Thursday January 07, 2016
Anonymous: As críticas de Harun Yahya ao fóssil do Archaeopteryx o desqualificam como forma de transição entre dinos e aves?
Fica um pouco difícil de responder a sua pergunta com mais precisão sem saber de que críticas exatamente você está falando. Porém, posso adiantar que os fósseis de Archaeopteryx são fósseis de formas de transição evolutiva entre os dinossauros não-avianos e as aves, por definição, em virtude exatamente do tipo de características que eles exibem. Eles são um entre várias formas de transição. Note bem, esses animais, entretanto, não são ancestrais diretos das aves, o que é frequentemente apregoado pelos criacionistas como algo que os desqualificaria como formas de transição, mas essa crítica não faz sentido. Ela simplesmente erra feio no que diz respeito ao que são os tais fósseis de formas de transição. [Veja este vídeo aqui]
Os Archaeopteryx fazem parte de um ramo colateral da árvore evolutiva dos terópodes do qual as aves também fazem parte, mas isso não altera seu status de forma de transição. É muito importante que isso seja bem compreendido. A evolução não é um processo predeterminado de mudança linear, mas é um processo contingente de descendência com modificação que muitas vezes envolve a ramificação e divergência de linhagens. É por isso que a própria expressão ‘elo perdido’ (infelizmente ainda muito empregada) é enganosa, já que parece remeter a uma corrente linear e de ancestralidade de descendência direta. Outro problema com esta ideia é que ela dá ênfase demais a espécies (ou a ‘elos’) individuais. Na realidade, é o padrão geral de similaridade relativa entre os seres vivos, que permite que agrupemos as diversas linhagens em grupos dentro de grupos (formando ‘hierarquias aninhadas’), e de alteração gradativa de suas estruturas (i.e. dos 'estados dos caracteres’), em diferentes linhagens e ao longo do tempo, que é o ponto mais fundamental de buscarmos identificar as formas de transição.
Na verdade, chega ser ridículo apontar como objeção o fato de um espécimen não poder ser uma forma de transição simplesmente por não ser um ancestral direito de outro grupo de ser vivo, atual ou extinto. A questão é que não há como saber, como certeza, se um fóssil em particular é ou não de uma espécie que foi diretamente ancestral de outra mais moderna. Como a evolução é um fenômeno arborescente, de ramificação e divergência de linhagens, podem haver várias formas ancestrais de transição e que podem perdurar por mais ou menos tempo e deixar ou não fósseis. É o estado de derivação de suas estruturas que interessa. Sendo assim, mesmo representantes tardios de uma linhagem - ou seja, espécimens de períodos posteriores ao que se estima ter ocorrido a separação das linhagens de interesse - não são excluídos como formas de transição. Eles apenas precisam exibir as características em estados semelhantes a dos seus ancestrais comuns e portanto menos derivadas do que a da outra linhagem e mais do que a de outra. Claro, espécimens mais antigos (i.e. que datem de antes da separação das linhagens) são melhores, pois podem nos fornecer mais informações sobre o ‘quando’ e ‘onde’ essas características evoluíram originalmente, mas nem sempre dispomos deles por razões óbvias: A fossilização é um evento raro e contingente.
Agora vamos lá. Por que os espécimens de Archaeopteryx são considerados exemplos de formas de transição?
Esses animais exibem o tipo de mosaico de características anatômicas que esperaríamos encontrar nas tais formas de transição; É isso que nos permite inferir e portanto reconstruir como eram os ancestrais comuns de outros grupos aparentados com estes seres. Isto é, organismos como o Archaeopteryx possuíam características fenotípicas em estágios intermediários de derivação entre formas mais primitivas (ancestrais) e outras formas mais derivadas. Por exemplo, no caso do Archaeopteryx temos um animal com bicos e dentes, penas e caudas ósseas rígidas, além de asas e dedos bem discerníveis nelas [Veja aqui]. Os espécimens que fossilizaram-se sem penas inclusive foram confundidos com outro pequeno Dinossauro terópode, o Compsognathus, deixando clara a natureza transicional destes animais. Isso fica ainda mais claro ao nos darmos conta das descobertas na paleontologia feitas nas últimas três décadas que incluem fósseis de outros dinossauros terópodes não-avianos e não voadores com penas e de aves primitivas com dentes e garras discerníveis em suas asas. [Veja o ótimo vídeo inteiro do paleontólogo Donald Prothero sobre esse assunto aqui.]
Na figura abaixo podemos ver em A um cladograma simplificado do grupo de Dinossauros chamado de Theropoda.
As aves remanescentes encontram-se aninhadas dentro do grupo maior chamado de Avialae, que inclui o mais recente ancestral comum capaz de voar do Archaeopteryx e todos os seus descendentes. Neste cladograma são mostarda as relações filogenéticas entre gêneros mais representativos de terópodes Sinosauropteryx, Caudipteryx, Sinornithosaurus, Archaeopteryx, Confuciusornis, Neuquenornis, Yixianornis, Anas, e Gallus. Também são destacados dois grandes eventos que ocorreram durante a evolução das penas: A origem de estruturas integumentares filamentosas consideradas homólogas às penas das aves e a primeira aparição de penas penáceas alongadas. Também é destaca a primeira vez em que o voo por batimento ativo das asas, minimamente otimizado, considerado homólogo ao das Aves, apareceu. Em B são mostrados dois dos clados (Theropoda e Sauropodomorpha) que constituem o grupo Saurischia, que, juntamente com Ornistichia, forma o grupo Dinosauria. [Clarke, Julia., Middleton, Kevin Current Biology, 2006 DOI: http://dx.doi.org/10.1016/j.cub.2006.04.023].
Para saber mais sobre a evolução das aves e do voo veja está resposta aqui.
————————
Literatura Recomendada:
Prothero, D. Evolution: What the Fossils Say And Why It Matters, Columbia University Press, New York, 2007. 381 pages.
Hunt, Kathleen Transitional Vertebrate Fossils FAQ The TalkOrigins Archives [Last Update: March 17, 1997]
Clarke J, Middleton K. Bird evolution. Curr Biol. 2006 May 23;16(10):R350-4. DOI: http://dx.doi.org/10.1016/j.cub.2006.04.023
Créditos das Figuras:
Molde do espécimen de Berlin de Archaeopteryx lithographica: Foto da coleção da UCMP
Cladograma simplificado dos Terópodes: Current Biology (Clarke e Middleton 2006).