Vinho, leveduras e sexo
A história humana é profundamente ligada a história de outros organismos vivos, dos quais dependemos e com os quais formamos uma antiga aliança. Mas pouca gente lembrará que, entre estes seres vivos, encontram-se alguns microrganismos que são tão versáteis que são empregados na produção pães, cerveja e vinhos e mais recentemente estão entre os principais sistemas modelo de estudos em áreas tão diversas, como bioquímica, genética, evolução etc. As leveduras unicelulares, principalmente, as do gênero Saccharomyces são o maior exemplo.
Desde muito cedo na história de nossa civilização, mesmo sem plena compreensão disso, intuitivamente, os seres humanos vêm selecionando as cepas mais eficientes em fazer aquilo que elas fazem melhor, fermentar. As diferentes cepas modificadas, ao longo do processo de domesticação, acabaram adquirindo características próprias, algumas, inclusive, que provavelmente dão o toque especial nos diferentes tipos de produtos nos quais são usadas em sua produção. Os vinhos não são exceção e um estudo recente envolvendo dezenas de cepas de leveduras foi conduzido como forma de compreender melhor a variabilidade dessas diversas linhagens e desvendar sua evolução recente em nossas mãos.
A questão fundamental é que, apesar da importância inegável de leveduras como Saccharomyces cerevisiae - um dos organismos mais bem estudados em nosso planeta, inclusive tendo sido sequenciamento de um genoma de referência já na década de 90 - a variação dos genoma dentro desta espécie, isto é, entre as diversas cepas e linhagens que forma S. cerevieae, até hoje, não foi muito explorada. Felizmente essa lacuna já começa a ser preenchida por uma trabalho executado por um grupo de pesquisadores da escola de medicina da Universidade de Stanford, liderado por Barbara Dunn, primeira autora do artigo, e pelo pesquisador sênior Gavin Sherlock; conduzido em colaboração com a (e financiado pela) vinícola E. & J. Gallo.
Os cientistas criaram uma plataforma de micro-arranjos [1] multi-espécies, isto é um 'biochip de DNA', com sequências de oligonucleotídeos complementares que funcionam como 'sondas' que cobrem várias sequências dos genomas de várias espécies de leveduras do gênero Saccharomyces. O mais interessante, entretanto, é que ao empregarem essa técnica, chamada matriz-hibridização genômica comparativa, para analisar os genomas de 83 cepas de levedura, os cientistas deparam-se com uma surpresa. Esperando encontrar uma bem comportada filogenia das linhagens desta espécie cujos indivíduos, geralmente, reproduzem-se assexuadamente, encontraram uma surpreendente miscelânea genética. Várias cepas abrigavam em seus genomas pedaços de DNA provenientes de linhagens de Saccharomyces e até de outras espécies de Saccharomyces, o que é uma evidência positiva e tanto de miscigenação passada. Além disso, como relatado no artigo da revista Genome Research, mais do que uma cepa exibia as mesmos porções de DNA, indicando que um gene particular, ou um conjunto de genes localizados nestas regiões, conferem algum tipo de vantagem evolutiva para os seus detentores. A técnica utilizada identifica variações no número de cópias (CNV) entre as diferentes amostras de levedura, podendo ser usada para deduzir relações evolutivas como uma alternativa para a sequenciamento de todo o genoma. Sessenta e nove das cepas estudadas pelos pesquisadores são utilizados para a vinificação comercial; as 14 restantes são usadas ou em outras aplicações industriais ou são cepas que ocorrem naturalmente em estado selvagem.
Os pesquisadores, entretanto, tomaram outros cuidados para certificarem-se de seus resultados, validando-os, ao mesmo tempo que determinavam se as introgressões [2] aparentemente, similares e CNVs eram realmente idênticas por descendência ou resultantes de eventos recorrentes. Para tanto, os cientistas sequenciaram os genomas completos de nove dessas cepas e se espera que estes dados também ajudar a identificar regiões genômicas envolvidas na adaptação a diferentes ambientes industriais, bem como pode lançar luz sobre o curso de domesticação de S. cerevisiae.
Ainda não está claro se esta impressionante quantidade de miscigenação foi deliberada, isto é, acontecendo como experimentos por partes dos produtores de vinho ou ocorreu naturalmente, de modo acidental, mas muitos mais surpresas devem nos aguardar no estudo destas fascinantes criaturas.
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Notas:
[1] Os microarrays, ou microarranjos, também conhecidos como “biochips de DNA”, são micro arranjos de milhares de pontos contendo DNA dispostos em uma lâmina geralmente feita de um tipo vidro especial em que são colocados de oligonucleotídeos, as sondas, que são utilizados para hibridizar, através da complementaridade entre as bases, de uma amostra de cDNA ou cRNA (os 'alvos') sob condições especiais. Os complexos 'sondas-alvos' de hibridação são normalmente detectados e quantificados através da detecção da fluorescência proveniente da marcação dos alvos com fluoróforos excitáveis por luz laser e que emitem luz detectável por um scanner, permitindo assim a determinação da abundância relativa de sequências de ácidos nucleicos dos alvos. Está constitui-se em uma técnica poderosa na análise da composição genômica de determinado organismo, isto é, sua 'genotipagem'; ou, mais habitualmente, como forma de traçar um perfil da expressão gênica de um dado genoma de um tecido sobre ação de algum tratamento ou em algum um momento determinado do desenvolvimento do organismos ou em algum ambiente especial [clique na figura para ver os detalhes].
[2] Introgressão em genética é o fluxo de genes de uma espécie ou linhagem para o conjunto de genes (pool gênico) de outra espécie ou linhagem pelo retrocruzamento repetido de um híbrido interespecífico com uma de suas espécies parental.
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Referências:
Dunn, Barbara, Richter, Chandra, Kvitek, Daniel J, Pugh, Tom, Sherlock, Gavin. Analysis of the Saccharomyces cerevisiae pan-genome reveals a pool of copy number variants distributed in diverse yeast strains from differing industrial environments. Genome Res. 2012. Published in Advance February 27, 2012, doi: 10.1101/gr.130310.111 http://genome.cshlp.org/content/early/2012/02/23/gr.130310.111.abstract.
Conger, Krista "In vino veritas: Promiscuous yeast hook up in wine-making vats, study shows" Stanford Medicine School of Medicine News Inside Stanford Medicine FEB. 26, 2012
Créditos das figuras:
LAWRENCE BERKELEY NATIONAL LABORATORY/ SCIENCE PHOTO LIBRARY
DR JEREMY BURGESS/SCIENCE PHOTO LIBRARY
PASIEKA/SCIENCE PHOTO LIBRARY