Teoria Atômica, Biologia Evolutiva e Consciência
Resenha de “Consciência e seu lugar na natureza”, capítulo 4 (pp. 123-60) do livro A Redescoberta da Mente, de John SEARLE, tradução de Eduardo Pereira e Ferreira, 2ª edição, São Paulo, Martins Fontes, 2006.
O principal problema da área Filosofia da Mente é o chamado problema mente-corpo (alguns diriam mente-cérebro), que pode ser formulado de vários modos, mas, para o que nos interessa aqui, pode-se apresentá-lo da seguinte forma: qual é a relação entre os processos e estados mentais, por um lado, e os processos e estados físicos, por outro, ou seja, onde situar a mente na natureza? Muitas foram – e são (!), trata-se de um campo com intensos e empolgantes debates atuais – as respostas e teorias propostas para solucionar este problema filosófico.
No que se segue, apresentarei algumas ideias do filósofo norte-americano John Rogers Searle (1932- ), professor da Universidade da Califórnia (Berkeley), que propôs uma teoria denominada Naturalismo Biológico como solução ao problema mente-corpo. Para tanto, utilizarei o capítulo 4 de seu influente livro A Redescoberta da Mente, publicado originalmente em 1992, pela editora do Massachusetts Institute of Technology. O roteiro geral será o seguinte: inicialmente, Searle aborda o que é consciência para, logo em seguida, encaixá-la no quadro conceitual da visão de mundo científica, mostrando, por fim, a vantagem seletiva da consciência.
Logo no início de seu texto, Searle se preocupa em dar uma definição, mesmo ciente das dificuldades, de “consciência” [consciousness, em inglês], tentando delimitar o que tal conceito quer dizer por meio de exemplos: um sistema é ou não consciente, mas, uma vez consciente, há uma variação de graus. Por exemplo, caso alguém esteja dormindo sem sonhar ou esteja em coma, estará inconsciente. Porém, se uma pessoa começa a sonhar, ela terá consciência em certo grau, mesmo que menor se comparado ao estado de vigília. Mesmo acordado, há uma variação, pois misteriosamente alguém pode estar mais consciente da partida de seu time de futebol do que da aula de Filosofia...
Antes de prosseguir, deve-se ressaltar que a noção de mente em Searle é bastante distinta da que foi proposta pelo famoso filósofo francês René Descartes, no século 17 (na verdade, a concepção que apresentarei abaixo é bastante antiga, mas a formulação cartesiana é a versão mais famosa e a mais debatida na História da Filosofia). De acordo com este último, o homem é composto por duas substâncias distintas, a saber, o seu corpo (res extensa) e a sua alma ou espírito (res cogitans). Já que esta teoria pressupõe a existência (ontologia) de duas substâncias distintas (as coisas extensa e pensante), ela ficou conhecida como dualismo de substância ou, em referência nominal ao filósofo, dualismo cartesiano.
Segundo Descartes, caso eu analise o meu corpo (ou outro qualquer, como uma mesa, por exemplo), constatarei que ele tem uma extensão e, a partir disso, posso falar algo como “o meu corpo mede 1,72 m e pesa 80 Kg”. Entretanto, não faria sentido perguntar, literalmente em metros e em quilos, qual é o comprimento do meu desejo de tomar sorvete ou quanto pesa a minha crença em Deus! Meu corpo (coisa física/substância extensa) é ontologicamente distinto da minha mente (coisa não-física/substância pensante). Uma consequência dessa distinção é que o domínio mental é irredutível e independente do físico – isso significa, entre outras coisas, que não há nenhum impedimento que a minha mente exista sem o meu corpo após a morte deste (não por acaso, alguns defensores da concepção cartesiana possuem motivações religiosas...). O maior problema com o dualismo ontológico proposto por Descartes era explicar a interação causal entre os dois âmbitos: como é possível que (i) algo não-físico seja capaz de causar algo físico, e (ii) vice-versa? (i) Eu desejo (estado mental) levantar o meu braço direito e, logo em seguida, há um movimento corporal correspondente ao meu desejo (processo físico); (ii) um corte em meu pé me causa dor (causação físico-mental, oposta ao sentido causal do exemplo anterior). Enfim, Descartes não conseguiu dar uma resposta satisfatória para esse problema, mas o que interessa aqui, no que diz respeito à sua teoria, é basicamente o seguinte: o domínio físico dos corpos (astros, formações rochosas, e corpos de animais humanos e não humanos) é passível de ser estudado pelas Ciências Naturais, mas não o domínio do mental. Searle discorda disso!
Em oposição ao dualismo cartesiano, Searle defende que consciência é física, especificamente, biológica e, portanto, pode e deve ser estudada cientificamente. Como ela é a noção central do mental, deve-se situá-la em relação às concepções científicas atualmente aceitas, deixando para trás o arcabouço cartesiano que considera o mental como não-físico: “Um dos principais objetivos deste livro é tentar remover esse obstáculo [separação entre mente e matéria], trazer a consciência de volta ao objeto da ciência como um fenômeno biológico semelhante a qualquer outro” (p. 127). Mesmo sabendo que as atuais teorias científicas podem se mostrar erradas no futuro, existem duas que estão muito bem estabelecidas e é fundamental tê-las como pano de fundo no estudo da consciência, a saber, as Teorias Atômica e Evolutiva.
O que Searle chama de Teoria Atômica poderia ser vagamente apresentada da seguinte forma: o Universo é composto de matéria que se agrupa em níveis cada vez mais complexos formando sistemas, os quais podem ser subsistemas de sistemas mais complexos. Dessa maneira, há o nível mais básico formado por “partículas” subatômicas (comportamento dual onda-partícula, na verdade), as quais formam átomos, estes formam moléculas etc. Isso significa que os sistemas complexos são constituídos e causalmente explicáveis pelos sistemas mais simples subjacentes. Portanto, o cientista é capaz de explicar um fenômeno de nível superior através de um de nível inferior, o que traz “como consequência que haverá diferentes níveis de explanação do mesmo fenômeno, dependendo se vamos da esquerda para a direita de macro para macro ou micro para micro, ou de baixo para cima de micro para macro” (p. 129). Prata & Lima Filho (2013, p. 202) esquematizaram a causação mente-corpo no Naturalismo Biológico a partir de uma analogia feita por Searle em seu livro publicado originalmente em 1983, Intencionalidade:
O que está representado acima são os diferentes níveis de um mesmo sistema: os processos do micronível (processos cerebrais e mudanças fisiológicas) causam e realizam os estados e processos do macronível (intenção em ação e movimento corporal). Observe que há um tipo de causa simultânea aqui envolvida no esquema: os processos cerebrais, por exemplo, causam a intenção em ação (efeito), mas ambos ocorrem simultaneamente em t1 (causação de baixo para cima de micro para macro). Quando se afirma que o meu desejo de tomar sorvete (intenção em ação) causa o meu movimento corporal, está envolvida uma causação de macro para macro e da esquerda (t1) para a direita (t2). Contudo, Searle também afirma que é possível a causação descendente: o meu desejo de tomar sorvete (macronível - t1) causa as mudanças fisiológicas (micronível - t2), o que é representado pela seta diagonal. Por fim, é perfeitamente possível se falar da diagonal ascendente, isto é, que processos cerebrais (micronível – t1) causam o movimento corporal (macronível – t2). Em resumo, há um mesmo sistema descrito em diferentes níveis.
Já de acordo com a Biologia Evolutiva, as várias espécies de organismos que existem foram se originando e se modificando no decorrer do tempo geológico por processos evolutivos, como os que envolvem o mecanismo de seleção natural (este é um dos mecanismos, mas não o único). Em uma dessas grandes linhagens, os animais, houve uma tendência de cefalização, na qual alguns organismos desenvolveram sistemas nervosos complexos o suficiente para causar e sustentar estados e processos mentais conscientes. Pode-se, segundo Searle, afirmar categoricamente isso, mesmo que atualmente os cientistas desconheçam os detalhes de como os processos neurobiológicos causem a atividade mental e tampouco saibam afirmar quais espécies de animais não-humanos são conscientes. Vale ressaltar que esta também é mais uma diferença entre a posição de Searle e a de Descartes, já que este último afirmava que animais não-humanos não passam de autômatos – possuem res extensa (corpo), mas não res cogitans (“alma”).
Há, por conseguinte, uma continuidade entre o Homo sapiens e o restante do mundo natural, o que inclui considerar que a consciência evoluiu gradualmente por meio de um longo processo evolutivo. Portanto, a consciência surgiu evolutivamente e é uma característica biológica que emerge da atividade de sistemas nervosos complexos (chimpanzés, golfinhos, cães, gatos etc.):
“Consciência, em resumo, é uma característica biológica de cérebros de seres humanos e determinados animais. É causada por processos neurobiológicos, e é tanto uma parte da ordem biológica natural quanto quaisquer outras características biológicas, como a fotossíntese, a digestão e a mitose” (p. 133, grifos de Searle).
Defender que a consciência é física, mais especificamente, biológica, não significa negar que ela pudesse ser causada e realizada por outros substratos distintos, como o silício, por exemplo. Do mesmo modo que é possível construir asas de avião com materiais distintos das asas de insetos, aves e morcegos, poder-se-ia produzir uma mente artificial, desde que se duplicassem os poderes causais dos processos neurobiológicos:
“(...) se fôssemos produzir consciência artificialmente, a maneira natural de agir seria tentar reproduzir o fundamento neurobiológico [leia-se: reproduzir os poderes causais do cérebro] efetivo que tem a consciência em organismos como nós próprios” (p. 136).
Após situar o lugar da consciência na natureza, isto é, depois de mostrar que sistemas complexos são formados por sistemas mais simples e estes, em última análise, por “partículas” subatômicas e, além disso, que o surgimento evolutivo de determinados sistemas nervosos complexos propiciou o aparecimento da atividade mental consciente, Searle afirma que fenômenos mentais conscientes têm uma característica especial – a subjetividade. Antes de prosseguir, vale a pena diferenciar o modo de existência (questão ontológica) do modo de conhecer (questão epistemológica) algo. Pode-se verificar a verdade ou a falsidade de algumas questões epistemológicas objetivamente, mas não de outras. Observe e compare os seguintes juízos: 1) “Fernando Collor de Mello foi o melhor presidente da história do Brasil” e 2) “Fernando Collor de Mello nasceu no Rio de Janeiro e foi o 32º presidente do Brasil”. O primeiro exemplo trata-se de um juízo subjetivo, o qual depende de preferências, sentimentos e visões pessoais, mas, diferentemente, há uma objetividade epistêmica no que se refere ao segundo, já que qualquer um, independente de sexo, gênero, religião ou nacionalidade pode constatar a sua veracidade.
Entretanto, quando Searle afirma que a consciência é subjetiva, ele não está falando de subjetividade epistêmica, mas, sim, subjetividade ontológica. Isso significa que o modo de existência da consciência, que é uma propriedade ou característica biológica, é distinto do modo de existência das demais coisas do Universo, tais quais montanhas, nuvens ou rios: respectivamente, trata-se dos modos de existência de 1ª pessoa (ontologia subjetiva) e 3ª pessoa (ontologia objetiva). Sendo assim, a cadeia montanhosa dos Andes existe de modo independente em relação aos sujeitos e continuaria a existir mesmo que todos nós morrêssemos. Entretanto, pode-se dizer que dores, crenças e desejos são sempre estados mentais de um sujeito, e dependem deste para existir, o que significa dizer que eles são ontologicamente subjetivos. Mais do que isso, um estado mental ontologicamente subjetivo, como a dor, pode ser objetivamente constatada e verificada do ponto de vista epistêmico:
“‘Agora tenho uma dor na parte inferior das minhas costas.’ Essa afirmação é completamente objetiva no sentido de que é tornada verdadeira pela existência de um fato real, e não é dependente de nenhuma posição, atitude ou opinião de observadores. Entretanto, o próprio fenômeno, a própria dor real, tem um modo subjetivo de existência, e é neste sentido em que estou dizendo que a consciência é subjetiva” (pp. 139-40).
Logo após criticar os argumentos de concepções rivais, como as dos filósofos Thomas Nagel e Colin McGinn, Searle se volta para o famoso argumento do zumbi filosófico. De acordo com este argumento, é logicamente possível que se imagine um ser fisicamente idêntico a mim, molécula por molécula, e, mesmo assim, que tal indivíduo não possua quaisquer estados mentais qualitativos, isto é, seja um zumbi no sentido filosófico – identidade de constituição física e identidade de comportamento observável com ausência de consciência fenomênica. É importante não confundi-lo com os populares zumbis de livros, filmes e jogos eletrônicos: basta que você imagine – isso é o que os filósofos denominam experimento de pensamento – uma duplicata física sua (identidade de constituição) sem qualquer tipo de estados conscientes (ausência de consciência fenomênica). Nesse sentido, o zumbi responderia que a capital do Brasil é Brasília e a luz vermelha do semáforo o faria parar o carro (identidade comportamental), mas, diferentemente de você, o seu clone físico não teria nenhuma representação fenomênica de sobre Brasília nem qualquer sensação de como é ver vermelho (ausência consciente). Geralmente, o argumento do zumbi é utilizado como crítica às posições fisicalistas reducionistas da mente, já que mostraria que a base física não é suficiente para explicar a atividade consciente – pode-se duplicar aquela sem ter esta última. Tampouco seria suficiente observar o comportamento de alguém para lhe atribuir mentalidade (problema de outras mentes), mas esse é outro assunto.
Entretanto, o argumento do zumbi parece, pelo menos parcialmente, se opor à origem e vantagem evolutiva da consciência: se o zumbi se comporta de modo idêntico a mim, que possuo fenômenos mentais conscientes, para que postular que a consciência evoluiu biologicamente, ou seja, qual seria a vantagem evolutiva de um organismo ser consciente? Searle responde em termos gerais da seguinte maneira a este questionamento: “(...) a consciência serve para organizar um determinado conjunto de relações tanto entre o organismo e seu ambiente quanto entre o organismo e seus próprios estados” (p. 157). Em síntese, a experiência sensorial consciente permite que o organismo veja, escute e perceba cheiros de potenciais predadores/presas, rivais ou parceiros sexuais (obtenção de informação sobre o mundo), e estas experiências sensoriais, por sua vez, trazem uma óbvia vantagem em termos de ação: correr do predador, caçar uma presa, lutar com o rival ou cortejar e copular com uma fêmea (ação sobre o mundo): “(...) na percepção consciente o organismo tem representações causadas por estados de coisas no mundo, e, no caso de ações intencionais, o organismo provoca estados de coisas no mundo através de suas representações conscientes” (p. 158).
Visto isso, pode-se concluir que os poderes de discriminação perceptual e flexibilidade comportamental propiciados pela atividade mental consciente são muito mais complexos e finos do que os de mecanismos inconscientes de percepção e ação, o que serve para mostrar o porquê dela ser uma característica biológica evolutivamente vantajosa, mesmo que se leve em consideração o intenso gasto metabólico para produzi-la e sustentá-la através da atividade de sistemas nervosos complexos:
“A hipótese que estou propondo, então, é que uma das vantagens evolutivas conferidas a nós pela consciência é a flexibilidade, sensibilidade e criatividade muito maiores que derivamos do fato de sermos conscientes” (p. 160).
Finalizarei mencionando rapidamente duas dificuldades que geralmente são apontadas ao Naturalismo Biológico, uma referente à redução e outra à causação. Searle afirma que a consciência é uma característica biológica ordinária como a fotossíntese, a mitose ou a digestão. Entretanto, diferente destas últimas, a consciência é ontologicamente subjetiva. Eis que surge um sério problema: caso alguém perguntasse a Searle se a consciência é redutível aos processos neurobiológicos, ele responderia que sim e não! Ela é causalmente redutível, já que é explicável pela atividade neurobiológica do sistema nervoso, mas também é ontologicamente irredutível, pois os fenômenos mentais conscientes possuem uma ontologia de 1ª pessoa e os processos cerebrais têm uma ontologia de 3ª pessoa. Muitos críticos já apontaram que não é coerente defender ambas as posições – redução causal e irredutibilidade ontológica.
Uma segunda crítica diz respeito à concepção de causação mental de Searle. Observando mais uma vez o esquema supracitado e levando-se em consideração que a intenção em ação (modo de existência subjetivo) é ontologicamente distinta dos processos cerebrais (modo de existência objetivo) que a causam e realizam, tem-se o seguinte dilema: ou um mesmo efeito (mudanças fisiológicas) tem duas causas (processos cerebrais e intenção em ação), caracterizando uma sobredeterminação causal, ou se considera que há um fechamento causal do mundo físico e se afirma que os processos cerebrais (causa física) é que provocam as mudanças fisiológicas (efeito físico), ou seja, a intenção em ação é apenas um epifenômeno dos processos cerebrais, sendo causalmente inerte – não há causação descendente! Searle rebate (ou tenta) ambas as críticas, mas o exame de suas respostas aos críticos ultrapassa os objetivos desta resenha.
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Referências Bibliográficas:
PRATA, T. A. & LIMA FILHO, M. M. Oscilações entre o Reducionismo e o Fisicalismo Não-Redutivo no Naturalismo Biológico de John Searle. Trans/Form/Ação, v. 36, n.2, p. 195-218, Maio/Ago., 2013. [PDF]
SEARLE, J. R. Intencionalidade. Tradução de Julio Fischer e Tomás Rosa Bueno, revisão técnica de Ana Cecília G. A. de Camargo e Viviane Veras Costa Pinto, 2ª edição, São Paulo, Martins Fontes, 2002.
_______ . A Redescoberta da Mente. Tradução de Eduardo Pereira e Ferreira, 2ª edição, São Paulo, Martins Fontes, 2006.
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Créditos das figuras
ANDRZEJ WOJCICKI/SCIENCE PHOTO LIBRARY
PAUL D STEWART/SCIENCE PHOTO LIBRARY
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Maxwell Morais de Lima Filho – Biólogo, Mestre e Doutorando em Filosofia pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Sou Membro Associado da Sociedade Brasileira de Filosofia Analítica, Professor de Filosofia do Instituto de Ciências Humanas, Comunicação e Artes (ICHCA) e Pesquisador do Grupo Linguagem e Cognição da Universidade Federal de Alagoas (UFAL).