Sunday September 18, 2011
Anonymous: Li que a evolução ocorre em mutações aleatórias, e que os reprodutores dessa geração passam a mutação para o sucessor. Então, como uma espécie dominante, que tem um mecanismo que não lhe é útil, pode "desativá-lo", se isso não influenciará em sua reprodução (posto que já é dominante), como por exemplo pessoas nascerem sem o dente do siso? Isso não seria afirmar que os genes se modificam durante a vida?
Não sei se compreendi bem sua pergunta, mas apenas retomando a primeira parte. A evolução é sim um fenômeno transgeracional, mas que depende da capacidade de sobrevivência e do sucesso reprodutivo dos indivíduos durante suas vidas, a cada geração. É exatamente isso que definirá quais características passarão às próximas gerações. Em relação a segunda parte da sua pergunta, é importante salientar que mesmo uma espécie sendo dominante e estável ao longo de muito tempo, isso não quer dizer que nada esteja acontecendo. Por exemplo, a chamada estase (o “equilíbrio” do equilíbrio pontuado, veja também as respostas do nosso antigo formspring, aqui e aqui) é um processo dinâmico do ponto de vista molecular, o que é mantido quase sem alteração e estável é o fenótipo, especificamente a morfologia que é o que pode ser acessado diretamente através do registro fóssil.
As populações da espécie em questão estão sendo inundadas por mutações a cada ciclo reprodutivo pelo simples fato que os erros de duplicação do DNA, muitos que escapam os sistemas de correção desses erros, continuam a ocorrer. A instabilidade molecular fruto das flutuações termodinâmicas e quânticas encarrega-se disso. Assim, os indivíduos variarão geneticamente e caso os eventuais mutantes tenham um impacto no sucesso reprodutivo dos indivíduos, alguma forma de seleção ocorrerá, como, por exemplo, a seleção estabilizadora (uma das candidatas a manutenção da estase) em que os extremos de uma distribuição de características estão em desvantagem ou, pelo menos, a chamada seleção purificadora, que purga mutações deletérias, sendo o principal fator na evolução molecular. No entanto, outras variantes trazidas por essas mutações serão neutras, isto é, os portadores destas variações não diferiram dos tipos selvagens em relação a aptidão. Estas variantes, portanto, serão equivalentes do ponto de vista do sucesso reprodutivo quando comparadas entre si e com as demais variantes presentes na população. Uma vez que nem todos conseguem sobreviver pelo mesmo tempo e, principalmente, reproduzir-se da mesma maneira haverão diferenças no sucesso reprodutivo dos indivíduos. Contudo, como estas diferenças no sucesso reprodutivo não estarão correlacionadas de forma causal e sistemática a posse de nenhum fenótipo em particular, não ocorrerá seleção destas variantes particulares, portanto, essas mutações neutras, serão eliminadas ou fixadas (passar a existir em 100% dos indivíduos da população) basicamente ao acaso, através de um processo conhecido como deriva genética aleatória* que será o responsável pelo destino desse tipo de variantes genéticas.
Esta pode ser, exatamente, a explicação para uma característica que não se mostre mais útil (como o dente siso**), mas que também não cause grandes problemas aos organismos que as portem, sendo sua posse ou ausência indiferente. Neste caso, como mutações nos genes que conferem a base genética dessa característica não iriam reduzir o sucesso reprodutivo dos indivíduos, variantes com alterações da característica ou mesmo sem ela, podem surgir a medida que mais mutações ‘erodam’ os genes por elas responsáveis. Isso corresponde a um afrouxamento da seleção natural. Eventualmente, uma dessas novas variantes pode simplesmente ser fixada em quanto as demais são eliminadas, apenas pelo efeito da deriva genética aleatória. Este é um cenário possível, caso tenha entendido bem sua pergunta.
Outra possibilidade é que a característica que não seja mais útil, seja, além disso, um estorvo em um novo contexto. Pode ser que a [auto]construção da característica durante o desenvolvimento seja por demais custosa e, agora, sem uma utilidade clara, qualquer indivíduo que não a produza e/ou use esta energia ou o tempo gasto em seu desenvolvimento em outras atividades, teria uma vantagem e passaria assim a ter maior sucesso reprodutivo que os indivíduos que ainda possuem a característica em questão. Neste caso, vemos um caso clássico de seleção natural associado a mudança de contexto ecológico-demográfico, ou seja, indivíduos que possuem a característica alcançam sucesso reprodutivo menor que os que não possuem, exatamente, por causa da característica em si e não pelo mero acaso.
Por fim, outra interessante possibilidade é que a característica, ao não ser mais útil (e sua posse não ter, ainda assim, um impacto relevante na sobrevivência e reprodução dos indivíduos), possa ter sua perda muito acelerada em função da aquisição de uma nova característica. Diferentemente do caso anterior, a posse da característica por si mesma não é deletéria. Como no primeiro caso, ela, por si só, é neutra. Porém, outra característica que dependa também da mudança nos genes que garantem o desenvolvimento da característica que não mais “útil” (ou cuja localização interfira com a antiga característica), e seja ela mesma vantajosa, pode acelerar a perda da característica antiga, quando esta estiver conjugada com a aquisição da nova e vantajosa característica. Isto é, para ganhar uma é preciso perder a outra.
A pleiotropia antagônica é um exemplo disso, quando o desenvolvimento de uma característica depende da perda de outra. Em contraste com o caso anterior, em que a seleção favorece indivíduos que não possuam a característica em si, nesta situação a seleção favorece uma nova característica que, porém, depende, para se desenvolver-se de interferir e até eliminar a característica anterior.
Este processo parece ter sido responsável pela perda dos olhos em peixes cavernícolas do México que perderam vários dos sinais genéticos responsáveis pela formação dos olhos (expressão do gene Pax-6) em certas regiões do embrião em desenvolvimento, tornando estes órgãos vestigiais, ao mesmo tempo que o território de expressão do gene hedghog expandiu-se sobre essas mesmas regiões. Este gene, além de inibir a expressão do gene Pax-6, é responsável pela indução de genes associados a formação da mandíbula inferior e que aumentam a sensibilidade tátil, essencial ao deslocamento e procura de alimento em um ambiente sem luz. Como a visão não era mais útil nesses ambientes de cavernas, esta mudança de controle dos circuitos genético-desenvolvimentais, como interrupção dos sinais para a formação dos olhos, pode ocorrer sem custos que certamente incidiriam sobre os organismos caso a visão ainda fosse importante.
O afrouxamento da seleção natural, desta vez causado por mudanças nas condições ambientais, reduziu os custos referentes a perda de uma estrutura antes adaptativamente crucial, tornando sua posse ou ausência equivalentes do ponto de vista do sucesso reprodutivo. Permitindo, desta maneira, secundariamente, que outra estrutura, construída através da degeneração da primeira, pudesse se estabelecer através da seleção natural de outra característica diferente para uma outra função. Esta combinação entre o acaso intrínseco aos processos de mutação e deriva genética e o oportunismo e dependência de contexto da seleção natural é que está por trás de boa parte da evolução biológica. É deste 'entrejogo’ entre acaso e necessidade que a complexidade da vida tem emergido através da evolução.
Espero ter esclarecido a sua dúvida. Caso não o tenha feito, basta perguntar de novo.
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*Nota: O processo de deriva genética aleatória (veja as respostas do formspring sobre este assunto e outros relacionados: a, b, c, d, e) enquanto tal pode ser descrito como um tipo de “amostragem indiscriminada”; diferente da seleção natural na qual a “amostragem” é discriminatória, no sentido que os fenótipos causalmente associados a genótipos específicos são os agentes de discriminação através de seu efeito na interação entre os organismos entre si e com seu meio-ambiente. Na deriva genética aleatória, entretanto, não há mais do que estar no lugar certo na hora certa. Por causa disso, mesmo um indivíduo altamente bem adaptado ao seu meio pode sofrer um acidente enquanto um bem menos adaptado, do qual não se esperaria muito, pode (ao estar no lugar certo e na hora certa) deixar mais descendentes. Por causa disso, a deriva genética é muito mais importante quando as populações são pequenas, embora em qualquer população finita a deriva esteja sempre ocorrendo. Em populações pequenas, como quando ocorrem gargalos de garrafa e o número de indivíduos que passarão suas características à próxima geração é bastante reduzido, pequenas distorções como as associadas ao processo de “amostragem indiscrimina”, equivalentes a “erros de amostragem” na estatística, podem alterar muito a representação das característica (e das variantes genéticas) na próxima geração, distorcendo as expectativas tanto em função do número de indivíduos de cada tipo, como em relação ao que seria esperado pela seleção natural [A discussão um pouco técnica entre Millstein/Skipper, Brandon e Mohan sobre como melhor caracterizar a deriva é espetacularmente rica e mostra a complexidade do tema, mas também sua importância]. Portanto, nessas situações diz-se que a seleção natural perde eficiência e muitos alelos, especialmente os ligeiramente deletérios, passam a se comportar como alelos neutros, variando suas freqüências em função do acaso.
**Sobre o dente siso recomendo as ótimas respostas do Eli em nosso antigo Form, aqui e aqui, além da excelente e extensa análise que o gene repórter fez sobre o assunto.
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Literatura Recomendada:
Brandon, Robert N. (2005). The Difference Between Selection and Drift: A Reply to Millstein. Biology and Philosophy 20 (1).
Eldredge, N., Thompson, J. N., Brakefield, P. M., Gavrilets, S. , Jablonski, D., Jackson, J.B.C., Lenski, R.E., Lieberman, B.S, McPeek, M. A., and Miller W. (2005) Dynamics of evolutionary stasis Paleobiology 31: 133-145.
Jeffery WR. Adaptive evolution of eye degeneration in the Mexican blind cavefish. J Hered. 2005 May-Jun;96(3):185-96. Epub 2005 Jan 13. Review. PubMed PMID: 15653557.
Lieberman, Bruce S. and Eldredge, Niles (2008), Scholarpedia, Punctuated equilibria, 3(1):3806.
Matthen, Mohan (2002) What is Drift? A Response to Millstein, Skipper, and Dietrich Philosophy and Theory in Biology vol. 2.
Millstein, Roberta L. (2002), Are Random Drift and Natural Selection Conceptually Distinct? Biology and Philosophy 17(1):33-53.
Millstein, Roberta L. (2005), Selection vs. Drift: A Response to Brandon’s Reply. Biology and Philosophy 20(1): 171-175.
Millstein, Roberta L., Skipper, Robert A., and Dietrich, Michael R. (2009), (Mis)interpreting Mathematical Models: Drift as a Physical Process, Philosophy and Theory in Biology vol. 1
Moran, L. (2005) Deriva Genética Aleatória. Projeto Evoluindo - Biociência.org. Trad.: Robson Scheffer Teixeira. - do original: Moran, Laurence [Last Update: January 22, 1993] Random Genetic Drift The Talking Origin Archive Copyright © 1993-1997 [e uma versão mais recente aqui]
Myers, PZ [January 10, 2007] PZ Myers on How the Cavefish Lost Its Eyes Seedmazine.com
Smith JM. The genetics of stasis and punctuation. Annu Rev Genet. 1983;17:11-25. Review. PubMed PMID: 6364957.
Yamamoto Y, Stock DW, Jeffery WR. Hedgehog signalling controls eye degeneration in blind cavefish. Nature. 2004 Oct 14;431(7010):844-7. PubMed PMID: 15483612.
Tian NM, Price DJ. Why cavefish are blind. Bioessays. 2005 Mar;27(3):235-8.Review. PubMed PMID: 15714555.
No site do bioquímico Larry Moran Evolution by Accident podem ser encontradas mais informações sobre a evolução por deriva genética e outros processos estocásticos.
Grande abraço,
Rodrigo