Uma teoria neutra da função molecular [Tradução de texto de Michael Eisen]:
Aproveitando a publicação dos diversos artigos sobre os resultados do ENCODE, achei oportuno traduzir este pequeno post do biólogo evolutivo Michael Eisen que discute alguns problemas com certas conclusões veiculadas pela mídia e mesmo vociferadas por alguns dos pesquisadores ligados ao projeto. Eisen explica por que estas conclusões não se seguem diretamente dos dados apresentados e como elas envolvem, na realidade, uma certa dose de ingenuidade em termos de biologia evolutiva, especialmente sobre o que aprendemos nos últimos 40 anos sobre evolução molecular. São palavras sóbrias e ao mesmo tempo intelectualmente instigantes que mostram o tipo de cuidado que precisamos ter ao analisar e interpretar essa montanha de dados sobre atividade bioquímica genômica e interações moleculares que estão surgindo via ENCODE e principalmente o quão claros devemos ser ao empregar palavras com 'função' em relação a estes achados.
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Uma teoria neutra da função molecular:
Autor: Michael Eisen | 7 de setembro de 2012
Fonte: it is NOT junk: 'a blog about genomes, DNA, evolution, open science, baseball and other important things'
Post original: A neutral theory of molecular function
Tradução: Rodrigo Véras
Em 1968 Motoo Kimura publicou um pequeno artigo na Nature em que argumentava que “a maioria das mutações produzidas por substituições de nucleotídeos são quase completamente neutras em relação a seleção natural”. Este fantástico artigo é geralmente visto como tendo estabelecido a “teoria neutra” da evolução molecular, cujo princípio central foi definido por Jack King e Lester Jukes em um artigo da Science no ano seguinte:
A mudança evolutiva nos níveis morfológico, funcional ou comportamental resulta do processo de seleção natural, operando através de mudanças adaptativas no DNA. Disso não necessariamente se segue que toda, ou quase toda, mudança evolutiva no DNA seja devida a ação da seleção natural Darwiniana.
É difícil exagerar a importância desses artigos. Eles ofereceram um desafio imediato à crença profundamente falha, mas amplamente difundida, de que todas as alterações do DNA deveriam ser adaptativas - uma suposição que estava envenenando a maneira com que a maioria dos biólogos estavam avaliando a primeira onda de dados de seqüências de proteínas. E como suas idéias foram rapidamente aceitas no campo emergente da evolução molecular, a teoria neutra pairava sobre praticamente todas as análises de variação de seqüência dentro e entre as espécies nas décadas vindouras.
O que Kimura, King e Jukes realmente fizeram foi estabelecer um "modelo nulo" novo contra o qual qualquer exemplo hipotético de mudança molecular adaptativa deveria ser julgado. Na verdade, a neutralidade ofereceu uma explicação tão boa para alterações nas seqüências ao longo do tempo que, quando eu entrei no campo no início dos anos 90, os pesquisadores ainda lutavam para encontrar um único exemplo de mudança molecular para o qual uma explicação neutra pudesse ser rejeitada.
Embora a explosão de dados de seqüências na década passada finalmente rendeu evidências inequívocas de evolução adaptativa molecular em grande escala, é difícil exagerar o quão poderoso o modelo nulo neutro foi em forçar as pessoas a pensar claramente sobre o que significam as mudança adaptativas, e como alguém deveria proceder para identificar exemplos claros delas.
Penso muito sobre Kimura, sobre a teoria neutra, e os efeitos salutares de modelos nulos claros cada vez que eu me envolvo em discussões sobre a função, ou a falta dela, de eventos bioquímicos observados em experimentos de genômica, como os desencadeados esta semana pelas publicações do projeto ENCODE.
É fácil ver os paralelos entre a maneira que as pessoas falam sobre transcritos de RNAs, interações DNA-proteína, regiões hipersensíveis à Dnase e etc, com a forma que as pessoas falavam sobre mudanças em sequências PK (pré Kimura). Embora muitas das pessoas realizando RNA-seq, ChIP-seq, etc... foram indoutrinadas com Kimura em algum ponto de suas carreiras, a maioria parece incapaz de aplicar as lições dele ao seu próprio trabalho. O resultado é um campo impregnado implícita ou explicitamente com um pensamento que segue essa linha:
Eu observo A ligar-se a B. A poderia só ter evoluído para ligar-se a B se estivesse fazendo algo de útil. Logo, a ligação entre A a B é “funcional”.
Pode-se entender a tentação de pensar desta forma. Na perspectiva de livro-texto da biologia molecular, tudo é altamente regulado. Os genes são transcritos com um propósito. Fatores de transcrição ligam-se ao DNA quando estão regulando algo. Quinases fosforilam alvos para alterar sua atividade ou localização subcelular. E assim por diante. Embora sempre houve muitas razões para descartar essa maneira de pensar, até cerca de uma década atrás, era assim que a literatura científica parecia. Nos dias em que artigos descreviam genes únicos e interações individuais, quem se daria ao trabalho de publicar um artigo sobre uma interação não-funcional que haviam observado?
Mas a genômica experimental explodiu este mundo isolado e idílico da biologia molecular. Por exemplo, quando Mark Biggin e eu começamos a fazer experimentos ChIP-chip em embriões de Drosophila, descobrimos que fatores não apenas ligavam-se com sua dúzia ou mais de alvos, mas a milhares e, em alguns casos, dezenas de milhares de lugares em todo o genoma. Tendo estudado Kimura, eu simplesmente assumi que a grande maioria destas interações tinha evoluído por acaso - um conseqüência natural, essencial, da fixação alterações nucleotídicas neutras que aconteceram e que por ventura criaram sítios de ligação de fatores de transcrição. E assim eu fiquei chocado que quase todos com quem conversava sobre esses dados assumiam que cada um desses eventos de ligação estava servido para alguma coisa - só não tinhamos descoberto ainda para que.
Mas se você pensar sobre isso, você se dará conta que isso simplesmente não pode ser assim. Como nós e muito outros temos mostrado agora, as interações moleculares não são raras. Transcritos, sítios de ligação de fatores de transcrição, modificações ao DNA, modificações na cromatina, sítios de ligação de RNA, sítios de fosforilação, interações proteína-proteína, etc … estão em toda a parte. Isso sugere que este tipo de eventos bioquímicos são fáceis de criar – mude um nucleotídeo aqui – Tcham!, um novo fator de transcrição se liga, e um sítio de splicing é perdido, um novo promotor é criado, um sítio de glicosilação é eliminado.
Será que isso entra em conflito com a teoria neutra? Não mesmo! Na verdade, é perfeitamente consistente com ela. A teoria neutra não exige que a maioria das alterações nas sequências não tenham nenhum efeito mensurável sobre os organismos. Pelo contrário, a única coisa que você tem que assumir é que a grande maioria dos eventos bioquímicos que ocorrem como conseqüência de mutações aleatórias não afetam significativamente aptidão dos organismos. Dado que uma fração tão grande do genoma é bioquimicamente ativa, a mesma lógica básica Kimura, King e Jukes usaram para argumentar pela neutralidade - que seria simplesmente impossível que um número tão grande de características moleculares tivessem sido levadas a fixação pela seleção - indica fortemente que a maioria dos acontecimentos bioquímicos não contribuem significativamente para a aptidão. Na verdade, dado a freqüência aparente com que novas interações moleculares surgem, é praticamente impossível que nós ainda existíssemos se cada novo evento molecular tivesse um efeito fenotípico forte.
Isto, naturalmente, não significa que todos esses eventos moleculares não façam nada - a sua existência é uma forma de função. Mas estamos geralmente interessados em diferentes tipos de função - coisas que surgiram por meio da seleção natural, são mantidas por meio de da seleção purificadora, cuja perturbação vai causar uma doença ou outro fenótipo significativo. É claro que essas coisas existem no meio dos escombros. A questão é como encontrá-las. E aqui eu acho que devemos, mais uma vez, tomar nossa pista de Kimura.
Com argumentei acima, o campo da evolução molecular desenvolveu um núcleo intelectual poderoso em grande parte por que os pesquisadores tiveram que se ver as voltas com a poderosa hipótese neutra – significando que a mudança adaptativa teria que ser demonstrada, não pressuposta. Nós temos que aplicar a mesma lógica às interações moleculares.
Ao invés de assumir – como tantos pesquisadores do ENCODE parecem fazer – que os milhões (ou seriam bilhões?) de eventos moleculares que eles observam são um tesouro de elementos funcionais aguardando para serem compreendidos, eles deveriam encarar cada um e todos os eventos com um ceticismo Kimuriano. Nós jamais deveríamos aceitar a existência ou uma molécula ou uma observação de que ela interage com algo como uma evidência prima facie de que é algo importante. Ao contrário, nós deveríamos assumir que todas essas interações são não-funcionais até prove-se o contrário, e desenvolver melhores, convincentes, maneiras de rejeitar essa hipótese nula.
Parafraseando King e Jukes:
A vida depende da produção de e das interacção entre DNAs, RNAs, proteínas e outras biomoléculas. Isso não significa necessariamente que todas as biomoléculas, ou a maioria delas, e as interações entre elas, sejam devidas à ação da seleção natural darwiniana.
Quero terminar salientando que há muitas pessoas (eu e meu grupo, incluídos) que já tem se digladiado com esta questão, com muitas ideias interessantes, e os resultados já por aí. Do ponto de vista intelectual, eu gostaria de destacar particularmente a influência dos escritos de Mike Lynch tiveram em mim - ver especialmente este.
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NOTA: Há muito mais a dizer sobre isso, e no interesse de tempo (eu tenho que dar uma palestra sobre genética logo no início da manhã) eu não me aprofundei como algumas dessas questões merecem. Vou atualizar este post quando o tempo permitir.
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Michael Eisen é um biólogo evolutivo da Universidade de Berkeley e pesquisador do Instituto Médico Howard Hughes. Sua pesquisa se concentra na genômica evolutiva e de populações da regulação genética em moscas, e sobre as formas que os micróbios controlam o comportamento de seus hospedeiros animais. Eisen é um forte defensor da ciência aberta, e um co-fundador da Public Library of Science., o famoso PloS e, segundo ele mesmo, o mais importante de tudo, um fã do Red Sox.
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Para saber mais veja nossos posts que abordam vários assuntos relacionados aos comentados por Eisen, como “Além da seleção natural ou a importância da evolução neutra.”, “O preço da complexidade”, “Mutações: A aleatoriedade em sua essência*”, “Post no blog: Marcas da adaptação: A teoria neutra e as assinaturas moleculares da seleção natural”, além do artigo anterior sobre as recentes notícias sobre o ENCODE, “Decodificando os novos resultados do ENCODE”
Literatura intensamente recomendada:
King JL, Jukes TH. Non-Darwinian evolution. Science. 1969 May 16;164(3881):788-98. PubMed PMID: 5767777.
Kimura M. Evolutionary rate at the molecular level. Nature. 1968 Feb17;217(5129):624-6. PubMed PMID: 5637732.