Supresas sobre as origens do cromossomo Y humano:
Essa história começa com a história de um homem em particular, mas diz respeito a história de nós todos que portamos cromossomos Y. Tudo começou quando uma parente de Albert Perry, um afro-americano recentemente falecido, submeteu uma amostra de seu DNA a uma empresa chamada de Family Tree [1] que faz análises genealógicas. Este tipo de amostra permite aos geneticistas identificarem linhagens familiares e aos geneticistas evolutivos rastrearem nossas origens enquanto espécie. O problema é que o material derivado do cromossomo Y (que são transferidos apenas através das patrilinhagens, isto é, de pai para filho) de Perry era muito diferente de todas as amostras conhecidas deste cromossomo até hoje [1, 2].
O cromossomo Y de Perry era tão diferente que não se encaixava na perspectiva moderna de um 'Adão do cromossomo Y' tendo vivido entre 60 000 e 140 000 anos atrás. [Aqui vale a pena lembrar que o 'Adão do cromossomo Y' e a 'Eva mitocondrial' não são o primeiro par de indivíduos humanos. Não, de modo algum. Eles são indivíduos diferentes que viveram em épocas diferentes em que coexistiam com outros milhares de indivíduos, tão humanos quanto eles, mas cujo cromossomo Y e DNA mitocondrial, respectivamente, não chegaram as populações modernas, por causa da natureza estocástica do processo reprodutivo que leva a perda de muitas das variantes genéticas, especialmente as transmitidas de modo monoparental. Além disso, cada porção de nosso genoma tem seus próprios 'concestrais', mas, como o nosso DNA nuclear autossômico (isto é dos demais cromossomos não sexuais) está sujeito a recombinação, estes 'concestrais' são mais difíceis de rastrear e são mais variados que os representados pelos cromossomos Y e pelo genoma mitocondrial que além de não recombinarem (ou recombinarem muito pouco quando comparados as demais porções do genoma nuclear), são transferidos por linhagens monoparentais, ou seja, as mitocôndrias só são passadas através das mulheres - isto é, de suas filhas e das filhas de suas filhas e assim por diante (já que os homens, além de herdarem apenas as mitocôndrias das mães, não as transferem as suas para os seus filhos e filhas) - e o cromossomo Y apenas pelos homens, já que as mulheres não os possuem. A questão entretanto é que o 'Adão do cromossomo Y' era a fonte dos cromossomos Y de todos os homens modernos, menos, aparentemente, dos de Perry [1, 2].
O cromossomo Y de Perry era tão diferente de todos os analisados até então que parecia ter uma tido uma origem ainda mais antiga, evidenciando que as raízes das populações humanas modernas podem ser, na realidade, muito mais antigas do que acreditávamos, talvez mesmo,com mais do dobro da idade máxima das estimativas anteriores [1, 2].
E é aí que entra o geneticista Michael Hammer, do qual já falamos por aqui, que trabalha na Universidade do Arizona, em Tucson, nos EUA, e seus colaboradores. Quando Hammer ouviu falar do incomum cromossomo Y de Perry [1] começou a compará-lo e a realizar testes estatísticos. Os resultados publicados no periódico American Journal of Human Genetics em 28 de fevereiro último, por Fernando Mendez, primeiro autor do artigo, Michael Hammer, autor sênior, e uma grande equipe de cientistas colaboradores, revelou fatos surpreendentes [1, 2]:
Ao sequenciarem cerca de 240 mil pares de base do cromossomo Y de Perry, identificando mutações específicas derivadas desta linagem que foi batizada de A00, puderam estimar o tempo desde o ancestral comum mais recente (TMRCA, de “Time to the Most Recent Common Ancestor”) para a árvore do cromossomo Y. Este ancesral teria vivido há algo em torno de 338 mil anos (intervalo de confiança 95% = 237-581 kya), o que excede também as estimativas da mtDNA TMRCA, ou seja, da Eva mitocondrial [1].
O time de pesquisadores, analisando os bancos de dados de DNA de Africanos com cerca de 6000 cromossomos Y, encontrou algumas amostras colhidas de 11 homens moradores de um única vila em Camarões que se assemelhavam ao cromossomo Y de Perry, sugerindo que talvez fosse dali ou desse grupo que teriam vindo os seus antepassados Africanos. Como a idade desta variante A00 é muito antiga e como ela é também muito rara, encontrada apenas em frequência baixíssima na África Central, os pesquisadores defendem a necessidade de considerarmos modelos mais complexos para a origem da diversidade do cromossomo Y [1,2].
Abaixo uma figura retirada do trabalho de Mendez et al. [2] que mostra a genealogia das linhagens A00, A0, e dos sequenciamentos de referência, isto é, as linhagens em que as mutações foram identificadas e aquelas que foram usadas para colocar essas mutações na genealogia. Elas são indicados como linhas grossas e finas, respectivamente. Os números das mutações identificadas em um ramo são indicados em itálico (quatro mutações em A00 não foram genotipadas mas são indicadas como compartilhadas pelos Mbo nesta árvore). As estimativas de tempo (e intervalos de confiança) são indicados por 'kya' (milhares de anos) para três dos nós: o mais recente ancestral comum, o ancestral comum entre A0 e as sequencias de referência (REF), e o ancestral comum de dos cromossomos A00 de um indivíduo Afro-americanos e dos Mbo de Camarões. Dois conjuntos de idades são mostrados: à esquerda estão as estimativas (em preto) obtidas com a taxa de mutação com base nos recentes resultados dos sequenciamentos completos de genomas como descrito no texto principal, e à direita estão as estimativas (em cinza) baseadas nas taxas de mutação usada por Cruciani et al [apud Mendez et al. [2]].
Como já comentado, estas estimativas excedem em muito as estimativas anteriores para o 'Adão do cromossomo Y' e 'Eva mitocondrial', mas, além disso, elas excedem os mais antigos fósseis de seres humanos anatomicamente modernos, já que estes fósseis remontam há apenas 195 mil anos [1].
"A árvore do cromossomo Y é muito mais antiga do que pensávamos", afirmou Chris Tyler-Smith, pesquisador não envolvido no estudo que trabalha no Wellcome Trust Sanger Institute, em Hinxton, Reino Unido [1].
Outro geneticista, Jon Wilkins, do Instituto Ronin em Montclair, em Nova Jersey, EUA, também mostra empolgação com o artigo e afirma:
"É uma descoberta legal"[1]
"Nós, os geneticistas temos olhado os cromossomos Y a tanto tempo como temos olhando para tudo. Alterar onde estaria a raiz da árvore de cromossomo Y é neste ponto extremamente surpreendente."[1].
Acima (retirado de Mendez et al [1]) um mapa mostrando Camarões e a localização aproximada onde os falantes de Mbo vivem, de onde saíram as 11 amostras similares as de Perry.
De acordo com Mendez et al. [2] os modelos alternativos a serem explorados incluíriam a forma com que as populações humanas antigas estavam estruturadas, bem como a possibilidade de introgressão de cromossomos Y arcaicos em nossa linhagem, ou seja, miscigenação de populações antigas de seres humanos anatomicamente modernos com populações antigas de seres humanos arcaicos em algum ponto próximo após origem de nossa linhagem de seres humanos anatomicamente modernos. Então, este evento de introgressão se somaria aos outros exemplos conhecidos revelados nos últimos anos, com o como os neandertais no Oriente Médio, e com os misteriosos Denisovanos, em algum lugar no sudeste da Ásia.
Em outras palavras, o cromossomo Y de Perry pode ter sido herdado de uma população arcaica humana que, após esta contribuição para o nosso 'pool genético', teria se extinguido. Esta possibilidade, ou seja, de miscigenação de populações de seres humanos anatomicamente modernos africanas ancestrais com populações ancestrais de seres humanos arcaicos, já havia sido levantada pelo próprio Hammer e seus colaboradores em outro estudo com base em outros dados [3].
Além disso, existem evidências fósseis que apoiariam o cenário da introgressão, pois em 2011, pesquisadores, examinando fósseis humanos de um sítio na Nigéria, conhecido como Iwo Eleru, identificaram uma estranha mistura de características antigas e modernas nestes fósseis humanos, o que também pode sugerir que tenha ocorrido cruzamento entre humanos anatomicamente modernos e populações com características mais arcaicas [1].
"A aldeia em Camarões com uma assinatura genética incomum é bem na fronteira com a Nigéria, e Iwo Eleru não é muito longe", afirma Hammer.
Um cientistas que analisou os fósseis de Iwo Eleru, Chris Stringer, que trabalha no Museu de História Natural, em Londres, afirmou que os novos resultados sobre este 'novo' cromossomo Y, destacam a necessidade de obtermos e analisarmos mais dados genéticos de populações modernas de africanos subsaarianos e também somam-se ao coro dos que enfatizam a importância de considerar cenários evolutivos mais complexos:
“Os fósseis humanos mais antigos conhecidos, tanto no Oeste da África, em Iwo Eleru, como na África Central, em Ishango [na República Democrática do Congo] mostram inesperadamente características arcaicas, por isso certamente parece que temos um cenário mais complexo para a evolução dos humanos modernos na África”
Os autores do estudo, por fim, alertam para a natureza estocástica do processo genealógico e como isso pode afetar a inferência a partir de dados vindos um único lócus, nos forçando a ter bastante cuidado ao interpretarmos a localização geográfica de ramos divergentes da árvore filogenética do cromossomo Y de modo que possamos elucidar com mais confiança e precisão as origens de nossas espécie e das populações modernas de seres humanos.
Como um amigo geneticista/biólogo molecular comentou ao divulgar o artigo, “Sabemos que estamos no trabalho certo quando nos emocionamos com os resultados obtidos em nossa área de trabalho.”a É para empolgar e emocionar não só aos biólogos e pesquisadores da área, mas a todos que são curiosos e fascinados pela evolução humana e biológica de modo geral. É sempre inspirador pensar que peças de nosso quebra cabeças genealógicos podem estar dentro de qualquer um de nós.
Para saber mais veja as postagens da série 'Quem somos nós e como sabemos quem somos? Parte I , Parte II e Parte III' e "Mais vislumbres de miscigenações ancestrais no DNA humano".
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Referências:
Barras, Colin The father of all men is 340,000 years old New Scientist [Updated 21:45] 06 March, 2013.
Mendez, Fernando L.; Krahn, Thomas; Schrack, Bonnie; Krahn, Astrid-Maria; Veeramah, Krishna R.; Woerner, August E.; Fomine, Forka Leypey, Mathew; Bradman, Neil; Thomas, Mark G.; Karafet, Tatiana M.; Hammer, Michael F. An African American Paternal Lineage Adds an Extremely Ancient Root to the Human Y Chromosome Phylogenetic Tree American journal of human genetics volume 92 issue 3 pp.454 - 459 doi:10.1016/j.ajhg.2013.02.002
Wall J, Hammer M: Archaic admixture in the human genome. Curr Opinin Genet Dev 2006, 16:606-610. http://dx.doi.org/10.1016/j.gde.2006.09.006
Créditos das Figuras:
Disponíveis nos sites dos autores citados e no artigo por eles publicados.