Thursday February 13, 2014
Anonymous: A base da evolução é variabilidade genética, ou seja, para evoluir é necessário diversidade genética. Tal diversidade é gerada por eventos mutacionais que são oriundos de erros aleatórios durante a duplicação do DNA para formação de gametas. Porque os eventos mutacionais em células somáticas não são importantes para evolução? Se tais erros são realmente aleatórios, porque as espécies se parecem tão adaptadas a seus ambientes?
Corrigindo um pouco sua afirmação e começando a responder sua primeira questão:
“A base da evolução é variabilidade genética, ou seja, para evoluir é necessário diversidade genética. Tal diversidade é gerada por eventos mutacionais que são oriundos de erros aleatórios durante a duplicação do DNA para formação de gametas.
Porque os eventos mutacionais em células somáticas não são importantes para evolução?”
As mutações somáticas são, em geral, consideradas menos importantes do que as mutações nas linhagens gaméticas por que elas não são passadas às gerações futuras (como pode ocorrer com as mutações que ocorrem nos gametas), influenciando apenas indiretamente na evolução das populações, por exemplo, ao aumentarem ou diminuírem a sobrevida dos organismos que as portam, mais ou menos, como fazem as variações nas condições ambientais, como predadores, parasitas, espaço, parceiros, temperatura, oferta de alimentos etc. Por exemplo, uma mutação somática que cause algum tipo de doença degenerativa e portanto diminua a sobrevida dos indivíduos que as portam terão sim um impacto populacional do grupo, contribuindo para alterar as proporções dos tipos de indivíduos nas próximas gerações. Porém, como ela não é diretamente passada às futuras gerações por não ter ocorrido nas linhagens que formam os gametas, seu impacto não será muito diferente de um fator ambiental, como a predação ou um acidente, que remova um indivíduo da população e, portanto, afete seu sucesso reprodutivo. Compreende?
“Se tais erros são realmente aleatórios, porque as espécies se parecem tão adaptadas a seus ambientes?”
Primeiro de tudo, é preciso lembrar em que sentido usamos o termo ‘aleatório’ na biologia evolutiva. Neste contexto 'aleatório’ não necessariamente sinônimo de 'equiprovável’ - ou seja, de que todas as possibilidades sejam exatamente as mesmas. De fato, raramente este é o caso, já que existem tanto mutações mais recorrentes (veja esta resposta sobre 'transversões vs transições’) como também regiões genômicas que são mais afetadas por mutações, os chamados 'hotspots’. Isso quer dizer que, na moderna teoria evolutiva, as mutações são aleatórias no sentido de que elas não são mais ou menos prováveis de ocorrerem em função das 'necessidades’ dos organismos, da população ou da espécie. Este é o ponto chave. Há uma desvinculação, na origem das mutações, entre os efeitos fenotípicos das mutações e as necessidades dos organismos, o que nos leva a sua segunda pergunta. Isto é os erros de replicação que se perpetuam não ocorrem mais ou menos para atender as necessidades dos organismos.
A evolução é basicamente um fenômeno que ocorre em duas etapas; uma na qual a variabilidade hereditária é introduzida nas populações e a outra na qual estas variantes são fixadas ou eliminas. Isso quer dizer que evolução depende sim da variabilidade genética, mas também (como você deve já estar ciente) dos processos que controlam o destino destas mutações na população ao longo das gerações que estão atrelado a reprodução diferencial dos indivíduos. Podemos dividir estes processos em basicamente dois tipos principais: 1) os envolvendo flutuações aleatórias nas taxas de reprodução e sobrevivência dos indivíduos (como por exemplo seria o caso da deriva genética que pode estar associada a neutralidade das variações, ao 'efeito fundador’ e/a 'gargalos de garrafa populacionais’ que agem como verdadeiras 'loterias genéticas’); e 2) aqueles nos quais há a vinculação causal e sistemática entre a posse de determinadas características fenotípicas que variam entres os indivíduos na população (e que surgem como efeito das mutações, ou seja, da variabilidade) e o sucesso reprodutivo relativo maior (em um dado contexto ecológico e demográfico) dos indivíduos que portam certas características fenotípicas alternativas em relação aos não portadores, isto é, a seleção natural. Veja mais sobre isso aqui e aqui.
Este processo, apesar de poder ser contingente, não é aleatório em qualquer sentido importante, pois ele direciona a variação genética, filtrando-a e amplificando-a em consonância com o ambiente, e, assim, contribui para o melhor ajuste entre os organismos e seu meio-ambiente ao longo das gerações.
O processo de evolução adaptativa desta maneira, depende da variabilidade genética aleatória (cuja origem fundamental são as mutações), mas também do processo não aleatório de reprodução diferencial que chamamos da seleção natural por meio do qual os indivíduos mais ajustados ao seu meio tendem a deixar maior número de descendentes em virtude da posse de características particulares que os diferenciam de outros indivíduos em sua população ao interagirem entre si e como outros fatores do seu ambiente. Claro, em um determinado contexto ecológico e demográfico.
Pense, por exemplo, no caso de duas espécies de tentilhões de galápagos do gênero Geospiza que são estudados pelo casal Peter e Rosemary Grant, há mais de 30 anos.
O casal de pesquisadores conseguiu mostrar (ao compilar uma enorme quantidade de dados demográficos sobre nascimentos e mortes de indivíduos destas duas espécies de pássaros, correlacionando-os com os dados de tamanho corporal e dos bicos destas animais) que, dependendo das condições ambientais (especialmente envolvendo o regime e quantidade de chuvas) mudavam também as proporções dos tamanhos dos bicos dos tentilhões nas duas espécies ao longo dos anos e das gerações.
O mais importante foi que eles conseguiram obter evidências de que isso acontecia por causa de pressões ecológicas muito específicas. Os tentilhões, de maneira geral, consumiam preferencialmente as sementes menores, que como eram produzidas em menor quantidade, como os pesquisadores puderam constatar durante os períodos de estiagem e secas mais intensas, eram exauridas rapidamente pelo consumo dos tentilhões, o que levou a uma alta taxa de mortalidade por causa da fome. Porém, esta taxa de mortalidade não distribuía-se aleatoriamente entre os indivíduos das espécies analisadas. Na verdade, nestes períodos, os animais com corpos e principalmente bicos maiores e mais robustos eram menos afetados pela mortalidade, simplesmente, por que conseguiam alimentar-se das sementes mais duras que sobravam, já que conseguiam quebrá-las e abri-las com mais facilidade por causa de seus bicos. Como os tamanhos corporais e dos bicos são herdáveis, isso fazia com que, nas gerações seguintes, houvessem mais animais com bicos maiores, ou seja, havia ocorrido seleção natural para os tamanhos de bicos maiores, portanto, a característica expandia-se na população. Este fenômeno persistia enquanto as condições continuavam as mesmas.

A figura acima ilustra a seca na ilha de Daphne maior , no arquipélago de Galápagos, que começou no final dos anos 70 e que teve um efeito muito grande na vegetação (compare com a imagem menor no canto superior direito da mesma área antes da seca), oque acabou por produzir as condições de seleção natural que provocaram estes episódios de rápida mudança evolutiva associada ao tipo de semente disponível. [Retirado de Cain, Yoon & Singh-Cundy, 2009, p 339]
O ponto crucial aqui é que as diferenças na oferta de tipos distintos de sementes favoreciam de maneira desiigual os indivíduos nascidos com bicos maiores ou menores, ou seja, àqueles que eram mais ajustados a um tipo de recurso alimentar mais abundante tendiam a sobreviver por mais tempo e gerar mais descendentes. Então, embora o surgimento da variação nos tamanhos e formas de bicos ao longo das gerações fosse aleatório, dependendo das circunstâncias ambientais, previsivelmente, um tipo ou o outro de indivíduos sobreviviam por mais tempo e teria mais chance de reproduzir-se em maior proporção, em virtude da vantagem que seu bico lhe proporcionava na exploração do recurso alimentar mais disponível, o que variava em virtude do clima e umidade. Com a volta das chuvas estes quadro era revertido, pois a vantagem dos bicos maiores desaparecia por que as sementes menores e mais maciais voltavam a abundar, com outros fatores passando a pesar mais na sobrevivência e sucesso reprodutivo diferencial.

O exemplo dos estudos realizados pelos Grant mostra que, apesar das circunstâncias ambientais, muitas vezes, variarem de maneira mais ou menos aleatória, uma vez persistindo uma dada condição ambiental, o resultado era o mesmo, ou seja, aumentavam na população aqueles indivíduos com a característica que tornava seus portadores mais capazes de alimentarem-se do recurso mais disponível por causa de efeito direto desta característica no sucesso reprodutivo dos indivíduos que as manifestavam e nos seus descendentes caso o contexto ambiental não sofresse alterações. Note que no período de seca não surgiam mais indivíduos mutantes com bicos maiores, mas os já existentes na população ou aqueles, por ventura, que tivessem surgido por mutações aleatórias, durante aquele mesmo período, teriam mais chances de sobreviver e reproduzir simplesmente em virtude do papel desta característica fenotípica em sua capacidade de alimentação. Veja também o artigo da revista Genética na escola sobre o tema.
Este exemplo ilustra tanto o caráter direcional e, portanto, não-aleatório da seleção natural- relacionando o sucesso reprodutivo causalmente aos tamanhos dos bicos e portanto a fatores biomecânicos específicos que provocam mudanças nas proporções de indivíduos com certos genótipos e fenótipos nas populações ao longo das gerações- como, ao mesmo tempo, deixa clara a sua natureza contingente deste mesmíssimo processo, especialmente a longo prazo, já que as flutuações pluviométricas e na oferta de sementes, podem tornar os resultados da evolução dos bicos imprevisível a longo prazo.
Existem outros exemplos de seleção natural [veja por exemplo “Evolução em ação: Três experimentos demonstrando a Seleção Natural” e “Um único gene, muitas histórias:”] que ajudam a enfatizar a não-aleatoriedade (no sentido que já discuti) deste processo em relação a aleatoriedade na origem da variabilidade genética por mutações e de sua manutenção ou perda em virtude de processos estocásticos, como a deriva genética, mas, normalmente, estes fatores, assim como as mutações, asmigrações, a recombinação etc interagem entre si e, por isso, nem sempre é fácil isolá-los em estudos observacionais. O que vemos, portanto, é na maioria das vezes o resultado conjunto destes vários processos e mecanismos que contribuem para a alteração das características herdáveis das populações de organismos ao longo das gerações, incluindo a formação de novas linhagens.
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Literatura Recomendada:
Futuyma, D.J. Biologia Evolutiva. Funpec: Ribeirão Preto. 3ª Edição. 2009. 830 p.
Freeman, S.; Herron, J C.. Análise Evolutiva. 4ª edição Porto Alegre: Artmed, 2009. 831 p.
Sadava, David et al. Vida: a ciência da biologia – 8a. ed.Volume II: Evolução, diversidade e ecologia Porto Alegre: Artmed, 2009.
Ridley, Mark. Evolução 3ª edição Porto Alegre: Artmed, 2006. 752 p.
Forbes, A. A. & Krimmel, B. A. (2010) Evolution Is Change in the Inherited Traits of a Population through Successive Generations. Nature Education Knowledge 3(10):6 [Link]
Sabeti, P. (2008) Natural selection: uncovering mechanisms of evolutionary adaptation to infectious disease. Nature Education 1(1) [Link]
Gregory, T. Ryan Understanding Natural Selection: Essential Concepts and Common Misconceptions Evolution: Education and Outreach Volume 2, Number 2, 156-175, DOI: 10.1007/s12052-009-0128-1 [Link]
Brandon, Robert, “Natural Selection”, in Zalta, Edward N. (ed.) The Stanford Encyclopedia of Philosophy Spring 2014 Edition.
Andrews, C. A. (2010) Natural Selection, Genetic Drift, and Gene Flow Do Not Act in Isolation in Natural Populations. Nature Education Knowledge 3(10):5 – [Link]
Grant, Peter R. and Grant, B. Rosemary Unpredictable Evolution in a 30-Year Study of Darwin’s Finches 26 April 2002: 296 (5568), 707-711. doi:10.1126/science.1070315 [Link].
Grant, P. R. & Grant, B. R. 1995. Predicting microevolutionary responses to directional selection on heritable variation. Evolution 49: 241-251.
Grant, P. R. & Grant, B. R. 2000. Non-random fit-ness variation in two populations of Darwin ́s finches. Proc.R. Soc. Lond. B 267: 131-138.
Grant, P. R. & Grant, B. R. 2002. Unpredictable evolution in a 30-year study of Darwin ́s finches. Science 296: 707-711.
Lyria Mori, Cristina Miyaki, Yumi e Arias, Maria Cristina (2006) Os tentilhões de Galápagos: O que Darwin não viu, mas os Grants viram Genética na Escola Ano 1 vol 1 [Link]
Cain, Michael L. , Yoon, Carol Kaesuk, Singh-Cundy,Anu Dicovery Biology 4th.ed New york • London: W. W. Norton & Company, 2009. xxv, 793, [93] p
Grande abraço,
Rodrigo