Uso e Abuso do registro fóssil: Definição dos Termos Parte I
A confusão na literatura criacionista é notória. A maneira como distorcem conceitos, desconsideram as práticas e procedimentos dos cientistas, especialmente biólogos e paleontólogos, é uma mostra dos baixíssimos padrões intelectuais deste movimento, além do desrespeito com o ofício dos pesquisadores. A paleontóloga Penny Higgings escreveu dois excelentes artigos para a iniciativa Intelligent Design Watch, mantida pelo CSICOP (atual CSI) em que desfaz muitas dessas confusões e distorções ao mesmo que explica uma das mais conhecidas e bem documentadas transições, entre peixes e tetrápodes. Aqui está o primeiro deles.
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Uso e Abuso do registro fóssil: Definição dos Termos Parte I
Autora: Penny Higgins
Fonte: CSI - Intelligent Design Watch
Publicado em 9 de setembro de 2006.
Um argumento criacionista comum é nenhuma forma de transição entre os principais grupos de organismos (por exemplo, as classes de vertebrados: peixes, aves, mamíferos, etc) é vista no registro fóssil. A evolução postula que tais intermediários de fato existem, mas podem ser reconhecidos como tal. No final, muitas vezes se resume a uma discussão de semântica.
A ciência se orgulha de sua estrutura aberta. A ciência é considerada em seu melhor quando os autores livremente divulgam quaisquer e todas as pressuposições que foram feitas em suas pesquisas e também apresentam todos os dados brutos antes de dar sua própria interpretação dos mesmos. Dessa forma, com o surgimento de nova compreensão e as suposições são mostradas inválidas, cientistas que chegam depois podem re-interpretar os dados brutos nesta nova luz. Ao divulgar toda informação que é usada em uma conclusão, o cientista original deixa abre-se para a refutação, isso é BOA ciência, no obstante.
No espírito deste quadro em aberto, gostaria de explicar aqui alguns princípios básicos da biologia e da paleontologia que, se mal entendidos, podem afetar fortemente a resposta para a pergunta: Formas de transição são encontradas no registro fóssil?
O conceito biológico de espécie
Uma espécie biológica (bioespécies) é uma população de organismos que, se deixada sozinha em seu ambiente natural, é capazes de e SE REPRODUZEM para produzir descendentes FÉRTEIS viáveis. Assim, enquanto os cavalos e burros são capazes de acasalar e produzir descendentes, eles não fariam isso naturalmente, e os seus descendentes (a mula) quase nunca é fértil. É uma história parecida com leões e tigres. Apesar de legres e tigrões existirem, as duas espécies (leões e tigres) nunca interagem na natureza. Esta é a definição comum de espécies utilizada na biologia moderna e por todos aqueles que discutem sobre o termo "espécies" de forma vaga.
O conceito morfológico de espécie
Quando tudo que você tem para olhar são fósseis, não é possível saber se duas populações se cruzaram, ou sua prole era fértil. Tudo o que temos, geralmente, são os ossos para olhar. Em paleontologia, o termo espécie é usado para descrever uma população de organismos, que se distinguem, pela sua forma e estrutura, de todas as outras populações. Se parecem suficientemente diferente, então é uma nova espécie.
Este conceito de espécie morfológica é realmente a única opção para os paleontólogos. O problema é, e isso não é segredo, que às vezes o que na realidade é uma espécie biológica pode ser composto de muitas espécies morfológicas. No caso dos mamíferos, uma espécie fóssil morfológica (ou morfo-espécies) pode ser definida com base em um ou dois dentes em, digamos, da mandíbula superior. A mandíbula pode ser encontrada mais tarde por algum outro pesquisador em alguma outra pedreira e ser definida como morfoespécies novo. Só mais tarde, através de uma análise cuidadosa, talvez um terceiro pesquisador que as duas morfoespécies são realmente uma única espécie.
Problemas semelhantes também têm surgido quando existe forte dimorfismo sexual em uma única espécie biológica. Não é raro na natureza que os machos de uma espécie biológica sejam fisicamente bem diferentes das fêmeas, e caso esqueletos completos forem encontrados, os dois sexos de uma bioespecies podem ser definido como duas morfoespécies diferentes. Além disso, mudanças ontogenéticas podem fazer com que adultos de um bioespécie seja morfologicamente distinto dos jovens da mesma bioespécie, resultando novamente em mais de uma morfoespécie constituindo uma bioespécie.
Nomenclatura Taxonômica
Talvez um dos conceitos mais difíceis de assimilar seja a compreensão fundamental de que, mesmo que nosso esquema de nomenclatura científica utilizado mundialmente para os organismos (nomenclatura binomial) é superficialmente dividido ao longo de linhas "evolutivas", o esquema de nomeação em si é verdadeiramente arbitrário. O único nível da nomenclatura que tem algum significado físico é o de "espécie", como discutido acima. Todos os outros níveis, a partir de Reino até o Gênero, são inteiramente construtos humanos usados por conveniência da discussão. Em sentido estrito, muitos dos grupos de maior dimensão (Reino, Filo, Classe) realmente só se aplicam no melhor dos casos aos organismos modernos.
A classificação taxonômica do cão doméstico:
Além disso, existem organismos no registro fóssil que não se encaixam bem no esquema taxonômico moderno. Mas, porque nós usamos esse esquema, nós essencialmente devemos forçá-los a caber no molde. Uma espécie de transição entre duas classes é difícil de classificar como frequentemente poderia ser colocada em uma classe ou outra, ou talvez pertencer a uma terceira classe, agora extinta. Mas, uma vez classificada em uma classe ou outra, parece deixar de ser transicional.
Por exemplo, podemos considerar a transição entre as espécies de Reptilia às Aves, a ser chamada de "Repti-Ave". É ao mesmo tempo um "pássaro" e um "réptil", mas também não é 'pássaro' nem um 'réptil. O exemplo mais citado da "Repti-Ave" é o tão denegrido Archaeopteryx. É sem dúvida um pássaro, igualmente sem dúvida um réptil, ou, potencialmente, realmente nenhum dos dois, mas sim um dinossauro. (Apresso-me a acrescentar que, desde então, a paleontologia descobriu muitas mais espécies de "Repti-aves" que documentam a transição de dinossauro para ave muito melhor do que o pobre Archaeopteryx. Em paleontologia, o Archaeopteryx é muito raramente, se alguma vez apresentado como uma espécie de transição entre diretos répteis[1] e aves, e é muitas vezes considerado mais uma ave primitiva.)
Uma vez que o Archaeopteryx era "oficialmente" classificado como um pássaro, seu status como uma espécie de transição foi posto em duvida. Se é um pássaro, o criacionismo diz, como pode ser uma espécie de transição que leva às aves? Os sistemas de classificação são arbitrários! Nós os usamos por uma questão de conveniência. O sistema de classificação nunca foi destinado a implicar diretamente algo sobre relações filogenéticas (ou evolutivas).
Primitivo versus avançado[2]
Os termos "primitivo" ou "avançado" devem ser usados com cautela, mas eles são freqüentemente usados livremente ignorando a possível confusão que podem resultar. Estes termos sugerem uma certa quantidade de "melhoria" para os animais considerados avançados sobre aqueles considerados primitivos. O que realmente se entende por "primitivos" é que um animal é mais parecido com as formas originais das quais evoluiu. Um peixe moderno é igualmente evoluído como um pássaro moderno. Sabemos que as aves evoluíram a partir de animais que eram peixes. No entanto, o peixe ancestral está extinto. Esse mesmo peixe ancestral pode ter sido o ancestral dos peixes modernos também. Assim, quando chamamos um peixe "primitivo" em relação às aves, é apenas com referência ao fato de que os vertebrados, como peixes nadavam nos oceanos bem antes de qualquer ave subiu no céu. O termo "derivado" também é freqüentemente usado como sinônimo de "avançado".
Relações taxonômicas vs relações filogenéticas
Nomenclatura taxonômica é uma forma conveniente com a qual biólogos e paleontólogos agrupam organismos antigos, a fim de serem capazes de pensar sobre eles. A nomenclatura moderna foi desenvolvida por Carolus Linnaeus em 1758, com base em organismos modernos, especialmente plantas. Como mencionado anteriormente, todos os nomes taxonômicos acima do nível de espécie são arbitrários. Os organismos foram classificados em vários grupos com base em semelhanças, mas não podiam estar em mais de um grupo de cada vez (por exemplo, ou é um réptil ou um pássaro, mas não ambos).
A partir disso é que foi derivada a típica imagem dos livros-texto da evolução dos vertebrados, desde os mais primitivos (peixes) até os mais avançados (mamíferos), e a noção de que deve haver intermediários, como os “peixíbios”, Repti-aves, e Repti-mamíferos. Isto sugere também que a partir de peixes modernos evoluíram os anfíbios modernos que evoluíram nos répteis modernos, que evoluíram na aves e mamíferos modernos.
Filogenia é a real relação evolutiva entre diferentes grupos de organismos. Não há divisões e classificações arbitrárias. A imagem clássica da "árvore da vida" é uma versão muito simples da filogenia. Hoje, biólogos, botânicos e paleontólogos usam análise matemática das características dos organismos a fim de inferir filogenias. A filogenia parece muito diferente da visão taxonômica das relações dos organismos.
Importante, os grupos estão unidos com base no compartilhamento de características "derivadas". Ou seja, grupos de organismos se distinguem uns dos outros com base em novas características nunca antes vistas. Às vezes, o resultado é que os grupos considerados distintos pela taxonomia Linnaen são aninhados um dentro do outro.

Acima está uma filogenia simples para os vertebrados. Todos os vertebrados são unidos por ter vértebras. As linhas vermelhas são as relações evolutivas entre diferentes grupos de vertebrados. Ao se mover para cima ao longo de qualquer dessas linhas evolutivas, move-se em direção a outras espécies mais derivadas. As divisões entre os grupos ocorrem entre os membros mais primitivos do grupo. Por exemplo, os primeiros anfíbios residem na filogenia sobre o ponto marcado "2", que representa a origem de locomoção terrestre. Estes primeiros anfíbios, apesar de, por definição, serem anfíbios, não são os modernos anfíbios derivados que nós vemos hoje. Estes primeiros anfíbios evoluíram a partir de peixes primitivos, que também são diferentes de qualquer peixe que temos hoje.
Observe que as aves e os mamíferos e os dinossauros estão aninhados dentro de outro grupo de animais rotulado “répteis”. Então, aves e mamíferos são "répteis", mas distinguem-se dos outros répteis com base nas características do crânio (mamíferos) e pela capacidade de voar (pássaros). Há sobreposição entre os dinossauros, pássaros e répteis. Filogenias permitem uma espécie pertencer a mais de um grupo.

Mostradas acima estão as posições na filogenia em que as formas intermediárias entre as principais classes existiriam. Note que estes não estão nas extremidades das linhas evolutivas (formas modernas), mas em posições mais baixas na filogenia. As transições ocorrem de membros primitivos de um grupo primitivo em membros de outro grupo. Nós não desenhamos pernas de rã em uma truta e dizemos que assim que a espécie de transição entre peixes e anfíbios pareceria. Nós não imaginamos uma tartaruga com asas para a chamada transição entre répteis e aves. (E nós, com toda a certeza não olhamos para um ornitorrinco e o chamamos de uma transição entre aves e mamíferos, apesar do que eu já vi publicado algumas vezes na literatura criacionista).
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Higgins, P., 2006. Use and Abuse of the Fossil Record: Defining Terms. Creation and Intelligent Design Watch, hosted by the Committee for the Scientific Investigation of Claims of the Paranormal.
Penny Higgins_____________________________________________________
A Doutora Pennilyn (Penny) Higgins é uma Associada de Pesquisa no Departamento de Ciências da Terra e do Ambiente na Universidade de Rochester. Os interesses de pesquisa de Penny incluem: Geoquímica de isótopos estáveis de apatita biogênica e de minerais carbonados; estudos em escala anual do clima antigo e fontes dietéticas de vertebrados fósseis utilizando isótopos estáveis de apatita dos dentes e óssea; concentração de CO2 atmosférico e os efeitos sobre o metabolismo das plantas através do tempo geológico; geoquímica do urânio e sua relação com a deposição de minério de urânio e com a preservação dos fósseis; tafonomia de vertebrados, e aplicação do GIS a problemas em paleontologia.
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Notas:
[1]A classificação tradicional considerava os répteis como todos os amniotas subtraindo as aves e os mamíferos, formando um grupo parafilético, ou seja, em que nem todos os descendentes do ancestral comum estão incluídos, portanto, um construto bastante arbitrário. Contudo, atualmente, é possível encontrar filogenias em que Reptilia é um clado monofilético pertencente a Sauropsida (grupos irmão de Sinapsida) que incluiria Diapísdios e Anapísidios, como tartarugas, lagartos, serpentes, crocodilos, e aves, um subgrupo dos dinossauros terópodes. Porém, por causa de dúvidas em relação a origem dos testudines (grupo ao qual pertencem as tartarugas), mais recentemente, foi proposto equiparar Reptila ao próprio grupo Sauropsida. Em ambas as perspectivas que "salvam" o grupo Reptilia, as aves são consideradas répteis e os mamíferos não seriam descendentes deste grupo, mas apenas um táxon irmão um subgrupo dos sinapísdeos que juntamente com os sauropsídeos formam os amniotas. De qualquer jeito o termo expressa coisas bem diferentes que costumamos a associar com os répteis.
[2]Apesar de fazer menção ao termo "derivado", Higgins, utiliza-se mais do termo "avançado" que preferi traduzir na maioria das vezes por "derivado", o termo mais canônico e usual.
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Referências:
Benton, M. J. Reptilia Encyclopedia of life sciences. Macmillan, London, 11 pp.
Laurin, M. and Reisz, R.R. (1995). "A reevaluation of early amniote phylogeny." Zoological Journal of the Linnean Society, 113: 165-223.
Modesto, S.P.; Anderson, J.S. (2004). "The phylogenetic definition of Reptilia". Systematic Biology 53 (5): 815–821. doi:10.1080/10635150490503026. PMID 15545258.