Uma guerra evolutiva dentro de nós
Em um novo estudo, publicado na revista Nature, uma equipe de pesquisadores fornece mais evidências de que o genoma dos primatas foi moldado por uma batalha, ainda em curso, entre elementos genéticos móveis ("genes saltadores"), derivados de infecções virais ancestrais, e os genes que evoluíram em resposta a estes elementos e que controlam sua expressão, sendo talvez esta 'corrida armamentista evolutiva' um dos principais impulsos por trás da evolução regulatória e do aumento de complexidade genômica de nossa linhagem [1].
Ao longo de sua evolução, os primatas tiveram seus genomas modificados por ondas de inserções de retrotransposon, que foram seguidas pela evolução de maneiras de reprimir a transcrição desses retrotransposon e sua expansão pelos genomas e evitar novas inserções. Estes retrotransposons uma vez inseridos só podem se replicar dentro do genoma e dependendo de onde uma nova cópia é inserida, um 'salto' destes pode perturbar genes normais, produzindo mutações e ocasionando doenças. Porém, outras vezes, estes efeitos são mínimos e negligenciáveis para o hospedeiro, simplesmente aumentando o tamanho total do genoma, evoluindo de maneira neutra. Em outras circunstâncias, entretanto, muito mais raras, estes saltos e expansões podem trazer consequências vantajosas aos hospedeiros, uma vez que o novo DNA adicionado pode ser uma fonte de novos elementos reguladores que aumentam a expressão do gene [1] [Figura ao lado. Autor: David Greenberg]. Contudo, como estes eventos são raros e a probabilidade de efeitos desvantajosos (deletérios) é maior, isso implica que a seleção natural normalmente favorece a evolução dos mecanismos de prevenção destes 'saltos' [1].
Estima-se que 'elementos móveis de transposição' constituam, pelo menos, 50 por cento do genoma humano, sendo os retrotransposons, de longe, o tipo mais comum [Para saber mais sobre isso leia "Sobre sucata, lixo, DNAs egoístas, comensais e simbiontes:"]. Entre os genes repressores estão aqueles que codificam "proteínas dedos de zinco”, como as da família KRAB, capazes de ligarem-se ao DNA e reprimirem a atividade dos genes adjacentes, constituindo-se no maior grupo de proteínas reguladoras nos mamíferos [1]. O genoma humano por exemplo possui mais de 400 genes que codificam proteínas dedo de zinco da família KRAB, com cerca de 170 delas tendo surgido desde que os primatas divergiram dos outros mamíferos [1].
O estudo em questão centrou-se em duas proteínas humanas chamadas ZNF91 e ZNF93 que ligam-se a certas regiões do DNA e, desta maneira, reprimem duas das principais classes de retrotransposons (conhecidos como SVA e L1PA) que estão ainda (ou estavam até há pouco tempo) ativos nos genomas dos primatas. Frank Jacob, primeiro autor do artigo, pós-doutorando, e o aluno de doutorado, David Greenberg, desenvolveram uma estratégia para avaliar os retrotransposons de primatas em células-tronco embrionárias de camundongos, que contêm um único cromossomo humano. Neste ambiente celular, os 'genes saltadores', que normalmente são reprimidos em células de primatas, tornam-se ativos. Em seguida, Greenberg desenvolveu um ensaio para testar proteínas 'dedos de zinco' individuais em relação a sua capacidade para desativar genes saltadores de primatas neste ambiente de células de camundongos. Por meio destes ensaios os pesquisadores conseguiram mostrar que os genes (KRAB) KZNF parecem realmente permitir que os primatas respondam aos retrotransposons recém surgidos. Os cientistas mostraram que dois genes KZNF específicos primatas (ZNF91 e ZNF93) evoluíram rapidamente para reprimir duas famílias (SVA e L1) distintas retrotransposons, logo depois que eles começaram a se espalhar em nosso genoma ancestral [2].
O estudo revelou que a proteína ZNF91 sofreu uma série de mudanças estruturais entre 8-12.000.000 de anos atrás, o que lhe permitiu reprimir elementos do tipo SVA, enquanto a proteína ZNF93 evoluiu mais cedo, reprimindo os elementos L1 até por volta de 12.500.000 de anos atrás, quando a subfamília dos retrotransposons L1PA3 escapou ao controle ZNF93 através da perda do sítio de ligação à ZNF93. Estes resultados apoiam o modelo no qual a expansão dos genes KZNF limitam a atividade de classes de retrotransposons que surgiram mais recentemente, o que foi seguido por mutações nestes retrotransposons que permitem a eles evadirem esta repressão, o que levou a um novo ciclo de eventos, potencialmente explicando a expansão rápida de genes KZNF específicos desta linhagem.
Porém, mesmo esta corrida armamentista pode ter tido consequências secundárias inadvertidas e importantes na evolução dos primatas. Como a repressão de um 'gene saltador' também afeta genes próximos a ele, no mesmo cromossomo, os pesquisadores suspeitam que esses repressores foram cooptados para outras funções de regulação genica (que dependem do mesmo sistema de ligação ao DNA e repressão da atividade de genes próximos); com estas novas funções tendo persistido e evoluído muito mesmo depois que os 'genes saltadores' (que foram a pressão seletiva original por trás da evolução e fixação destes genes regulatórios) já tivessem sido completamente inativados e degradados devido ao acumulo de mutações aleatórias [1]. Assim, este processo co-evolutivo antagônico (veja mais sobre isso em "Rainhas, besouros e fungos 'degenerados'”, “Por que genes imunitários que nos prejudicam persistem?” e “As vantagens da recombinação e do sexo”) entre o genoma do hospedeiro e os 'genes saltadores' (que agem como verdadeiros 'parasitas intragenômicos'), ao produzir o acúmulo de camadas adicionais de regulação da expressão gênica nas adjacências de outros genes importantes para o hospedeiro, acabou por produzir matéria-prima regulatória adicional que permitiu a evolução de novas características e funções em um processo de 'exaptação regulatória' [Veja mais sobre isso em "Além da seleção natural II: Complexidade e novas funções por caminhos alternativos" ].
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Referências:
Stephens, Tim Human genome was shaped by an evolutionary arms race with itself http://news.ucsc.edu, September 28, 2014 .
Jacobs, Frank M. J., Greenberg, David, Nguyen, Ngan , Haeussler, Maximilian, Ewing, Adam D., Katzman, Sol, Paten, Benedict, Salama, Sofie R., Haussler, David. An evolutionary arms race between KRAB zinc-finger genes ZNF91/93 and SVA/L1 retrotransposons. Nature, 2014; DOI: 10.1038/nature13760