Sunday March 17, 2013
Anonymous: Olá, trata-se de uma dúvida um tanto pueril, mas não consegui encontrar respostas uniformes na internet. Quero me desvincilhar de qualquer conceito disseminado, uma vez que pode se tratar de uma mentira pura e simples. É correto afirmar que o evolucionismo crê que o homem veio do macaco ou isso é apenas um modo de disvirtuar a crença evolucionista? o homem viria do macaco ou ambos teriam um ancestral comum?
As coisas são um pouco mais complicadas do que isso. Primeiro, ‘evolucionismo’ é um termo que pode significar muitas coisas, mas que nas mãos dos criacionistas é usado apenas como um termo geral para agrupar as conclusões de uma série de campos do conhecimento científico, como a origem do universo a partir de um big bang cerca de 14 bilhões de anos atrás que é o consenso na cosmologia e astrofísica modernas, bem a origem de nossa galáxia e, cerca de 5 bilhões de anos atrás, de nosso sistema solar, incluindo nosso planeta, que tem sido também respaldado pelas ciências da terra e planetária, como a geologia e a astronomia, além da origem da vida (como investigado pela biologia, química, física, geologia etc) e sua evolução de acordo com a biologia evolutiva, paleontologia e geologia. Este tipo de utilização do termo serve a fins puramente retóricos ao tentar fazer parecer que todas estas conclusões, na realidade oriundas da investigação de diferentes disciplinas científicas, não passam de uma ideologia única que teria, no criacionismo uma alternativa equivalente, o que é ridículo. Uma vez que isso fique bem claro podemos entrar na questão de qual, dentro da biologia evolutiva e mesmo da biologia de modo mais amplo, seria a relação entre os seres humanos e macacos. Responder a sua pergunta vai basicamente depender do que se tem em mente por ‘macaco’.
O primeiro aspecto importante sobre esta questão é lembrar que ‘macaco’ é simplesmente um termo popular e não reflete exatamente as categorias taxonômicas, como modernamente compreendidas, que são estabelecidas de acordo com o nível de parentesco evolutivo inferido por métodos filogenéticos. Como a evolução é um processo de descendência com modificação e de divergência de populações e linhagens esta hierarquia aninhada, isto é, como grupos dentro de grupos dentro de grupos, é facilmente explicado e modernamente se considera que nossa classificação deve refletir esta estrutura de relacionamento evolutivo e com os seres vivos sendo agrupados de acordo com o compartilhamento mais ou menos próximo de ancestrais comuns.
O problema começa pelo fato da palavra ‘macaco’ normalmente servir para designar uma parte dos mamíferos que como nós, pertencem a ordem dos primatas, os simiiformes (veja também aqui) (ou antropoidea) - um subgrupo dos primatas que, por um lado, exclui grupos às vezes chamados de ‘prossímios’, como lêmures e tarsos, por exemplo, mas que, por outro lado, inclui nós seres humanos e outros nossos parentes extintos. Porém, o termo ‘macaco’ é usado apenas para os simiiformes não humanos, isto é, ele arbitrariamente exclui nós, os seres humanos modernos e alguns de nossos parentes extintos mais próximos, como outras espécies do gênero Homo e quem sabe ‘australopitecíneos’*. Este é o maior problema, pois caso o termo ‘macaco’ fosse cientificamente preciso e aplicado consistentemente, nós, seres humanos, deveríamos ser considerados também ‘macacos’. Este, creio eu, parece ser o principal problema. O uso convencional do termo ‘macaco’ nos exclui arbitrariamente desse grupo, o que é particularmente bizarro por que alguns ‘macacos’, como os chimpanzés (Pan troglodytes) e bonobos (Pan paniscus) são evolutivamente muito mais próximos a nós, seres humanos, (e eles de nós) do que eles e nós somos de qualquer outro macaco. Na realidade os seres humanos e outros parentes próximos já extintos formamos um grande grupo como todos os grandes macacos.
Assim, de acordo com os sistematas (apesar de existirem alguns debates, mas que não mudam a situação**), os seres humanos modernos (Homo sapiens sapiens) - outras espécies do gênero Homo e várias linhagens coletivamente chamadas de Australopithecus e alguns outros gêneros extintos - formamos a subtribo hominina que seria parte da tribo hominini que também inclui os chimpanzés e bonobos, membros da subtribo Panina. Os hominini, por sua vez, juntamente com os gorillini (os gorilas) formariam uma família chamada de homininae que juntamente com os Orangotangos formaríamos uma família conhecida como hominidae que juntamente com os hylobatidae (gibões) formaríamos outro grupo conhecido como hominoidea. E assim por diante, com categorias cada vez mais inclusivas e amplas chegando aos primatas como um todo, continuando nos mamíferos, vertebrados, cordados, deuterostômios, bilateria, animalia etc.
Então, respondendo a sua pergunta de modo mais direto, nós seres humanos não somos descendentes (portanto, ‘nós não viemos’) de nenhum dos primatas simiiformes modernos. Na realidade isso nem faz sentido, pois isso seria equivalente a sermos descendentes (isto é, filhos, netos, bisnetos, …) de algum primo da nossa mesma geração com uma idade muito parecida. Porém, em um sentido mais amplo pode ser dito que viemos de ‘macacos’, isto é, primatas simiiformes não humanos pré-históricos (a maioria deles também ancestrais de outros macacos modernos como os chimpanzés e bonobos, como os quais compartilhamos um ancestral comum entre 5-7 milhões de anos atrás), mas isso não deveria nos surpreender por que o termo ‘macaco’ é arbitrário ao nos excluir.
Talvez outra parte da confusão seja o fato dos seres humanos sermos ‘macacos’ bem derivados em vários aspectos superficiais de nossa aparência, destoando dos demais primatas vivos em várias características que saltam mais aos nossos próprios olhos. Por exemplo, somos mais pelados do que outros primatas, com pelos ‘terminais’ (os tipos grossos e espessos), concentrando-se mais em certas partes, como cabeça, axilas e virilha, e pelos do tipo ‘velus’ no resto do corpo. Adotamos uma postura bípede mais consistente e estável que nos permite correr grandes distâncias apoiados nas pernas de traz, além de termos proporções bastante diferentes dos nossos membros e mudanças concomitante em nosso quadril e ombros. Nossos crânios são mais volumosos e arredondados, além de nossas mandíbulas e dentes serem menores e mais delicados, com nossas faces sendo bem mais planas. E assim por diante. Mas em parte creio que estas diferenças se destaquem aos nossos olhos por causa de um artefato histórico que foi a extinção de outras espécies de homininis que eram mais parecidas conosco em vários aspectos e que possuíam várias características em estados intermediários de derivação. Mas além deste fator, esta impressão de que somos só nós que evoluímos, advém também da maioria das pessoas ignorarem que os demais primatas também mudaram bastante desde que suas linhagens divergiram da nossa em vários momentos diferentes no passado. Veja, por exemplo, a figura abaixo:
A figura acima ilustra que os ganhos e perdas de cópias de genes (os números acrescidos de sinais de ‘+’ e ‘-‘) que ocorreram após a divergência de cada dupla de linhagens a partir de populações a ancestrais de seu antepassado em comum. Estas diferenças, bem como aquelas que envolvem a troca de nucleotídeo por outro (mutações pontuais), além das deleções e inserções de nucleotídeos e mesmo rearranjos cromossômicos, ocorreram em ambas as linhagens durante sua divergência e, embora uma delas possa manter certas versões genéticas, e mesmo características morfológicas (superficialmente) mais similares as da espécie ancestral, ambas linhagens se modificam em relação a população ancestral das qual descendem e, portanto, uma é tão evoluída como a outra. Isso é apenas para enfatizar o fato dos demais macacos, os primatas simiiformes não-humanos, não terem ficado parados no tempo, como muitos parecem crer, e serem, desta maneira, tão evoluídos como nós.
Podemos então resumir a resposta da seguinte maneira: Nós seres humanos não viemos de nenhum macaco moderno. Somos, sim, seus parentes em diversos ‘graus’ (assim como somos parentes mais distantes dos demais animais e demais seres vivos de maneira geral), compartilhando antepassados em comum com os primatas (e demais seres vivos) com os quais coexistimos atualmente. Porém, nossos antepassados comuns com os demais primatas simiiformes poderiam ser muito bem chamados de macacos, pois se regredirmos o suficiente no tempo, iriamos encontrar populações ancestrais de primatas simiiformes não humanos que seriam também nossas ancestrais. A questão é que isso é irrelevante pelo simples motivo que o termo ‘macaco’ é enganoso, uma vez ele junta primatas simiiformes de maneira arbitrária, muitos deles mais próximos a nós e aos nossos parentes extintos, do que são de qualquer outro primata vivo, nos excluindo deste grupo.
O que os criacionistas fazem é misturar toda esta história, usando terminologia inadequada e tentando fazer parecer que a moderna biologia defenderia a visão que nós Homo sapiens teríamos evoluído de, por exemplo, chimpanzés, com eles tendo ficado presos em sua forma ancestral sem terem jamais evoluído, o que é completamente absurdo frente ao que sabemos sobre evolução. Espero que isso tenha ficado claro, mas caso reste alguma dúvida, por favor, não deixe de perguntar novamente.
Por fim, aconselho também algumas respostas mais recentes sobre a evolução humana e dos primatas de modo geral que podem ser encontradas aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui e aqui.
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*Como explicado em outra resposta o próprio termo ‘Australopitecineos’ e o gênero Australopithecus parecem ser parafiléticos e por isso não refletem muito bem a estrutura genealógica de nossa linhagem.
**Veja por exemplo este artigo da wiki sobre as mudanças históricas na classificação dos hominoides. Existem algumas controvérsias entre quem colocar nas tribo e subtribo, hominini e hominina.
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Literatura Recomendada:
Cohen, Jon Relative Differences: The Myth of 1% Science 29 June 2007: 316 (5833), 1836. doi:10.1126/science.316.5833.1836 [PDF]
Lewin, R., Foley, R.A., Principles of Human Evolution, 2nd Ed., Blackwell Science Ltd, 2004.
Wood, B. Human Evolution: A Very Short Introduction. Oxford University Press, New York, 2005. 144 pg.
Lewin, R. Evolução humana. São Paulo: Atheneu, 1999. 526 pg.
Créditos das Figuras:
Taxonomia Hominoidea: Autor: User:Gdr; Fonte: wikicommons
Grande abraço,