Tuesday December 04, 2012
Anonymous: Muitos criacionistas argumentam que a documentação fóssil não corrobora a teoria da evolução. Partindo dessa posição pergunto: Como funciona exatamente o método de datação fóssil e quão confiável é? Existe realmente fósseis intermediários? De quais espécies? Como ter certeza disso? Como posso analisar as evidências? No que tange ao ser humano, o que a paleontologia moderna tem a dizer? A ideia de elo perdido é apenas um mito? Ou os cientistas realmente estão em busca desse tal elo? Obrigado!
Vamos respondendo e comentando, parte por parte:
“Como funciona exatamente o método de datação fóssil e quão confiável é?”
Sobre a primeira questão, recomendo uma resposta deste mesmo tumblr em que são comentados e na qual são dadas referências sobre os procedimentos de geocronologia, i.e. de estimação da idade da terra, além das excelentes explicações contidas em uma edição especial do programa ‘Fronteiras da Ciência’ sobre o tema.
Os métodos de datação modernos conhecidos como métodos de datação radiométrica baseiam-se em uma ampla gama de evidências empíricas e em sólidos princípios teóricos da física moderna. Este conjunto de métodos baseia-se na comparação da abundância relativa de certas variantes instáveis de elementos, conhecidos como isótopos radioativos que ocorrem naturalmente, e os produtos de sua desintegração, o que nos permite, a partir do conhecimento das suas taxas de decaimento e do processo de formação dos cristais nas rochas sendo datadas, estimar o tempo desde este acontecimento.
Estes métodos empregados conjuntamente aos princípios estratigráficos e de datação relativa dos estratos geológicos são a base da geocronologia moderna que é usada para estabelecer a escala de tempo geológico.
Os métodos de datação por radioisótopos como já mencionado baseiam-se no fato bem conhecido que certos isótopos instáveis de certos elementos desintegram-se emitindo partículas ou radiação gama e transforma-se em outros isótopos a uma taxa constante que é típica de cada elemento e que constitui-se em sua meia-vida. O ponto mais fundamental é que, de modo geral, as meias-vidas desses ‘nuclídeos’, como em geral são chamados pelos geofísicos que lidam com estes métodos, dependem unicamente de suas propriedades nucleares e são essencialmente constantes, não sendo afetadas de modo apreciável por fatores externos tais como pressão, temperatura, pelo ambiente químico no qual se encontram e nem mesmo pela presença de campos magnéticos ou elétricos.[A][B][C] Por causa disso, em qualquer material onde exista um dado nuclideo radioativo, a proporção do mesmo e do seus produtos de decaimento deverão mudar de um modo bem previsível a medida que os nuclídeos original se desintegra ao longo do tempo. Portanto, através da abundância relativa dos nuclídeos relacionados - isto é, dos isótopos originais e dos derivados, ou sejam dos nuclídeos ‘pai’ e ‘filho’ - é possível devido a constância da taxa de decaimento calcular o tempo passado desde a incorporação dos nuclídeos originais até o presente. Então, para que possamos datar um dado fóssil a partir de uma rocha que tenha se formado naquele estrato é necessário que desde a formação da rocha sendo datada nem o nuclídeo pai nem o nuclídeo filho possam ter entrado ou saído do material, após a sua formação.
Os cientistas tendo consciência disso levam em conta os possíveis efeitos de confusão da contaminação de isótopos pais e filhos nas amostras, considerando em suas estimativas estes efeitos a partir do conhecimento do contexto de onde e como foram obtidas as amostras (por exemplo verificando possíveis sinais de alteração) e de informações sobre os processos de formação das rochas e minerais estudados, além de sempre que possível tomarem medidas de várias amostras diferentes e de vários minerais diferentes na mesma rocha, a partir da mesma amostra, o que extremamente importante já que sendo eles formados pelo mesmo evento (e estando em equilíbrio com o ‘reservatório’ durante o processo de formação) estes minerais devem ter sido formados na mesma época, o que torna mais fácil detectar inconsistências, reduzindo muito o problema da contaminação e dando muito mais confiança as estimativas. Além disso, outra forma de aumentar nossa confiança nos métodos de datação (além de datar amostras diferentes e de diferentes locais, associadas ao estrato ou fóssil em questão) é usar outros métodos de datação que se baseiam em em outros pares de nuclídeos, mas com meias-vidas que se sobreponham.
Outro fator crucial para poder datar uma amostra de rochas é o conhecimento da chamada ‘temperatura de encerramento’, uma vez que se um material é aquecido até certas temperaturas (que difere de material para material e de sistema isotópico e que pode ser determinado experimentalmente), os nuclídeos filhos que haviam se acumulado ao longo do tempo até então serão perdidos através da difusão, o que leva em última instância a zerar o “relógio” de decaimento, isolando o sistema isotópico. Desde modo, à medida que o mineral esfria, e a estrutura do cristal começa a se formar, a difusão de isótopos torna-se cada vez mais difícil até que chega um ponto, a ‘temperatura de encerramento’, em que pode voltar a haver acumulação do nuclídeo filho. Então, a idade que pode ser calculada pelos métodos de datação radiométricos é, assim, o tempo desde que a rocha ou mineral arrefeceu para a ‘temperatura de encerramento’.
Entre os pares de isótopos mais conhecidos para a datação estão o potássio-argônio e urânio-chumbo, porém o método mais conhecido é de radiocarbono que usa o isótopo C14 que tem uma meia vida de 5730 anos e que tem uma eficácia máxima de 60000 anos, uma vez que depois deste tempo só restam traços do isótopo (mas ao mesmo tempo, como a concentração de carbono-14, cai abruptamente com o tempo, diferenças de idade de restos relativamente pequenas podem ser determinada com precisão de poucas décadas), o que o torna ideal na datação de restos orgânicos de sítios (e associados a artefatos) arqueológicos, e não na estimativa das idades de fósseis e estratos geológicos, como às vezes parecem acreditar certos criacionistas mais desinformados que o habitual. Para saber mais sobre o método do C14 veja nossa resposta sobre este tema.
Portanto, concluindo a resposta a sua primeira pergunta: Sim os métodos são muito confiáveis e não há quaisquer indicação de que as meias-vidas tenham se modificado de maneira substantiva de modo que possam dar origem a estimativas tão erradas como querem os criacionistas, comprimindo os bilhões de anos de nosso planeta e sistema solar, respaldados pelas datações, em apenas poucos milhares de anos. Inclusive estudos de supernovas que ocorreram há centenas de milhares de anos confirmam a estabilidade dos elementos (veja o artigo online de Laurence krauss) e só aumentam nossa confiança nos processos de datação, uma vez que para descartá-los teríamos também que desprezar a relatividade de Einstein, sem mencionar que as escalas de tempo reveladas pela geocronologia são completamente consistentes com a antiguidade de nossa galáxia e do universo de modo geral, como estabelecido pelos estudos astrofísicos e cosmológicos. Para mais sobre o assunto veja o verbete da wiki sobre este assunto aqui.
Veja também estas respostas do formspring (form_1 e form_2) e estes links do programa fronteiras da ciência da rádio UFRGS (aqui e aqui). Se vc tiver a oportunidade também tente encontrar o livro “BONES, ROCKS AND STARS: THE SCIENCE OF WHEN THINGS HAPPENED” de Cris Tuney.
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“Existe realmente fósseis intermediários?”
Sim, existem ‘fósseis intermediários’ aos montes que nos permitem investigar os detalhes de diversas transições morfológicas importantes entre grandes grupos de organismos nos possibilitando compreender como novas características se originam de características anteriores. Porém, é preciso ter em mente que a evolução se dá através de um processo de ramificação e divergência de populações e linhagens com alguns desses ramos derivados de linhagens anteriores se extinguindo enquanto outros dão origem a mais ramos e assim por diante. Este processo de cladogênese (de separação de linhagens) é que produz o padrão filogenético que basicamente é um padrão genealógico de relacionamento entre as linhagens (populações, espécies etc) de organismos vivos. O que os cientistas querem ao analisar os organismos vivos e os fósseis é reconstruir estas relações de parentesco e compreender como, através do processo de ramificação e de divergência das linhagens, certas características evoluíram a partir de características mais antigas presentes em linhagens ancestrais.
O problema é que os criacionistas normalmente quando referem-se a ‘fósseis intermediários’, ou melhor dizendo aos fósseis das chamadas ‘formas de transição’, eles têm em mente algo muito diferente do que os biólogos evolutivos e paleontólogos realmente investigam. Para começar, é preciso ter claro que durante a evolução estruturas, órgãos, sistemas etc originam-se a partir de modificações de estruturas, órgãos e sistemas anteriores, o que leva os sistematas e biólogos comparativos a dividirem as características de modo relativo em termos de como e da que estrutura prévia se originaram durante a evolução, com algumas delas sendo consideradas ‘primitivas’, representando estados (ou versões) mais ancestrais da estrutura (órgão, sistema, etc) e outras sendo consideradas ‘derivadas’, isto é, que se originaram a partir de modificações das versões mais antigas. Desta maneira, as chamadas ‘formas de transição’ são os organismos (ou os restos de organismos, no caso dos fósseis) que mostram estados intermediários em relação a certas características, isto é, entre uma forma ancestral e a dela derivada, sendo derivada em relação a primeira e primitiva em relação a segunda. Portanto, estamos falando de uma expressão relativa. Por isso são exemplos de formas de transição aqueles organismos que exibem características em estados de derivação intermediários às características de outros dois organismos que são aparentados, ilustrando o padrão de mudanças evolutivos desta característica em particular em maior detalhamento. Há inúmeros exemplos de formas de transição no registro fóssil, proporcionando uma abundância de evidências de mudança ao longo do tempo, como estão listadas neste link da RationalWiki.
Como disse, estes organismos podem ser fósseis, representando espécies já extintas, como podem ser organismos existentes mas cuja aparência manteve-se muito semelhante a dos ancestrais mais antigos com as versões mais antigas do estado da característica. Embora, quanto mais antigos sejam os fósseis mais provável que representem as versões mais antigas daquela característica em questão por que mudanças anagenéticas, isto é, dentro de uma mesma e contínua linhagem, podem alterar a característica investigada. Por este motivo é que descobertas como a feita em 1938 de que peixes do grupo dos celacantos (como a Latmeria) não haviam sido completamente extintos há 70 milhões de anos atrás e, portanto, ainda existem remanescentes vivos em nada alteraram seu status de forma de transição entre os peixes ósseos e os tetrápodes, por que este grupo de peixes apresenta nadadeiras lobadas, isto é, com projeções ósseas robustas, e não as raias finas dos demais osteíctios (peixes ósseos), que representariam estágios iniciais na evolução entre as nadadeiras e membros tetrápodes.
Estes peixes jamais foram considerados ancestrais diretos dos tetrápodes posteriores, e muito menos dos mais modernos, mas apenas um grupo cujo estado das nadadeiras era tal que indicava ser intermediária entre outros peixes ósseos e anfíbios, por exemplo, desta forma devendo ser bem semelhante a como era um dos ancestrais diretos dos tetrápodes, servindo como ilustração de como foram os primeiros estágios da evolução dos membros tetrápodes e como evidência de que este processo ocorreu.
Não podemos nos esquecer que, embora a evolução em sua maior parte ocorra através de um processo de divisão e divergência de linhagens ao longo do tempo que acumulam mais diferenças quanto mais o tempo avança - e que por isso as formas mais antigas normalmente são as que possuem características em estado mais primitivo - entretanto, em muitos casos, as diferenças podem manter-se estáveis, como no caso do fenômeno conhecido como estase e que parece ser o caso dos celacantos [Veja este texto sobre padrões macroevolutivos].
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“De quais espécies?”
O primeiro fator a ser compreendido é que os fósseis só cobrem uma fração muito pequena dos organismos que já viveram, pois a fossilização só ocorre em condições muito particulares, como quando há o rápido soterramento por sedimentos anóxicos e com baixa atividade microbiana, quando os espécimens do organismo vivem em vastas áreas e existem em grandes quantidades, aumentando as chances de que isso ocorra, além de possuírem estruturas duras, como conchas, ossos, etc que sejam mais facilmente fossilizadas. Por causa disso não se espera que o registro fóssil seja altamente fino e ininterrupto e por isso nem sempre encontraremos aquilo que desejamos.
Assim, existem dois grandes tipos de fósseis de transição. O primeiro deles é representado por aqueles que mostram mudanças entre espécies (na realidade morfo-espécies) irmãs e que geralmente são constituídos por organismos unicelulares aquáticos que viviam em ambientes propensos ao soterramento, como mares rasos e lagos, e cujas características, como a presença de carapaças calcárias ou silicosas e existência em grande abundância, os tornaram mais facilmente fossilizados [Veja mais sobre isso na página de Don Lindsay e a FAQ sobre o assunto do TalkOrigin Archive] e que, além dos radiolários representados abaixo, outros exemplos podem ser encontrados aqui.
Acontece que isso nem sempre ocorre, uma vez que muitas espécies existem em pequenas populações e vivem em condições e possuem características nem sempre muito propensas a fossilização. Na realidade, como muitas vezes o processo de especiação ocorre de maneira alopátrica (ou mais especificamente peripátrica), isto é, envolvendo populações pequenas periféricas que estão isoladas da população principal, estes eventos são raramente observados no registro fóssil, com as espécies novas aparecendo de maneira ‘abrupta’ em termos geológicos, mas não em termos de tempo absoluto e muito menos em termos geracionais, com as diferenças já bem estabelecidas. [Porém, é preciso estarmos cientes que estamos falando de espécies irmãs cujas diferenças são relativamente pequenas, muitas vezes apenas diagnosticáveis por especialistas.] Este processo gera o padrão de ‘pontuação’ do ‘equilíbrio pontuado’ proposto pelos paleontólogos Niles Eldredge e Stephen Jay Gould na década de 1970 e que implica que as transições (envolvendo especiação, lembre bem) teriam ocorrido em pequenas populações periféricas, isoladas das populações das quais derivaram e divergiram, que por isso puderam mudar de maneira independente e relativamente rápida, e que por estes motivos não deixaram vestígios no registro fóssil do processo em maior detalhe [Veja também este texto sobre as diferenças entre ‘gradualismo filético’ e ‘equilíbrio pontuado’].
Este não é o caso do segundo tipo séries de fósseis de formas de transição que envolvem períodos ainda mais extensos de tempo e espécimens de espécies relativamente distantes ainda que aparentadas. Este segundo tipo de fósseis de formas de transição são aqueles que mencionamos anteriormente e que nos revelam o processo de transição entre grandes grupos e em que podemos observar o histórico de mudança de uma estrutura ou conjunto de estruturas que deram origem a as estruturas de vários grupos modernos, como é o caso da transição entre dinossauros e aves, ou entre peixes e tetrápodes, ou entre artiodátilos terrestres e cetáceos etc. Nestes casos, o que temos são espécimens de espécies que podem ser relativamente distantes do ponto de vista filogenético e que podem ter coexistido por milhões de anos, mas que possuíam as características de interesse em estados de derivação intermediários aos demais organismos da ‘série’.
As formas intermediárias ou transicionais não precisam, desta maneira, representar séries contínuas lineares de ancestrais e descendentes diretos. Na realidade, em geral, em se tratando dessas grandes transições, os pesquisadores trabalham com ramos colaterais que mantém as características em estados mais ancestrais. Isso acontece por que, embora a evolução em sua maior parte ocorra através de um processo de divisão e divergência de linhagens - que ao longo do tempo acumulam mais diferenças quanto mais o tempo avança e que por isso as formas mais antigas normalmente são as que possuem características mais primitivas -, entretanto, em muitos casos, as diferenças podem manter-se estáveis, como no caso do fenômeno da estase (o padrão de ‘equilíbrio’ do ‘equilíbrio pontuado) e que parece ser o caso dos celacantos [Veja este texto sobre padrões macroevolutivos].
Porém, além disso tudo, o ponto mais importante que precisa ser bem compreendido aqui é que os organismos que representam formas intermediárias não são em nenhum sentido ‘quimeras’ formadas por partes das características modernas dos grupos vivos que deveriam ‘ligar’ (como um organismo meio peixe e meio anfíbio, como a figura abaixo retirada de Higgs (2006a e b) ilustra ou como o famigerado ‘crocopato’, aí à esquerda, não nos deixa esquecer) e muito menos seres mal formados e incompletos como alguns criacionistas parecem sempre pressupor.
Você pode ler mais sobre isso nos artigos da paleontóloga Penny Higgs sobre o assunto que traduzimos para o evolucionismo.org, “Uso e Abuso do registro fóssil: Definição dos Termos Parte I” e “Uso e Abuso do registro fóssil: o caso do “Peixíbio” - Parte II”. Uma outra boa dica é o site ‘Entendo a evolução’, tradução do excelente Understanding Evolution (criado pelo museu de Paleontologia da Universidade da Califórnia com o apoio da Fundação Nacional de Ciência e do Instituto Médico Howard Hughes), especialmente a parte intitulada “Como sabemos o que e quando aconteceu”. Uma excelente maneira de visualizar e compreender melhor esta ideia de formas e fósseis de transição é através dos chamados evogramas, como o exemplo abaixo retirado do site original Understanding Evolution:
A vantagem dos evogramas é que através deles podemos observar diversas informações sobre o histórico de transição e sobre os padrões de mudanças dos organismos. Por exemplo, mais ou menos no meio da figura acima estão representadas reconstruções de vertebrados extintos (do Eusthenopteron ao Tulerpeton) só conhecidos a partir do registro fóssil que mostram a transição entre os vertebrados aquáticos e os vertebrados terrestres que deve ter ocorrido algo em torno de 380 milhões de ano, no período Devoniano. Nesta figura as barras azuis indicam o intervalo geológico em que fósseis encontrados daquele táxon foram datados (e que deve ser comparada com a escala no topo da figura), mostrando portanto a extensão de tempo que estas linhagens duraram e o período pelo qual algumas delas coexistiram.
À direita das reconstruções dos vertebrados fósseis estão esquemas detalhando as estruturas dos ossos dos membros dianteiros (nadadeiras/patas) com as cores indicando as estruturas correspondentes entre os diversos animais de modo que fiquem claras as homologias entre as estruturas e como, a partir de transformações no padrão de cada estrutura, uma estrutura homóloga pode ter se originado de outra mais ancestral. São estas mudanças entre estruturas homólogas de organismos aparentados que são o principal alvo de interesse dos cientistas e é a relação de derivação entre elas que serve como base para determinação de qual organismo é uma forma de transição entre outros dois. Note bem que é perfeitamente possível que outros fósseis de outros organismos daqueles grupos sejam encontrados e que façam que os cientistas reverem aquela filogenia (e portanto o evograma resultante). Porém, o padrão geral de evolução e de derivação de linhagens através das estruturas homólogas é inegável e só pode ser ‘explicado’ por modelos não evolutivos através de incríveis manobras retóricas e ideias ad hoc que não esclarecem nada e só colocam mais interrogações e que em geral implicam em um ônus metafísico ainda maior do que aceitar que estas estruturas tenham se originado de modificações de estruturas homólogas de ancestrais comuns através da descendência como modificação.
Algo que também não pode ser esquecido é que apesar de neste caso específico da evolução dos tetrápodes estejamos vendo um processo de divergência e complexificação estrutural na medida que novas linhagens surgiam com novas versões derivadas das estruturas das linhagens prévias, este não é sempre o caso. O processo de evolução pode muitas vezes resultar em simplificação ou mesmo perda de uma estrutura e por isso ‘derivado’ não é necessariamente sinônimo de mais complexo. Basta pensarmos nas serpentes, ictiossauros e cetáceos, por exemplo, todos vertebrados descendentes de vertebrados terrestres de quatro patas, e por conta disso também vertebrados tetrápodes, mas que sofreram modificações, como reduções e mesmo perdas de membros, ao evoluírem em condições diferentes como os modos de vida rastejante e aquático.
Voltando ao evograma, à esquerda dos esquemas coloridos, que ilustram os ossos homólogos dos membros dianteiros dos diversos vertebrados ali representados, podemos observar um conjunto de linhas que mostram o padrão de ramificação entre as linhagens. Esta parte do diagrama é portanto uma ‘árvore evolutiva’, ou uma filogenia, que mostra as relações de parentesco evolutivo inferidas entre estes animais. Por exemplo, através desta filogenia podemos perceber que Tulerpeton é o animal mais intimamente relacionado com os tetrápodes de hoje.
Enquanto isso, o Ichthyostega seria tão estreitamente relacionado com Tulerpeton como como os tetrápodes vivos, tendo se originado de uma ancestral comum a este dois grupos. Em seguida viria o Acanthostega que é descendente de um ancestral comum aos três grupos anteriormente mencionados. E assim por diante. Lembro aqui, mais uma vez, que, como a filogenia deixa bem claro, nenhum desses animais é ancestral direto um do outro. São apenas os parentes mais próximos que puderam ser descobertos através do estudo do registro fóssil. Como enfatiza o texto sobre os evogramas do Undestanding Evolution:
Isto é um pouco como comparar você, seu irmão, seu primo, e seu primo de segundo grau: nenhum deles é um ancestral direto seus ou dos outros, mas eles são sucessivamente menos estreitamente aparentados a você. Você está mais intimamente relacionado com o seu irmão, porque você só tem que voltar uma geração para encontrar um ancestral comum, assim você terá que voltar duas gerações para encontrar o ancestral comum que liga você ao seu primo. Da mesma forma, Tulerpeton é mais estreitamente relacionado com formas atuais de vida porque ele compartilha o ancestral comum mais recente com estas formas em comparação com os outros organismos na filogenia.
O importante é que através do estudo destas filogenias podemos identificar os pontos de ramificação, isto é, os ancestrais comuns entre certos grupos de organismos no qual uma determinada característica (ou estado de característica nova) deve ter surgido e que foi herdada por todos os descendentes daquele dois grupos (e que pode ter sido perdido ou modificada em algumas dessas linhagens descendentes) e é exatamente isso que é mostrado pelas linhas rosadas. Como explicado na citação anterior o que os biólogos e paleontólogos estão interessados é em tentar reconstruir as relações de parentesco (isto é, quem é irmão ou primo de quem) e como deveriam ser os ancestrais comuns, isto, os ‘avós’, ‘bisavós’, etc e não, necessariamente, identificar os indivíduos específicos.
Por isso, voltando a analogia da família, quando são encontrados fósseis de organismos de transição em períodos mais antigos de tempo bem próximo de quando se considera que houve a separação entre as linhagens investigadas não é por que os cientistas acreditam ter achado um ancestral comum direto dos grupos investigados que estes se empolgam, mas sim por que encontraram um organismo com as características de um ancestral comum direto, mas que poderia ser não o ‘tataravô’, mas uma ‘irmão’, ou ‘primo-irmão’ muito parecido com ele, mas cujas características permitem confirmar ou não as hipóteses sobre a evolução do grupo ou produzir filogenias mais precisas.
Por tanto, é preciso que fique bem claro que estas filogenias não são meras especulações, mas são hipóteses testáveis sobre as relações evolutivas entre diferentes organismos (ou os grupos que eles representam) e que podem ser avaliadas por diferentes conjuntos de dados de várias linhas de evidências e por diferentes métodos. Existem métodos analíticos e estatísticos muito desenvolvidos que nos permitem inferir estas filogenias e sempre que possível, a medida que novos dados (fósseis, moléculas, etc), estão disponíveis, testá-las novamente e compará-las quanto a sua congruência e mesmo em relação as pressuposições de que elas dependem.
As filogenias são construídas por meio da análise de conjuntos de características (morfológicas ou genéticas, por exemplo) dos grupos de organismos que desejamos estudar estudar as relações de parentesco. No caso dos evogramas, como estes lidam tanto com organismos extintos como com organismos vivos, são características morfológicas preservadas durante a fossilização as eleitas já que permitem a comparação entre ambos os tipos organismos. Estas características são então codificadas em uma matriz de dados, com o maior número possível delas, cada qual podendo estar em vários estados (no mínimo dois, presente ou ausente, por exemplo) dependendo o organismo estudado e que, por sua vez, representariam estados de derivação diferentes, com algumas sendo mais primitivas e outras mais derivadas, o que é estabelecido através da comparação com um grupo externo (“outgroups”), isto é, um organismo de um grupo de organismos que fossem equidistantes de todos os organismos comparados, como, neste caso do evograma, são os peixes ósseos modernos de nadadeiras raiadas. Como o celacanto e os peixes-pulmonados, estes peixes não possuem dedos discretos discerníveis, o que sugere que o ancestral comum destes três organismos não deveria tê-los também, e portanto também os de todos os demais grupos representados na filogenia, estabelecendo, assim, quais estados de características seriam os mais primitivos e em comparação os mais derivados.
A construção destas filogenias se dá ao inserir estas matrizes de dados das características, e dos estados das características dos organismos, em um computador que por meio de programas específicos, que podem usar diferentes algoritmos, criam as árvores de parentesco entre os grupos com base nos padrões de mudança e derivação entre os estados das características, escolhendo as melhores em função de vários critérios: como a parcimônia, por exemplo, isto é, aquelas que requerem o menor número de mudanças evolutivas de características novas compartilhadas entre os grupos; ou a partir da máxima verossimilhança ou por métodos que utilizam os princípios de inferência bayesiana tendo como base um determinado modelo de evolução. Neste caso, Tulerpeton e as formas de vida compartilharem o maior número destas características recentemente evoluídas, as sinapomorfias, o que os torna muito provavelmente parentes mais próximos uns dos outros.
Então, se você examinar o diagrama vai perceber que em algum ponto após a separação da linhagem de Panderichthys de nossos ancestrais comuns, o restante da linhagem, que deu origem aos tetrápodes, evoluiu articulações dos ombros capazes de suportar peso corporal, além de pulsos dobráveis e a separação entre cabeça e o corpo, isto é, um pescoço. Esta linhagem deu origem ao Tiktaalik, ao Acanthostega, ao Ichthyostega, ao Tulerpeton, e aos tetrápodes modernos, os quais todos herdaram estas características.
É desta maneira que interpretamos estes fósseis e as filogenias inferidas a partir do estudo de suas características e as dos organismos vivos destes grupos e é assim que conseguimos estudar o processo de transição entre os grupos e o de surgimento e evolução de novas características.
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‘Como ter certeza disso?’
Como você tem certeza de qualquer coisa em sua vida? :) Esta é uma questão muito mais filosófica do que propriamente científica, mas antes de começar a respondê-la é importante deixar claro primeiramente que ‘provas’ no sentido de algo irrefutável e absoluto não refletem o tipo de relação entre evidências e hipóteses, modelos e teorias que estão envolvidas na inferência científica. Sobre esta questão aconselho o artigo de Douglas L. Theobald sobre as ditas ‘provas cientificas’. Por causa desta natureza potencialmente refutável das evidências é que os cientistas usam várias estratégias inferenciais, analisam múltiplas linhas de evidências e empregarem uma gama de diferentes métodos para chegarem as suas conclusões que em um certo sentido são sempre provisórias já que são, em princípio, sempre revisáveis.
Então, o que posso lhe dizer sobre isso é que podemos ter tanta certeza quando podemos ter a partir dos métodos e procedimentos de investigação e inferência científicos modernos e que são respaldados por múltiplas linhas de evidência independentes, estando em pleno acordo com os conhecimentos científicos de outros campos, e que tem sido conduzidas por uma vasta, bem treinada, altamente crítica comunidade de investigadores que vêm fazendo isso por gerações e que, apesar de compartilharem os mesmo valores cognitivos que estão associados a prática científica, geralmente, divergem em vários outros aspectos, como por exemplo, em relação a religiosidade, ao posicionamento político etc.
Você pode muito bem duvidar das conclusões baseadas na ciência moderna, mesmo aquelas como a evolução biológica que são resultado de amplos e sólidos consensos multidisciplinares, mas esta dúvida é tão legitima como a de que o sol irá ‘nascer’ amanhã (procure na internet sobre o problema da indução) ou que nossa ‘realidade’ é apenas uma grande simulação ultra-hiper-realística em um gigantesco supercomputador. Então, embora possamos até aceitar que estes cenários são logicamente possíveis e não possamos provar estritamente falando que de fato eles não seriam o caso, não há realmente nada que mostre que estes outros cenários sejam tão plausíveis e prováveis como as conclusões baseadas na investigação científica ou que deveríamos nos guiar preferencialmente por eles e não pelo nosso senso comum e pelas ciências. Mas mesmo este senso mínimo de coerência torna-se bem complicado de ser mantido caso se aceite parte das conclusões e parte dos métodos (muitos deles os mesmos que permitem inferir o tempo profundo e o parentesco biológico generalizado entre os seres vivos) científicos, que é o que ocorre ao se defender posições como o criacionismo que basicamente insistem em dizer que as conclusões científicas estão corretas menos nos pontos em que contradizem as suas visões metafísicas e cosmogônicas particulares. Neste caso, este ceticismo parcial e dirigido só ao que não se gosta é resultado de uma oposição ideológica que acarreta em uma apreciação parcial e distorcida do processo de investigação científica, seus métodos, evidências e resultados.
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“Como posso analisar as evidências?”
Primeiro de tudo, eu aconselho você a se informar por meio de material científico propriamente dito e não por sites criacionistas. Sei que isso pode parecer meio óbvio, mas é sempre bom lembrar. Infelizmente, muita gente não faz isso e fica sempre com uma visão deturpada das teorias e da prática científica, mas é importante tentar compreender o que os próprios cientistas querem dizer com seus conceitos e definições, mas além disso é fundamental também conhecer um pouco os métodos da investigação científica, inclusive procurando se informar sobre no que eles se baseiam, de modo que você possa realmente ter claro para si mesmo quais as pressuposições das quais eles dependem. Assim, é possível, por exemplo, descobrir se elas, caso incorretas, realmente colocariam em cheque apenas as conclusões desconfortáveis aos criacionistas, ou a outros negacionistas de plantão, ou abalam todo o edifício do conhecimento humano e nossa habilidades de saber qualquer coisa. Neste segundo caso, não há muito o que fazer, além de sempre que possível testar estas premissas e se manter crítico e alerta as fontes de erros, como de fato fazem cientistas e os filósofos (estes últimos de uma maneira não empírica, claro,mas muitas vezes mais radical) que é o que mantém a confiabilidade destes tipos de estratégias de investigação. Este passo é importante por que, como eu havia aludido, em um certo sentido, a certeza - ou o conhecimento em sua concepção clássica, isto é, o de ‘crença verdadeira justificada’ que só considera conhecimento o que for infalível ou indubitável - é uma quimera provavelmente inalcançável.
A questão é que, embora tenhamos sempre que conviver com a incerteza de um jeito ou de outro, algumas coisas são mais incertas do que outras, bem como enquanto algumas formas de conceber o mundo são apenas becos sem saída, outras são bem mais intelectualmente produtivas. Por isso, adotando-se uma postura mais humilde epistemicamente que reconhece a falibilidade de toda empreitada intelectual humana, mas que ao mesmo tempo não abre mão de investigar o mundo de maneira diligente e crítica, permite a você manter-se alerta para os erros e equívocos aos quais estamos sempre sujeitos e assim apto a eventualmente detectá-los e corrigi-los. Isso é crucial, pois é desse caráter crítico e auto-corretivo que dependem as ciências e qualquer forma de investigação séria.
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‘No que tange ao ser humano, o que a paleontologia moderna tem a dizer?’
Isso daria um enorme post só sobre este assunto. Vou lhe indicar textos aqui do tumblr (aqui, aqui, aqui e aqui) e do evolucionismo.org sobre este tema e espero que isso possa lhe esclarecer um pouco mais sobre o que sabemos sobre evolução humana. Por exemplo, leia a série de posts “Quem somos nós e como sabemos quem somos?, Parte I”, Parte II e Parte III, além de artigos como “Mais vislumbres de miscigenações ancestrais no DNA humana” e, claro, o óimo site http://www.paleoantropologia.com.br/.
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‘A ideia de elo perdido é apenas um mito? Ou os cientistas realmente estão em busca desse tal elo?’
Infelizmente, a expressão ‘elo perdido’ ainda aparece em muitas reportagens de divulgação - e, pior ainda, é empregada mesmo por alguns cientistas-, mas, como espero ter ficado claro a partir da exposição sobre ‘formas de transição’, ela não é um termo muito útil. Primeiro por que dá a entender que os paleontólogos lidam com cadeias lineares de ancestrais e descendentes, o que é bem incomum em estudos de paleontologia e não reflete o caráter ramificado do processo de evolução. Além do mais, não se espera encontrar um único ‘elo perdido’, mas sim fósseis (ou organismos) que tenham as características em estados intermediários em relação a outros dois grupos e que preferencialmente tenham se originado nos períodos geológicos adequados de modo a explicar o processo de transição entre estes dois ou mais grupos de organismos. Portanto, em geral estaríamos sempre lidando com diversos ‘elos’.
O que ocorre, entretanto, é que quando se descobre um fóssil muito bem preservado e que mostra uma estrutura em um estado de derivação intermediário bem nítido - e que por causa disso acaba trazendo muita luz ao processo de como aquela estrutura, e aquele grupo, evoluiu, e este fóssil está em um estrato geológico bem específico, exatamente, onde os cientistas esperariam que ele estivesse -, então, muitos não resistem a tentação e chamam tal fóssil de ‘elo perdido’. Mas é importante compreender que esta é uma expressão mais de apreciação subjetiva da importância daquele fóssil para a compreensão da evolução de um grupo do que realmente um termo paleontológico ou de biologia evolutiva que tenha um significado bem preciso e que tenha alguma relevância teórica maior.
Espero que as coisas tenham ficado mais claras e caso a explicação não tenha sido suficiente não se acanhe e sinta-se a vontade para perguntar de novo sobre as partes que vc não compreendeu.
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Literatura recomendada:
Higgins, P., 2011. Uso e Abuso do registro fóssil: Definição dos Termos Parte I [traduzido por Rodrigo Véras, de Higgins, P., 2006. Use and Abuse of the Fossil Record: Defining Terms. Creation and Intelligent Design Watch, hosted by the Committee for the Scientific Investigation of Claims of the Paranormal.] evolucionismo.org. Acessado em 27/05/2011.
Higgins, P., 2011. Uso e Abuso do registro fóssil: o caso do “Peixíbio” Parte II [traduzido por Rodrigo Véras, de Higgins, P., 2006. Use and Abuse of the Fossil Record: The Case of the ‘Fish-ibian’ Creation and Intelligent Design Watch, hosted by the Committee for the Scientific Investigation of Claims of the Paranormal.] evolucionismo.org. Acessado em 27/05/2011.
Hazen, Robert M. How Old is Earth, and How Do We Know? (2010) Evolution: Education and Outreach 3: 2 198-205 DOI - 10.1007/s12052-010-0226-0
Krauss, Lawrence M. Cosmic Evolution (2010) Evolution: Education and Outreach 3: 2, 193-197 DOI-0.1007/s12052-010-0237-x [Veja também este artigo de Krauss]
MacRae, Andrew [Text last updated: October 2, 1998] Radiometric Dating and the Geological Time Scale: Circular Reasoning or Reliable Tools? The TalkOrigin Archive.
Padian, K. (2010). How to Win the Evolution War: Teach Macroevolution! Evolution Education and Outreach, 3(2), 206-214.
Theobald, D. (2004) Prova Científica? Projeto Evoluindo - Biociência.org. Trad.: Rubens Pazza [http://www.evoluindo.biociencia.org] do texto Theobald, Douglas (2004) Scientific “Proof”, scientific evidence, and the scientific method; in Theobald, Douglas L. “29+ Evidences for Macroevolution: The Scientific Case for Common Descent.” The Talk.Origins Archive. Vers. 2.83. 2004. 12 Jan, 2004.
Theobald, D. (2004) “29+ Evidences for Macroevolution: The Scientific Case for Common Descent.” The Talk.Origins Archive. Vers. 2.83. 2004. 12 Jan, 2004.
Grande abraço,
Rodrigo