Thursday November 14, 2013
Anonymous: olá. porque o estômago de animais carnívoros é mais ácido que o nosso? e porque os darwinistas defendem que nossa dieta pode ter sido "onívora" nos últimos tempos, já que existem várias sementes e até cogumelos cheios de proteínas?
De uma perspectiva adaptativa, a alta capacidade de secreção de ácido dos estômagos dos carnívoros está associada a sua dieta de carne crua e mesmo em decomposição, uma vez que o pH bem ácido ajuda no controle das bactérias que são ingeridas [veja aqui], mas cuidado, é preciso ter em mente que a faixa de pH média nos estômagos dos carnívoros não é tão diferente assim dos seres humanos, por exemplo, hipercarnívoros, como felinos, mantém uma média de pH entorno de 2,5 ±0,7. Ao que parece a maioria da diferença está no fato dos carnívoros conseguirem manter o pH por volta de 2-3 mesmo durante a ingesta de alimento.
Não compreendi sua segunda questão especialmente por que ela parte de certos pressupostos nada claros. O primeiro deles é quem seria estes tais ‘Darwinistas’ e quando seria exatamente 'estes tais últimos tempos’? Realmente fiquei com dificuldade para saber do que você está falando. A última pergunta também é um pouco estranha pois o que uma coisa tem haver com a outra. Até onde sabemos os seres humanos tem uma dieta bastante diversificada e oportunista que incluem o consumo de raízes, frutas, sementes e fungos, além de animais. Na verdade, essa é até hoje basicamente a dieta de nosso parentes mais próximos os chimpanzés e bonobos que, apesar de consumirem principalmente de vegetais cerca de 95 – 98% de sua dieta, também consomem animais, principalmente térmitas e outros insetos, mas também, eventualmente, até outros macacos menores.
Nós, seres humanos, entretanto, temos outras particularidades que diferenciam-nos de outros grandes primatas, como o fato de, há mais de 2 milhões de anos, dominamos o fogo, o que possibilitou o cozimento dos alimentos, além de termos evoluído uma complexa organização sociocultural e alto nível cognitivo que nos permitiu caçar em grupo e pescar de modo mais efetivo, principalmente munidos de uma série de artefatos e ferramentas que serviam não apenas para caçar, mas para remover o couro, descarnar, limpar e partir os ossos, ganhando acesso a medula. Estamos co-evoluído biológica e culturalmente há milhões de anos, de modo que mesmo nossos primos vivos mais próximos parecem não ser um modelo muito bom para a evolução de nossa dieta.
Temos muitas evidências arqueológicas e paleontológicas para tudo isso que mencionei, inclusive temos algumas evidências mais recentes que indcam uma mudança dietária, ao longo da evolução de nossa linhagem, há mais tempo do que simplesmente os últimos 2 milhões de anos, antes mencionados. Estas evidências sugerem uma diversificação dietária ainda mais precoce que envolveu a inclusão de vários itens vegetais diferentes, mas que, muito provavelmente, também envolveu a incorporação do consumo de carne - o que é evidenciado pelos estudos isotópicos dos dentes fossilizados - mesmo que em pequenas quantidades e de maneira oportunista, talvez muito mais associado a hábitos carniceiros do que propriamente a caça, que é uma questão ainda bem debatida entre os paleoantropólogos.
Além do mais, desde o advento da agricultura e pecuária, algo em torno de 10 000 anos atrás (e temos também ampla evidência disso), houve uma rápida coevolução dessas práticas com nossas capacidades digestivas, como a ligada a disseminação de alelos que nos possibilitam digerir a lactose (do leite) mesmo na fase adulta de nossas vidas [veja aqui também] e àquela associada a multiplicação de cópias de genes responsáveis pela digestão de amido, provavelmente, vinculada ao cultivo de plantas ricas neste recurso.
Não creio, portanto, que a onivoría de populações tradicionais e especialmente de populações ancestrais pré-históricas humanas seja algo controvertido, pelo menos, entre os antropólogos, fisiologistas comparativos e paleoantropólogos que estudam esta questão. Creio que, no máximo, podemos dizer que é ainda um tanto controverso o papel do aumento de consumo de carne e gordura animal durante a evolução humana, especialmente no que tange ao impacto disso em nossa evolução cerebral e cognitiva.
Por fim, saindo um pouco do tema, gostaria de deixar claro que tudo que eu afirmei não quer dizer necessariamente que não seja perfeitamente viável para nós, seres humanos, mantermos uma dieta vegetariana – especialmente atualmente devido a disseminação da agricultura e ao avanço da industria de suplementos alimentícios. Porém, esta é uma outra questão que tem muito mas a ver com gosto pessoal, sustentabilidade e consciência ética. É importante que não confundamos as coisas.
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Literatura Recomendada:
Perry GH, Dominy NJ, Claw KG, Lee AS, Fiegler H, Redon R, Werner J, Villanea FA, Mountain JL, Misra R, Carter NP, Lee C, Stone AC (2007) Diet and the evolution of human amylase gene copy number variation. Nat Genet. 39(10):1256-60 [PDF].
Schaffner, S. & Sabeti, P. (2008) Evolutionary adaptation in the human lineage. Nature Education 1(1)
Plummer TW, Ditchfield PW, Bishop LC, Kingston JD, Ferraro JV, et al. (2009) Oldest Evidence of Toolmaking Hominins in a Grassland-Dominated Ecosystem. PLoS ONE 4(9): e7199. doi:10.1371/journal.pone.0007199
Pobiner, B. (2013) Evidence for Meat-Eating by Early Humans. Nature Education Knowledge 4(6):1
Domínguez-Rodrigo, M. and Pickering, T. R. (2003), Early hominid hunting and scavenging: A zooarcheological review. Evol. Anthropol., 12: 275–282. doi: 10.1002/evan.10119
Grande abraço,
Rodrigo