Thursday August 16, 2012
Anonymous: Gostaria de saber como ocorreu a evolução da estrutura mamária. Ao meu ver, até que tivesse evoluído completamente, seria inútil - e não haveriam motivos para ser favorecida pela seleção natural.
Esta visão bastante equivocada é comum entre os leigos em biologia evolutiva e origina-se do foco exclusivo na função e nas características específicas de uma dada estrutura biológica nas espécies viventes, confundindo as funções atuais, e, portanto, as pressões ecológico-funcionais que fazem com que as estruturas em questão mantenham-se de uma dada forma, com a função primordial que moldou as pressões ancestrais originais no começo da evolução da linhagem possuidora da estrutura, sistema, órgão ou comportamento em questão.
O maior antídoto para esta perspectiva mais estreita é a abordagem comparativa que teve seu grande impulso com o pensamento Darwiniano. Ainda no século XIX, Darwin já havia proposto que as glândulas mamárias devem ter se originado de glândulas cutâneas [1] - e que hoje acreditamos terem sido algum tipo de glândula sudoríparas apócrinas associadas aos folículos pilosos* - em um ancestral Sinapsida, como foi postulado mais recentemente [2], há algumas centenas de milhões. Estudos de fósseis de terapsídeos, um subgrupo dos sinapsídeos mais primitivos, como os cinodontes, de cerca de 200 milhões de anos, sugerem que estes animais já eram capazes de produzir uma secreção como o leite, muito rica em nutrientes, o que teria trazido vantagens evolutivas, permitindo a diminuição no tamanho dos ovos e o nascimento em um ’estado altricial’, isto é, indefeso e que requeria que os jovens fossem alimentados pelos pais.

Então, a partir dessas informações, o primeiro ponto digno de nota é que a lactação originalmente parece ter sido efetuada como um mero exsudato da pele, como até hoje ocorre nos mamíferos monotremados, como ornitorrincos e as equidnas, que não possuem as estruturas mamárias características de outros mamíferos e que normalmente associamos com a lactação.
Voltando a sugestão inicial de Darwin, ela era que as glândulas cutâneas teriam se modificado para secretar substâncias nutrientes que alimentariam os ovos mantidos em bolsas junto ao corpo das fêmeas. Algo semelhante pode ser observado hoje em dia em certos peixes modernos, como os ’Acarás-disco’, que alimentam suas larvas através de muco secretado da pele, por ambos os pais [3]**. O mais incrível, entretanto, é que a secreção destas substâncias também parece ser controlada neuroendocrinologicamente pela prolactina, o mesmo hormônio que atua em nós mamíferos e que desempenha uma função análoga [3, 4].

Versões mais modernas dessa mesma ideia têm sido propostas em que as secreções cutâneas, que mais tarde (em linhagens subsequentes de sinapsídeos) teriam evoluído no leite, tenham tido sua origem como resultado de pressões seletivas para: i) manter os ovos úmidos, especialmente os ovos de cascas mais porosas em um contexto de maior contato materno em função da evolução do maior cuidado parental [5]; ii) mantê-los livres de infecções (originalmente através da secreção de moléculas antimicrobianas, algumas delas que já deveriam se secretadas pela pele dos tetrápodes, como ainda fazem os anfíbios modernos), função essa que, aliás, juntamente com a nutrição, persiste como importante característica do aleitamento [6, 7]; iii) simplesmente alimentar os jovens recém chocados nascidos em precocemente e em um estado altricial. [Lembrem-se que os mamíferos monotremados mantém a característica ancestral de botar ovos]; ou, por fim, por que, originalmente, as secreções tenham sido usadas para orientar os jovens à suas mães [8].
O mais importante, porém, é que ao analisarmos comparativamente os mamíferos modernos (monotremados, marsupiais e eutérios) e mesmo outros grupos de animais que secretam substâncias que podem ajudar a nutrir e proteger a sua prole, conseguimos inferir duas coisas:
A prrimeira delas é que o aleitamento evoluiu originalmente muito antes da evolução da glândulas mamárias que não são necessárias para o processo em seu estado inicial, como fica claro ao observar-mos os monotremados. Já a segunda, é que é bem possível que as glândulas mamárias e parte da evolução de sua diferenciação tenha ocorrido antes da viviparidade e talvez de forma parcialmente independente. Esta ideia tem sido corroborada por estudos genômicos das células responsáveis pela produção do leite e dos tecidos das glândulas mamárias em geral que revelaram grande conservação nas proteínas que compõem o leite e em outros componentes das vias bioquímicas e de sinalização celular do sistema de lactação nos três grupos de mamíferos, isto é, monotremados, marsupiais, eutérios [10]. Estas análises confirmam a origem antiga do sistema de lactação e fornecem informações úteis para compreendermo as funções das proteínas do leite específicas no controle da lactação e de que outras proteínas podem ter sido derivadas [7, 9].
De posse desses dados, fica bem mais fácil de compreender como, após as funções nutricional e imunológica da lactação terem evoluído, originalmente, modificações adicionais nas glândulas secretoras, associadas a otimização da secreção do leite (por exemplo, através da hipertrofia do tecido glandular e da evolução de mamilos - que teriam sua origem em regiões de maior concentração gandular e que tornariam os pelos, através dos quais a secreção gotejava, obsoletos - poderiam ter ocorrido sem muitos problemas, com cada uma delas sendo vantajosa por si só em determinados contextos [2].
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*É importante notar que esta associação, além de ser ainda mantida nas glândulas mamárias dos monotremados - que são formadas por conjuntos mamo-pilo-sebáceos bem concentrados e que se abrem um região sem mamilo, também pode ser obserbada durante o comecinho do desenvolvimento ontogenético de marsupiais em que este tecido ainda conta com pelos [2, 9].
**Existem outros exemplos também bem interessantes, sendo o mais conhecido o ‘leite de papo’ produzido por pombos, que também uma secreção glandular e que alimenta a prole jovem desses animais, após a eclosão e que a exemplo dos mamíferos e Acarás-disco também parece depender da prolactina [3, 4, 10]. Porém, talvez o mais impressionante seja um paralelismo evolutivo encontrado em alguns insetos, como a mosca Tse-tsé que está associada a a ‘viviparidade adenotrófica’, em que um único ovo da mosca se desenvolve em um larva no interior do útero do inseto, onde é alimentado por uma substância leitosa secretada por uma glândula que localiza-se dentro do útero [11].

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Literatura Citada e Recomendada:
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Oftedal, OT (2002). “The mammary gland and its origin during synapsid evolution”. Journal of Mammary Gland Biology and Neoplasia 7 (3): 225–52. doi:10.1023/A:1022896515287.
Chong, K.; Joshi, S.; Jin, L. T.; Shu-Chien, A. C. (2006). “Proteomics profiling of epidermal mucus secretion of a cichlid (Symphysodon aequifasciata) demonstrating parental care behavior”. Proteomics 6 (7): 2251. doi:10.1002/pmic.200500591. PMID 16385477.
Khong, H. K.; Kuah, M. K.; Jaya-Ram, A.; Shu-Chien, A. C. (2009). “Prolactin receptor mRNA is upregulated in discus fish (Symphysodon aequifasciata) skin during parental phase”. Comparative Biochemistry and Physiology Part B: Biochemistry and Molecular Biology 153: 18.
Oftedal, O.T. (2002). The origin of lactation as a water source for parchment-shelled eggs Journal of Mammary Gland Biology and Neoplasia. 7. pp. 253–266.
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Graves B.M and Duvall D. (1983). “A role for aggregation pheremones in the evolution of mammallike reptile lactation”. The American Naturalist 122 (6): 835–839. doi:10.1086/284177.
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Créditos das Figuras:
LAGUNA DESIGN/SCIENCE PHOTO LIBRARY
JOHN BAVOSI/SCIENCE PHOTO LIBRARY
ASTRID & HANNS-FRIEDER MICHLER/SCIENCE PHOTO LIBRARY
NATURAL HISTORY MUSEUM, LONDON/SCIENCE PHOTO LIBRARY
DR. JOHN BRACKENBURY/SCIENCE PHOTO LIBRARY
Acará-disco - wikicommons
Grande abraço,
Rodrigo