controlando ambientes e fazendo cruzamentos adequados. Porém, caso um destes fenômenos esteja presente, existem boas chances da medida da herdabilidade ser muito pouco confiável, pois ao ignorar-se a covariação entre genótipos e ambientes poderá implicar na inflação das estimativas da variância genética (σ2G), enquanto isso, ao ignorar-se a interação entre genótipos e ambientes específicos poderá resultar na inflação das estimativas da variância ambiental (σ2A).
Deixando estas complicações de lado, geralmente a herdabilidade é estimada a partir de delineamentos simples como a correlação dos fenótipos de pais e filhos (prole e progenitor), a correlação entre irmãos e meio-irmãos, e através das diferenças nas correlações entre pares de gêmeos monozigóticos (MZ) e dizigóticos (DZ). Outra maneira muito usada para estimar a herdabilidade (h2) especialmente em estudos de melhoramento genético ou em ambiente laboratorial é por meio da razão entre a resposta observada a seleção ® em relação ao diferencial seletivo observado (S), h2=R/S em experiências de seleção artificial, o que resulta na famosa “equação dos criadores”, o R=h2S.
Por exemplo, acima podemos observar como a h2 (i.e. herdabilidade em sentido estrito) pode ser estimada a partir da regressão dos valores fenotípicos da prole sobre a média dos valores fenotípicos dos pais.
Muitos problemas podem aparecer na hora de estimar herdabilidade principalmente quando ela é feita a partir das semelhanças observadas e esperadas entre parentes, Isso ocorre por que é sempre necessário partir de um modelo que especifique a semelhança esperada em termos de fatores genéticos e ambientais e é aí que os problemas aparecem.
Algumas vezes este procedimento é bem direto e modelos simples podem ser facilmente justificados, como, por exemplo, se faz ao se postular que a semelhança observada entre vacas leiteras meias-irmãs em fazendas diferentes é devida exclusivamente a fatores genéticos aditivos herdados do progenitor que ambas têm em comum. Porém, em outras circunstâncias, os pressupostos do modelo empregado podem ser bastante questionáveis. Por exemplo, na análise de gêmeos humanos, é geralmente pressuposto que a semelhança entre os gêmeos monozigóticos e dizigóticos, devido ao ambiente compartilhado, é a mesma, mas isso não é necessariamente verdade tanto para ambientes intra-uterinos como para o ambiente pós-natal já que as similaridades entre os gêmeos monozigóticos podem influenciar a maneira como eles são tratados pelos seus pais e outros indivíduos que tem contatos com eles.
Mesmo estudos envolvendo gêmeos MZ criados juntos e separados muitas vezes não oferecem uma controle ambiental adequado e dependem de pressupostos não examinados, ou que quando são examinados acabam sendo considerados falhos. Isso ocorre por que além de informações detalhadas dos ambientes frequentemente não serem fornecidas, muitos dos gêmeos criados separados, na realidade não foram criados tão separados assim. Algumas vezes sendo criados por parentes próximos ou por famílias que vivem nas mesmas comunidades e que são sócio-economicamente muito semelhantes. Outras vezes os gêmeos só foram separados em idade mais adiantadas ou quando foram separados em idades mais precoces, já haviam se encontrado anos antes dos estudos em que suas características foram analisadas.
Além do mais, em estudos envolvendo o melhoramento genético, ou executados em laboratórios de modo mais geral, graças a possibilidade de grande controle dos ambientes (e da possibilidade de serem efetuados cruzamentos controlados, trabalhar-se com linhagens geneticamente homogêneas e mesmo controlar detalhes dos ambientes pre-natais (como por troca de embriões entre fêmeas com diferentes panos de fundo genéticos ou distintos históricos de desenvolvimento)), os parâmetros envolvidos no modelo podem ser determinados com muito maior precisão, o que é raramente o caso dos estudos epidemiológicos e observacionais feitos em seres humanos, ainda que muitos deles sejam bem consistentes ao serem replicados nas mesmas populações e até em populações diferentes.
Felizmente, delineamentos mais modernos e ferramentas de modelagem mais precisas, como as equações estruturais, têm sido empregadas nestes estudos e prometem corrigir e compensar as deficiências das estimativas obtidas por estudos observacionais em seres humanos, mas muito ainda precisa ser feito para aumentar a confiabilidade e mesmo a relevância destas estimativas especialmente sobre características que dependem de escalas extremamente artificiais e cuja interpretação ainda é muito controversa, como é o caso dos estudos sobre Q.I..
Concluindo:
Por fim, sempre que se discutem estudos sobre herdabilidade aparecem uma série de equívocos que se originam da interpretação do significado exato do que é medido e naquilo que podemos extrapolar estas estimativas. Por exemplo, é importante frisar que a herdabilidade não é a proporção de um dado fenótipo que é genética. Isso nem faz muito sentido pois os fenótipos surgem da interação ente os genes, o organismo em desenvolvimento e o ambiente. A herdabilidade é apenas a porcentagem de variação fenotípica em uma população que pode ser atribuída a fatores genéticos e como é um parâmetro populacional depende de fatores específicos associados a composição da mesma, como as freqüências alélicas, os efeitos de variações dos genes e as variações devido a fatores ambientais. Portanto, nem sempre é possível usar o valor de herdabilidade em uma população para prever o de outra população ou mesmo espécie. Como os genótipos interagem com o ambiente durante o desenvolvimento ontogenético dos organismos para produzir os diferentes fenótipos nenhuma das técnicas de análise e particionamento da variabilidade genética e ambiental realmente separam as causas genéticas das ambientais, elas apenas estimam a influência relativa destes componentes em certos casos. De fato, a extrapolabildade dos resultados de um estudo de uma população para outra, como já discutido, além de dependerem de muitos detalhes populacionais, só são justificáveis se o ambiente que a população para a qual se deseja extrapolar os resultados habita seja estável e equivalente a média da distribuição dos ambientes onde as estimativas para a população original em que as estimativas foram feitas. Além disso, alta herdabilidade não quer dizer que a característica não seja maleável ambientalmente, bem como a baixa herdabilidade de uma característica não quer dizer que a característica não sofra uma forte influência genética.
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Literatura Recomendada:
Wray, N. & Visscher, P. (2008) Estimating trait heritability. Nature Education 1(1)
Visscher PM, Hill WG, Wray NR. Heritability in the genomics era—concepts and misconceptions. Nat Rev Genet. 2008 Apr;9(4):255-66. Epub 2008 Mar 4. Review. PubMed PMID: 18319743 doi:10.1038/nrg2322
Byers, D. (2008) Components of phenotypic variance. Nature Education 1(1)
Griffiths AJF, Miller JH, Suzuki DT, et al. An Introduction to Genetic Analysis. 7th edition. New York: W. H. Freeman; 2000. http://www.ncbi.nlm.nih.gov/books/NBK21866/
Leitura Adicional Recomendada:
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Grande abraço,
Rodrigo