Surpresas sobre as origens do músculo estriado no reino animal
A mobilidade é uma das principais características dos animais e embora existam muitos animais sésseis, que vivem fixados aos substratos, a imensa maioria dos metazoários é capaz de se mover, pelo menos, em uma fase de seu ciclo de vida. Da habilidade de locomoção ativa é que advém várias atividades essenciais nos modos de vida destas criaturas, como evitar predadores e evadir seus eventuais ataques, perseguir presas ou simplesmente buscar alimentos ou condições ambientais mais apropriadas, além de permitirem que se aproximem de parceiros em potencial e, eventualmente, acasalem-se com eles ou liberarem ovos ou esperma em suas proximidades.
Para mover-se ativamente são necessários nervos e músculos, dois tecidos que originaram-se em certo ponto na evolução animal, após a separação do filo Porifera (grupo representado pelas esponjas) dos Eumetazoa, grupo ao qual os Bilateria (animais com simetria bilateral, como nós, as moscas, vermes e as estrelas do mar, por exemplo), e os Cnidaria (como os corais, anêmonas e águas vivas); com isso tendo ocorrido há mais de 600 milhões de anos, ainda no período pré-cambriano. [Acima podemos ver dois momentos do processo de locomoção da medusa hidrozoária da espécie Clytia hemisphaerica que ocorre através da contração dos seus músculos estriados - Crédito: Patrick Steinmetz. Fotos retiradas do material disponível no site]
Apesar de conhecemos bastante sobre a estrutura e função dos músculos, especialmente os dos vertebrados que têm sido intensamente estudados desde o século XIX na aurora da fisiologia comparativa, ainda sabemos muito pouco sobre as origens deste tecido.
O esquema abaixo [retirado do J Clin Invest. 2005; 115(3):518–526 doi:10.1172/JCI24351] http://www.jci.org/articles/view/24351/figure/2] representa um sarcômero, a unidade básica do processo de contração, que engloba os segmentos de proteínas entre os discos-Z. Em vertebrados as proteínas filamentosas finas são compostas de actina e das troponinas C , T, e I. Os filamentos sarcômericos mais grossos são compostos pelas proteínas filamentosas: miosina de cadeia pesada, pelas cadeias leves essenciais e de regulação da miosinas, pela protein-C de ligação à miosina e pela titina. O sarcômero ancora-se por meio de interações entre a titina e a actina com as proteínas dos discos-Z, α-actinina, calsarcin-1, MLP, teletonina (T-cap), e ZASP.
Um dos motivos que mantém nosso atual estado de ignorância sobre estas temas é o fato de que boa parte dos estudos nos quais dependem a nossa inferência evolutiva, como os de fisiologia, embriologia e anatomia comparativa, e mesmo sobre genética do desenvolvimento, serem conduzidos em animais terrestres, quando a maioria dos filos animais são aquáticos, particularmente marinhos, e foi neste tipo de ambiente em que acreditamos que os primeiros passos da evolução animal ocorreram.
Felizmente as técnicas desenvolvidas nas últimas décadas e empregadas em organismos-modelo tradicionais vêm sendo aplicadas também a diversos grupos de invertebrados marinhos como os cordatos tunicados e anfioxos, em outros animais de simetria bilateral, como equinodermos e anelídeos, e por fim à animais diploblásticos, como anêmonas e medusas, além das esponjas, claro. Essas técnicas permitem aos cientistas investigarem diretamente as moléculas responsáveis pelas características estruturais e funcionais dos tecidos de interesse e assim têm nos descortinado um panorama evolutivo bem mais rico e impressionante do que possuíamos há algumas décadas.
Em um trabalho representativo dessa abordagem, publicado online na revista Nature no mês de junho deste ano, um grupo de cientistas de várias instituições de pesquisa, na Europa, revelaram que a história da evolução da musculatura estriada começa muito antes do que havíamos pensado, antes mesmo que os organismos multicelulares houvessem evoluído.
O artigo tem como primeiro autor, Patrick R. H. Steinmetz, pós-doutorando no laboratório do grupo de Genética Molecular do Desenvolvimento de Cnidaria, do Centro Internacional para Biologia Marinha Molecular, Sars, em Bergen, na Noruega – liderado por Ulrich Technau, autor sênior do trabalho. Nesta pesquisa, o alvo dos cientistas foi a musculatura estriada, um tipo de tecido muscular presente em animais com simetria bilateral e em alguns outros eumetazoários não-bilaterais como os cnidários.
Os eumetazoários, Bilateria e os Cnidaria, assim como uma única espécie de ctenóforos (que no passado eram reunidos em um grande grupo chamado 'celenterado'.), compartilham células musculares lisas e estriadas que não estão presentes em outros animais, como os placozoa e as esponjas. No caso da musculatura estriada dos vertebrados, por exemplo, o característico padrão de estriação resulta em várias unidades contrateis, conhecidas como sarcômeros, que são formadas conjuntos de grossos filamentos da proteína miosina alternados com filamentos da proteína actina, margeadas pelos discos-Z* que dão suporte a unidade contrátil. E um dos primeiros fatos que chamam a atenção dos biólogos é a grande similaridade ultra-estrutural desses tipos de músculos entre os Bilateria e Cnidaria, o que sugere uma origem evolutiva comum, ainda que cenários de origem independente já tenham sido propostos. Porém, muitos cientistas acreditam que este padrão de musculatura realmente teria surgido antes da separação desses grupos, o que é consistente com a observação de que a principal proteína motora associada ao aparato contrátil, a miosina de cadeia pesada tipo II (MyHC) é encontrada somente nos tecidos musculares dos animais desses grupos, corroborando a ideia de uma origem comum mais recente, após a separação do eumetazoa do grupo das esponjas.
O grupo de cientistas, então, resolveu reavaliar a evolução da musculatura estriada nos animais usando ferramentas de mineração genômica, análise filogenética molecular, aplicadas conjuntamente à análise dos perfis de expressão gênica em esponjas e cnidários.
Abaixo um 'close-up' das células musculares estriadas (vermelho, na horizontal) e lisas (vermelho, na vertical) da água-viva hidrozoária, Clytia hemisphaerica, e o núcleos das células coloridos em azul [Crédito: Johanna Kraus - retirado do material disponível no site] Os pesquisadores também empreenderam uma análise comparativa de 47 componentes moleculares dos tecidos musculares de organismos com simetria bilateral, em 22 genomas que já haviam sido completamente seqüenciados de espécies de metazoários, bem como de grupos de protistas proximamente relacionadas aos animais, assim como fungos e outros eucariontes, de modo que os autores do estudo pudessem desvendar e reconstruir os passos-chave na evolução muscular deste tipo específico de tecido animal. Então, de maneira muito semelhante ao que outro grupo de pesquisadores haviam feito para estudar a origem das sinapses (Veja por exemplo, "A origem das sinapses em animais descerebrados"), a colaboração liderada por Ulrich Technau, identificou a princípio um conjunto altamente conservado de proteínas contráteis e que pré-datavam a evolução das células e tecidos musculares. [Ao lado estão mostrados, em vista lateral, os músculos (em vermelho) e núcleos (em azul) de uma jovem medusa da espécie Clytia hemisphaerica Esses belos animais nadam através da contração de seus músculos estriados que localizam-se circunferencialmente dentro do 'sino medusal' e que levam a característica 'propulsão a jato' típica das medusas - Crédito: Johanna Kraus – retirado do material disponível no site]
Estas proteínas ‘[proto]musculares’ eram compartilhadas por metazoas, protistas holozoa (os mais próximos aos animais), além de fungos e amoebozoas. Esse conjunto incluía a já mencionada, miosina II de cadeia pesada (MyHC), a actina, além de outras proteínas a elas associadas:
Miosina de cadeia leve
Tropomiosina
Calmodulina
Isso mostra que genes como o que codifica a MyHC possuem genes ortólogos em grupos, como as esponjas, e que já, desde muito tempo atrás eram diferencialmente expressos, por já se mostrarem assim em pelo menos duas espécies de poríferos, com um deles já tendo características similares a variante do gene típica de músculos estriados. Porém, ainda mais impressionante é que mesmo organismos unicelulares já possuem ortólogos deste gene em particular.
"Como esta miosina específica até agora só fora encontrada em células musculares, esperávamos que a sua origem coincidisse com a evolução das células musculares. Ficamos muito surpresos ao ver que a “miosina do músculo” evoluíu provavelmente em organismos unicelulares, muito antes dos primeiro animais viveram", explicou Ulrich Technau em um release de imprensa.
Mas outras surpresas aguardavam o time de cientistas. De todas as 47 proteínas estruturais ou regulatórias que foram analisadas, os cientistas puderam constatar que nenhuma delas é exclusiva de cnidários e bilatérios, ou seja, nenhuma dessas proteínas correlaciona-se com a origem evolutiva dos tecidos musculares. Desta maneira fica claro que o tal conjunto central de proteínas ‘musculares’ - em particular a proteína motora miosina de cadeia pesada tipo II (MyHC) típica dos vertebrados - já estava presente em organismos unicelulares antes mesmo da origem dos animais multicelulares. Este conjunto central conservado de proteínas que formam esta 'maquinaria' 'actomiosínica', muito antes da evolução dos músculos, já desempenhava algum tipo de função básica provavelmente envolvendo o cito-esqueleto de vários eucariontes, ajudando com a divisão celular e com a mudança da forma das células. Por isso, a origem evolutiva deste aparato contrátil é bem anterior a origem do reino animal e se deu através de inovações mais sutis específicas de cada linhagem no modo como estas proteínas são reguladas e combinadas, mais uma vez repetindo um padrão conhecido que vem sendo revelado e confirmado há décadas: a evolução ocorre por um processo de 'bricolagem' em que a reutilização e cooptação de partes e estruturas de maneira contingente parece ser a forma mais comum de inovar.
Mas afinal, como os músculos teriam evoluído a partir desse conjunto de proteínas empregado para outras funções?
Algumas pistas de como isso teria ocorrido foram reveladas no estudo, como o fato da cinase da miosina de cadeia leve, uma proteína fosforiladora da miosina de cadeia leve, ter sido identificada como uma inovação dos animais (metazoa) que permitiu a nós uma regulação mais fina da contração mediada pela actomiosina, fazendo isso ao acoplar a fosforilação regulatória da cadeia leve de miosina ao aumento das concentrações citoplasmática de Ca2+ em células musculares e não musculares. Entretanto, talvez a descoberta mais interessante seja a feita em relação a origem das duas principais variantes do gene da MyHC.
Estudos realizados anteriormente haviam sugerido que um evento de duplicação gênica teria dado origem a dois grupos filogenéticos distintos de ortólogos MyHC em animais bilatérios, cada um dos quais tendo uma função distinta e exibindo um padrão particular de expressão. Assim, a variante "não muscular” (NM) da MyHC dos bilateria funcionaria durante processos celulares comuns, como a divisão celular ou migração, e também durante contração da musculatura lisa dos vertebrados, enquanto isso, os ortólogos 'musculares’ (ST) dos bilatérios desse gene, funcionariam especificamente nos músculos estriados dos vertebrados e tanto nos músculos lisos e estriados dos protostômios. Porém, não foi isso que a análise descrita no artigo da Nature mostrou.
Os pesquisadores concluíram que, ao contrário do que era especulado, a duplicação do gene que gerou os dois grupos de ortologia da MyHC deve ter ocorrido bem mais cedo do que se pensava, isto é, antes da origem das células musculares, uma vez que bilatérios, cnidários, ctenóforos, além de placozoas e esponjas, estes dois últimos não possuidores de músculos, já possuem, pelo menos, um de cada ortólogo MyHC , com domínios estruturais do tipo ‘mola-espiralada’ específicos de cada uma das formas (ST e NM), enquanto os organismos unicelulares Capsaspora owczarzaki e Sphaeroforma arctica, possuem apenas um dos membro do grupo de ortologia MyHC, caracterizado pela estrutura ‘mola-espiralada’ específica de NM. Esta constatação e a topologia da árvore filogenética indicam fortemente que os genes MyHC ST e NM já haviam se originado por duplicação e se diferenciado ante do último ancestral comum de todos os animais, com os protistas mencionados tendo perdido a variante ST do MyHC.
Ao lado à esquerda podemos observar uma árvore filogenética de máxima verossimilhança de proteínas MyHC tipo II. Os nós são colapsados caso tenham divergido entre as 'junções-vizinhas' (Neighbor-Joining - NJ), máxima verossimilhança (ML) ou inferência Bayesiana. O aninhamento das MyHCs de protistas dentro do grupo de ortologia MyHC NM apóia um evento de duplicação MyHC no ancestral comum dos Metazoa, Choanoflagellata, Filasterea e Ichthyosporea, mas também assume perdas secundárias dos genes MyHC ST em vários filos de protistas. [Diagramas das estruturas de domínio MyHC. Comprimento do alinhamento final, 1,730 aminoácidos (A.A.). Barra de escala, 0,2 mudanças por sítio. Números coloridos representam posições domínios mola-espiralada (coiled-coil) não-canônicos; retirado de[Steinmetz et al., 2012 Nature; doi 10.1038/nature11180].
No entanto, apesar dos cnidários e ctenóforos já possuírem genes ortólogos a MyHC do músculo estriado, estes animais não possuem vários outros componentes cruciais dos músculos estriados que estão presentes nos Bilateria, tais como os genes responsáveis pela codificação de proteínas como titina e o complexo troponina. Isso sugere uma perspectiva bem particular e diferente da visão mais comum sobre a origem dos tecidos musculares. Os genes do grupo de ortologia MyHC NM e ST teriam sido herdados de um ancestral comum, mas sua cooptação por parte dos tecidos contráteis teria ocorrido de maneira independente nas duas linhagens, o que sugere que a evolução dos músculos estriados nesses dois grupos de eumetazoa seria um caso de convergência evolutiva. De maneira consistente com esta visão, várias proteínas ortólogas as que codificam disco-Z do aparato de contração em organismos bilatérios, nas águas vivas não são expressas na mesma localização que são nos Bilateria, com algumas delas sendo expressas em vários locais diferentes, por todo animal.
Os componentes do disco-Z aliás são outro caso interessante pois não exibem a grande conservação observada para os componentes centrais do aparato contrátil de actomiosina, mesmo dentro do Bilateria. Dos grupos analisados, quase metade das proteínas dos vertebrados (13 das 28) e um quarto das proteínas relacionadas ao disco-Z em D. melanogaster são únicas ou possuem domínios únicos nos cordados e em D. melanogaster. Das proteínas restantes, apenas quatro grupos de ortologia encontram-se em ambos os táxons: a proteína α-actinina, que serve de suporte para actina, as parceiras de ligação, LIM e Ldb3, e a proteína gigante titinina que regula o comprimento e a integridade dos sarcômeros. Então, boa parte das complexas redes de interação protéica, os 'interatomas' como em geral são chamados, associadas aos discos-Z de vertebrados e invertebrados evoluíram através do recrutamento (linhagem-específico) de componentes novos que foram agregados a um conjunto protéico 'proto-disco-Z' original que era compartilhado desde o ancestral comum destes dois grupos.
Em resumo, todos os cnidários não possuem as características moleculares dos músculos estriados dos Bilateria, exceto a expressão da variante do MyHC ST, e, por causa, disso os músculos estriados dos Bilateria e Hydrozoa provavelmente tenham evoluído de forma convergente a partir da maquinaria bioquímica contrátil celular bem mais antiga.
Segundo a conclusão dos autores, isso também poderia aplicar-se aos músculos estriados do ctenóforo Euplokamis, o único entre os ctenóforos com este tipo de músculo. Os cientistas propõem que o uso independente da expressão da proteína MyHC ST na construção dos músculos estriados tanto em bilatérios como em medusas se deu devido a restrições funcionais, uma vez que os tipos de filamentos grossos característicos ‘bipolares’ formados pelo MyHC ST favoreceriam uma rápida contração e para re-iteração da máquina actomiosínica, quando comparada ao que poderia ser oferecido pelo MyHC NM cujos filamentos baseiam-se em uma organização 'latero-polar'.
Os pesquisadores responsáveis pelo trabalho sugerem que a evolução independente de músculos estriados em duas linhagens de eumetazoários por meio de acréscimo de novas proteínas sobre uma base pré-existente, no caso um aparelho ancestral contrátil baseado em MyHC, pode servir como um modelo para a evolução de tipos de células complexas durante a evolução animal, e desta maneira ressaltam que a semelhança ultra-estrutural sozinha não é uma indicação confiável da origem evolutiva comum, uma vez que pode ser alcançada de forma independente por diferentes conjuntos de proteínas.
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Referências:
Steinmetz PR, Kraus JE, Larroux C, Hammel JU, Amon-Hassenzahl A, Houliston E, Wörheide G, Nickel M, Degnan BM, & Technau U (2012). Independent evolution of striated muscles in cnidarians and bilaterians. Nature, 487 (7406), 231-4 PMID: 22763458