Tuesday October 11, 2011
Anonymous: Artigos que falam que traumas no pênis, na mama, lábios etc causam câncer, isso não é lamarkicismo e contrário a evolução? Eu realmente não vejo a lógica, se nosso corpo está em constante traumas devido nossa movência... È claro, que uma certa protuberância ou calo vai ocorrer, mas cancer? revistaepoca****globo****com/Saude-e-bem-estar/noticia/2011/10/sexo-com-animais-por-que-fingir-que-isso-nao-existe****html
Essa questão é bastante interessante e me permite comentar sobre alguns equívocos recorrentes na compreensão da biologia evolutiva. Um deles se refere a distinção entre ontogenia e filogenia e o outro sobre os níveis da seleção que mostram que certos debates teóricos não são apenas relevantes aos filósofos e biólogos teóricos, mas também refletem questões bem próximas à todos nós. Ao mesmo tempo me permite enfatizar as diferenças e os problemas com termos como ‘Lamarckismo’ e 'Darwinismo’. Termos que deveríamos reconhecer seus usos históricos, mas na maioria das vezes deixar de lado em favor de uma visão mais moderna da biologia evolutiva e da própria teoria de evolução por seleção natural.
Quando vc escreve, “Artigos que falam que traumas no pênis, na mama, lábios etc causam câncer, isso não é lamarkicismo e contrário a evolução?”, imagino que por ’contrário a evolução’ vc queira dizer ’contrário a evolução por seleção natural’. Primeiro, isso só seria ’contrário a evolução por seleção natural’ caso traumas em uma geração causassem cânceres em outra através de algum processo de herança de caracteres adquiridos. Lembre-se que a evolução é um fenômeno transgeracional, portanto, são as populações que evoluem a medida que as características hereditárias dos indivíduos que as constituem mudam ao longo das gerações. Sua pergunta parece partir de uma confusão entre processos em dois níveis, o filogenético e ontogenético. Acontecimentos em uma fase da vida de um indivíduo podem (e frequentemente o fazem) repercutir diretamente em momentos posteriores da vida deste mesmo indivíduo, ou seja, em sua ontogenia, o processo que nos organismos multicelulares como os animais começa na fecundação e termina na morte.
Processos com a chamada adaptação fisiológica a ambientes diferentes, desenvolvimento da resposta imune adaptativa após a exposição a um agente infecioso e o próprio aprendizado que ocorrem durante a ontogenia dos indivíduos ilustram este fato.
Aquilo que se convencionou chamar de Lamarckismo [não muito adequadamente diga-se de passagem, pois não é criação de Lamark e nem o ponto crucial da teoria transformista do mesmo] seria a tese que estes tipos de modificação ontogenéticas que mencionei anteriormente poderiam ser passados às gerações futuras por um processo denominado de herança de caracteres adquiridos (ou “herança suave”) através do uso e desuso, ou seja, estruturas muito utilizadas em um individuo ao longo de sua vida tenderiam a ser mais frequentes na descendência do mesmo e as menos utilizadas tenderiam a ser mais escassas.
O interessante é que não era contra esta parte da teoria de Lamarck que Darwin se mostrava contrário, mas sim a ideia de direcionalidade intrínseca do processo evolutivo que segundo Lamarck tenderia a maior complexidade e a perfeição dos organismos. Este seria o cerne da visão de Lamarck, que parecia creditar esta tendência a um impulso (quase um vontade) imanente aos seres vivos que provocaria sua mudança através das gerações. Darwin, no entanto, aceitava a “herança suave” e sua especulativa (e errônea) teoria da hereditariedade lhe dava suporte. Mais tarde com o advento do Neo-Darwinismo calcado nos trabalhos de August Weismann é que o modelo de evolução por seleção natural ficou totalmente desvinculado da “herança suave”, sendo enfatizado que a variação natural espontânea era aleatória, no sentido de que sua origem não era direcionada pelas necessidades do organismo.
Agora voltando a sua pergunta. O primeiro ponto é que a ideia que traumas repetidos causem (ou, pelo menos, aumentem a chance de) neoplasias não tem necessariamente a ver com a evolução dos indivíduos, já que a evolução é um fenômeno transgeracional e estes traumas e seu suposto efeito na origem de cânceres ocorreria na mesma geração, isto, é em um mesmo indivíduo.
O maior problema com este tipo de proposta é que o câncer (os canceres) é uma doença multifatorial na qual fatores ambientais e genéticos estão envolvidos, o que impede o estabelecimento de relações simples como as sugeridas, mas, não obstante, não as inviabiliza, e processos como os mencionados parecem realmente contribuir para a gênese de cânceres, se não direta, indiretamente. Por exemplo, infecções por bactérias, parasitas ou vírus são reconhecidamente fatores de risco em humanos para câncer em vários locais do corpo, assim como, doenças inflamatórias como a hepatite, gastrite e colite. Traumas repetidos podem agir desta forma ao ativar cronicamente por longos períodos o sistema inflamatório, culminando no aumento crônico da produção e liberação de compostos genotóxicos e, potencialmente, mutagênicos (como espécies ativas de oxigênio, NO e seus derivados) que atuariam em conjunto com a constante reparação e remodelamento tecidual, especialmente, através da replicação celular. Este seria o ponto crucial destes modelos de desenvolvimento do câncer, pois quanto maior a taxa de proliferação de um tecido maior a chance que erros de replicação ocorram e se acumulem, sobretudo se estes tecidos estão em um micro-ambiente potencialmente mutagênico e que promova lesões pré-cancerígenas. Estes modelos vêm do reconhecimento cada vez maior da importância de fatores promotores e do micro-ambiente tecidual na gênese de tumores e outras formas de câncer.
Então, embora muitas mutações sejam realmente causadas por agentes mutagênicos que lesam diretamente o DNA, os próprios processos de replicação e reparo do DNA que ocorre durante a reprodução celular, por serem imperfeitos, são as principais causas de mutações. Tipos celulares com maior taxa de proliferação são, desta maneira, mais propensos a gerar tumores e outros tipos de câncer.
Muitos agentes cancerígenas têm um maior impacto durante a proliferação celular ao se combinarem com os erros naturais do sistema de transmissão hereditária. Algumas mutações que afetem diretamente os sistemas de controle do ciclo celular e reparo do DNA podem facilitar o aparecimento de novas mutações cancerígenas e assim descarrilhando todo o sistema de controle. Em conjunto, o aumento da taxa de mitose, a presença de substâncias mutagênicas, oriundas da resposta inflamatória, e alterações epigenéticas no micro-ambiente extra-celular, podem resultar no acúmulo de mutações potencialmente cancerígenas, como as envolvendo proto-oncogenes e genes supressores de tumores que em condições normais fazem que as células multipliquem-se e morram quando devam, mantendo a homeostasia.
Assim, sobretudo na presença de predisposições genéticas hereditárias e/ou lesões pré-tumorais causadas por exposição a carcinógenos ambientais (como certos agentes químicos e a radiação ionizante), tais traumas, através do processo de inflamação a elas seguido, poderiam levar ao aparecimento de várias formas de câncer. A via causal, mesmo que complicada e multifatorial, existe, ainda que não saibamos com precisão quão importantes são cada um dos eventos e fatores envolvidos. Mas, em todo o caso,essas propostas que vc se refere não envolvem necessariamente nenhuma contradição com a evolução biológica e muito menos ao modelo Darwiniano de evolução por seleção natural.
Existe, contudo, realmente uma vinculação mais forte entre o desenvolvimento dos vários tipos de câncer com a evolução biológica e o princípio de seleção natural. Isso pode ser outra fonte para o equívoco conceitual a que me referi, envolvendo os níveis ontogenéticos e filogenéticos. De fato, a moderna teoria evolutiva, especialmente o modelo de evolução por seleção natural de Darwin e Wallace, poder ser aplicado ao desenvolvimento do câncer em um organismo individual, mas para que façamos isso as células é que devem encaradas como os indivíduos que se reproduzem mais ou menos em função da posse de certas mutações, sendo sua dinâmica completamente análoga a dinâmica dos organismos em uma população biológica em evolução por seleção natural. Desta maneira, as células em uma lesão pré-cancerígena e/ou cancerígena com mutações que lhes confiram capacidade de se 'libertarem’ dos mecanismos de controle tecidual, como a inibição por contato, a incapacidade de sobreviver sem certos sinais químicos tróficos etc, teriam uma vantagem em relação as demais e se reproduziriam mais.
Outras mutações poderiam conferir as células descendentes dessas gerações iniciais a capacidade de evadir os tecidos onde estão e se propagar a outros tecidos, expressando enzimas que degradam a matriz extra-celular e evadindo as células do sistema imune. Neste caso, um processo de acúmulo de mutações e competição entre células mutantes poderia impulsionar lesões pré-cancerígenas em direção a lesões cancerígenas cada vez mais agressivas e resistentes a agentes quimioterápicos, de maneira extremamente similar ao que ocorre com a evolução da resistência a antibióticos e antivirais que ocorrem com bactérias e vírus. Estas possibilidades também ilustram o fato do processo de seleção natural, como seria de se esperar de um processo natural, ser “cego’ as suas consequências de longo prazo, pois em geral o sucesso de células tumorais envolve a morte do indivíduo que as porta e portanto seu próprio fim, a menos que consigam escapar deste indivíduo como fizeram as células de tumores transmissíveis venéreos caninos e faciais dos diabos da Tasmânia.[1]
Mas é bom que fique claro que estamos falando de processos em níveis diferentes e os 'indivíduos’ e as 'populações’ envolvidas são diferentes. No caso da evolução de populações de células tumorais em um indivíduo, os traumas, lesões teciduais repetidas e o processo inflamatório decorrente delas seriam análogos ao aumento do estresse ambiental e principalmente aos agentes mutagênicos que refletiriam em uma maior variabilidade hereditária e em um contexto de competição entre os tipos diferentes, transformando uma população clonal ou quase-clonal (mutações somáticas e os processos de rearranjo das células imunitárias seriam as exceções) em uma população mais variada na qual algumas variantes - ao escapar dos sistemas de controle do crescimento celular e tecidual típico dos organismos multicelulares - poderiam ter maior sucesso reprodutivo. Assim, teríamos um conflito evolutivo entre 'dois níveis de individualidade’ remanescente, talvez, dos primórdios da evolução da multicelularidade, mas que até hoje podemos vislumbrar em processos patológicos como o câncer. Na realidade, este processo seria ainda mais complicado pois haveria uma forte interação entre os níveis, pois processos populacionais ao nível dos organismos (e não só das células individuais) poderiam contribuir para o acúmulo e disseminação de mutações associadas ao maior risco de cânceres, seja pelo efeito da fixação de mutações ligeiramente deletérias através da deriva genética em populações com tamanho efetivo reduzido ou em consequência da seleção natural de mutações vantajosas a curto prazo que aumentem o risco de câncer a longo prazo, compensado pelo aumento a fertilidade dos indivíduos portadores, em um processo denominado de antagonismo pleiotrópico.
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Literatura Recomendada:
Coussens LM, Werb Z. Inflammatory cells and cancer: think different! J Exp Med. 2001 Mar 19;193(6):F23-6. Review. PubMed PMID: 11257144; PubMed Central PMCID: PMC2193419.
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Feinberg AP, Tycko B. The history of cancer epigenetics. Nat Rev Cancer. 2004 Feb;4(2):143-53. Review. PubMed PMID: 14732866.
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Liu, Chunxiang and Ehrlich, Elana (Created: May 13, 2011) The Role of Inflammation in Cancer [Art direction: Ken Mattiuz.] Site da SABiosciences Qiagen, Acessado em 11 de outubro de 2011.
Kuper H, Adami H-O & Trichopoulos D Infections as a major preventable cause of human cancer (Internal Medicine in the 21st Century). J Intern Med 2000; 248: 171–183.
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Sawa T, Ohshima H. Nitrative DNA damage in inflammation and its possible role in carcinogenesis. Nitric Oxide. 2006 Mar;14(2):91-100. Epub 2005 Aug 15. Review. PubMed PMID: 16099698.
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Zimmer, Carl Câncer e seleção natural: Pistas Evolutivas do Câncer Medicina: Scientific American Brasil - Ed. Nº 43 2001 Duetto editora.
Sobre a questão do Lamarckismo sugerimos a resposta anterior sobre o tema que pode ser encontrada aqui e especialmente no artigo que segue:
Ghiselin, Michael T. The Imaginary Lamarck:A Look at Bogus “History” in Schoolbooks The Textbook Letter, September-October 1994
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Nota:
[1] Aqui cabe ressaltar outra diferença entre os antigos modelos de evolução por 'herança suave’ (equivocadamente denominados de 'Lamarckismo’) em animais e o que ocorre em entidades unicelulares, como bactérias, protistas e células tumorais. As objeções clássicas à herança de caracteres adquiridos através do uso e desuso só fazem sentido ao discutirmos seres multicelulares em que ocorre o fenômeno de “segregação precoce do germoplasma”, isto é, em que os tecidos reprodutivos (aqueles que darão origem aos gametas) estão, desde muito cedo no desenvolvimento do indivíduo, devidamente separados do resto do corpo, que chamamos tecidos somáticos. Esta situação resultaria no que alguns chamam de 'barreira de Weismann’ (em referência ao mesmo August Weismann já citado neste mesmo texto) que inviabilizaria a passagem de alterações somáticas para as células germinativas e delas à próxima geração. Porém, isso não faz sentido em organismos unicelulares que reproduzem-se por divisão binária, portanto, herdando as alterações hereditárias que ocorreram na geração anterior. A chamada transferência horizontal de genes que ocorre comumente em bactéria e a capacidade de heranças de modificações do citoplasma cortical em ciliados é outro exemplo de herança de caracteres adquiridos e não causam nenhum alarde. O problema maior da herança suave é específico de seres multicelulares que se reproduzem sexuadamente e está na falta de um mecanismos que além de quebrar a barreira de Weismann, o faça de maneira mais ou menos confiável e com caracteres que sejam adaptativamente relevantes. A, às vezes denominada, “herança epigenética transgeracional” que envolve a herança de marcas químicas e de padrões de condensação de cromatina que não são completamente apagados durante a embriogênese e podem ser influenciados pelo ambiente experienciado por uma geração e serem passados a outras (alterando padrões de expressão gênica e desta maneira influenciado nos fenótipos) é o principal candidato como processo para esta forma de herança, mas até hoje sua relevância à transferência de características adaptativas não foi demonstrada e, por enquanto, permanece apenas como uma forma de enviesamento da variação fenotípica [veja aqui].
SHEILA TERRY/SCIENCE PHOTO LIBRARY
HYBRID MEDICAL ANIMATION/SCIENCE PHOTO LIBRARY
Abraços,
Rodrigo