Viva Turing de novo, mais pistas sobre a evolução dos membros em vertebrados
Um dos grandes enigmas da moderna biologia diz respeito a compreensão de como estruturas morfológicas complexas podem ser produzidas através da modulação da expressão gênica no embrião de organismos multicelulares em desenvolvimento. A compreensão destes processos têm implicações vastas, que vão desde a explicação de mal formações, como a polidactilia, até lançar luz sobre como, ao longo da evolução dos organismos multicelulares, especialmente animais, estruturas morfológicas de organismos ancestrais deram origem as de linhagens descendentes.
Um grande problema com as abordagens mais tradicionais é que simplesmente apontar quais genes estão envolvidos nos processos, e mesmo mostrar que existem diferenças em seus padrões de expressão, não são suficientes. O que normalmente é almejado é uma compreensão de como a expressão diferencial destes genes, por meios dos efeitos das interações de seus produtos na proliferação e morte celular localizadas, na diferenciação celular e nos movimentos e deformações de camadas de tecidos, resulta em mudanças complexas na forma dos organismos. É preciso portanto explicar como cascatas de reações químicas dentro das células, a liberação de moléculas de comunicação célula a célula e a alteração de seus números, seu padrão de movimento e de adesividade, produzem alterações espaço-temporalmente organizadas por meio das interações dinâmicas entre seus componentes em diversos níveis. Portanto, o que se quer mais precisamente é compreender como o padrão geral pode ser produzido e como ele pôde ser modificado, por alterações dos genes e das regiões controladoras de sua expressão, ao longo da evolução das diversas linhagens.
Estes terrenos da investigação científica são eminentemente multidisciplinares exigindo a combinação dos métodos e conceitos da genética molecular, com os da biofísica, da biologia do desenvolvimento, bem como da paleobiologia, mas também de estratégias de modelagem computacional e matemática. E aí que entram os mecanismos 'formadores de padrão' (definir) entre os quais os mecanismos baseados em sistemas de reação-difusão que foram originalmente proposto pelo matemático Alan Turing ainda no começo dos anos 50, pouco antes de sua trágica morte, que certamente está entre os mais investigados [Veja “Viva Turing ou como os camundongos conseguem seu palato enrugado.” e “É a evolução genética previsível? Parte II ou Além da genética parte I” e “De determinantes 'genéricos' aos 'genéticos': A importância da física nos primódios da evolução animal.”]. De acordo com Turing, dois reagentes químicos que interagem e difundem-se através do espaço por meio de processos de retroalimentação poderiam formar padrões espaciais de ondas interagentes. Isto é, a partir de duas substâncias químicas, respectivamente, um 'ativador' e um 'repressor', inicialmente distribuídas uniformemente, por meio da dinâmica não linear das interações entre estes reagentes que amplificam pequenas flutuações locais e produzem ciclos autossustentáveis de atividade, seriam produzidos padrões espaciais e estruturas complexas em um meio originalmente homogêneo.
Durante um bom tempo o modelo de Turing para a formação de padrões, ainda que plausível, carecia de evidências mais diretas de sua ação em organismos vivos, como explica a primeira autora de um novo estudo sobre o tema, Rushikesh Sheth, pós-doutorada no laboratório de Mary Kmita, autora sênior de mais do artigo. [Veja “What mechanism generates our fingers and toes?”]. Mas este cenário tem mudado na última década, como recentemente ilustrado por estudos da formação do palato enrugado em camundongos (que comentamos aqui no evolucionismo.org “Viva Turing ou como os camundongos conseguem seu palato enrugado.”), além de muitos outros trabalhos que sugerem que este mesmo mecanismo do tipo proposto por Turing (ou alguma variação dele) desempenhe um papel no crescimento de estruturas como penas e folículos capilares, no padrão de ramificação dos pulmões, etc. Desta vez, em um artigo publicado nesta edição de dezembro da revista Science, uma equipe de pesquisadores apresentam evidências de uma papel para este mecanismo formador de padrão durante o desenvolvimento dos dedos nas patas de camundongos, indicando uma possível via para a formação dos membros autopodes a partir de nadadeiras com projeções ósseas encontradas em vertebrados aquáticos ancestrais.
Em mamíferos, o que inclui nós seres humanos, os padrões de mudança ao longo do desenvolvimento embrionário dependem da ação de genes que funcionam como grandes 'interruptores', ativando e reprimindo uma série de outros genes e seus produtos em uma cascata de eventos de transdução de sinal e de ativação diferencial de vias bioquímicas. Entre estes genes estão os muito conhecidos genes Hox - os mesmos por trás, por exemplo, da formação do eixo antero-posterior, isto é, cabeça-cauda, tanto em vertebrados como em invertebrados com simetria bilateral, mas também os genes associados as vias Shh (Veja "Mais pistas sobre as origens do membros nos vertebrados"), ambos os grupos também estando envolvidos na formação de membros durante a embriogênese.
O padrão de formação dos dedos tradicionalmente tem sido mais comumente interpretado com dependendo da formação de um 'gradiente morfogenético' em que a proteína codificada pelo de Sonic Hedgehog (Shh) funcionaria como 'morfógeno' (isto é, uma molécula difusível com papel de ativação de determinados estados celulares) emanando da 'zona de atividade polarizante' (ZPA) que consiste em um aglomerado de células mesodérmicas na borda posterior do broto do membro a partir do qual se estabeleceria um gradiente com os níveis máximos do morfógeno na região posterior.
Neste modelo para a formação dos dedos, a proteína Gli3 seria a principal mediadora da sinalização da via Shh e alterações neste gene seriam uma das causas genéticas da polidactilía. Porém, ao contrário das expectativas, tanto o Shh como Gli3, parecem dispensáveis para este processo, inclusive com mutantes nulos para Gli3 (ou seja, em que o gene Gli3 não é expresso) exibindo fenótipos de membros polidáctilos idênticos aos que ocorrem na sua presença, o que sugere que uma série de dedos pode se formar iterativamente na ausência de Shh, o que é mais compatível com um mecanismo formador de padrão do tipo Turing que já havia sido proposto como o responsável pela formação de um pré-padrão nesta porção distal do broto do membro que guiaria o processo de condrogênese, ou seja, de formação de agregados de tecido cartilaginoso.
Uma das previsões específicas deste modelo é que o período dos dedos, ou comprimento de onda (que pode ser definido como a espessura combinada de ambos os dígitos e da região interdigital) deve estar sujeito a modulação por perturbações no parâmetro correto da rede de genes que controla o processo de diferenciação, levando a membros autopodes com dedos de diferentes números e espessuras, o que, segundo o time de pesquisadores responsável pelo artigo da Science, nunca havia sido claramente observada até à data. E foi exatamente isso que os cientistas responsáveis pelo estudo obtiveram como resultando ao usaram métodos de análise genética para estudar a formação dos dedos durante o desenvolvimento de camundongos, encarando este fenômeno como um processo iterativo que leva a um padrão intercalado, 'dedo/não dedo', portanto, análogo aos que tem sido modelados por sistemas de reação-difusão do tipo Turing.
Embora ainda houvessem incertezas de quais moléculas poderiam fazer parte desse mecanismo auto-organizado de formação de padrão, alguns genes Hox, que já sabidamente atuavam nas porções distais do broto o membro, Hoxa e Hoxd, eram candidatos óbvios, tanto por terem um impacto bem documentado na formação dos dedos, como por interagirem em várias instâncias como as vias de dos genes Shh e Gli3.
Os biólogos conseguiram mostrar que ao reduzirem progressivamente a dose de genes Hoxa13 e Hoxd11-Hoxd13 (este último discutido no post anterior, “Superexpressão do gene 13Hoxd: Mais pistas sobre a transição entre peixes e tetrápodes”) - que atuam na porção distal do membro em formação sobre um pano de fundo em que o gene Gli3 havia sido 'deletado' - levava a quadros de polidactilia progressivamente mais graves, ou seja, com maior número de dedos que por sua vez eram mais finos mais e densamente 'empacotados'.
Abaixo podemos observar os fenótipos, associados aos esqueletos de camundongos recém-nascidos, que foram considerados os mais representativos das séries de alelos dos genes Hoxa13; Hoxd11-13; Gli3 [o sinal de + indica a presença do alelo e o de - a sua ausência; e o Hoxd11-13 indica que ambos os loci são tratado e manipulados como um só]. Note que o número de dedos (indicados para a condição, na base da figura, Gli3XtJ/XtJ) aumenta à medida que a dose de genes Hox distais é reduzida. Outro resultado importante é que quando resta apenas uma única cópia funcional de Hoxa13, como fica claro na coluna da direita, as pontas dos dedos passam a estar ligadas por faixas contínuas de tecido (ossificado, em vermelho, e cartilaginoso, em azul) beirando a extremidade distal dos membros, o que fica ainda mais visível com a remoção de cópias do gene Gli3.
Assim, conforme mais genes Hox são removidos de um membro em desenvolvimento de camundongo, sem que haja o gene Gli3, mais dedos são gerados o que é exatamente o que se espera em um modelo semelhante ao proposto por Alan Turing.
Para compreender melhor estes resultados, a equipe de pesquisadores combinou a análise experimental com modelagem computacional do processo de formação de padrão por um mecanismo de reação-difusão. De posse das duas abordagens, os pesquisadores concluíram que os seus resultados dão forte apoio a ideia que existe realmente um mecanismo do tipo do de Turing subjacente a formação do padrão intercalado que produz os dedos em que a dose dos genes Hox distais modula o período (ou o 'comprimento de onda') dos dedos.
"Nosso estudo genético sugere que os genes Hox atuam como moduladores de um mecanismo de do tipo Turing, que foi posteriormente confirmado por testes matemáticos realizados por nossos colaboradores, Dr. James Sharpe e sua equipe", acrescenta Marie Kmita, Diretor da Genética e unidade de desenvolvimento de pesquisa na IRCM. [Veja “What mechanism generates our fingers and toes?”]
Abaixo pode-se observar nas três primeiras linhas os padrões de expressão do gene Sox9 com diferentes combinações de mutantes para as séries alélicas Hoxa13; Hoxd11-13; Gli3. Os autores, por meio da simulação, puderam replicar os fenótipos associados ao mutantes triplos podem ser replicados pelo modelo de Turing em que a diminuição do gradiente de PD utilizado para modular a onda está correlacionada com a dose reduzida Hox (khox).
Os autores também ressaltam que estes padrões, que assemelham-se muito ao padrões endoesqueletais das nadadeiras de peixes, sugerem que o estado pentadáctilo dos vertebrados tetrápodes deve ter evoluído por meio de modificações de um mecanismo do tipo do postulado por Turing que agia em nossos antepassados não tetrápodes mais antigos e que, por meio de modificações dos padrões de expressão dos genes e de seus produtos, alteraram a dinâmica das reações que resultaram em mudanças na formação, número e na distribuição dos elementos esqueletais mais distais:
“Além disso, mostramos que reduzir drasticamente a dose dos genes Hox em camundongos transforma dedos em estruturas que lembram as extremidades das nadadeiras dos peixes. Essas descobertas também apoiar o papel fundamental dos genes Hox na transição de barbatanas para membros durante a evolução, uma das mais importantes inovações anatômicas associadas com a transição do meio aquático para a vida terrestre.” completa Kumita. [Veja “What mechanism generates our fingers and toes?”]
Estes resultados nos permitem postular uma relação entre a evolução dos membros dos vertebrados e o papel de mudanças nos genes Hox distais. Assim, como é mostrado na árvore filogenética de grupos de animais representativos, podemos perceber relações entre os padrões esqueléticos dos apêndices (nadadeiras e membros) desses animais com a expressão correspondente dos genes Hox distais - e dos gradientes de Gli3R ('Repressor Gli3', resultado da proteólise da proteína Gli3, que tem função inibitória na transcrição) que estão representados quando conhecidos [o actinopterígio mostrado na figura é o peixe da espécie Polyodon spathula].
Notem bem que ao revogar a sinalização da via Shh e reduzir a função de genes Hox distais no membro autopode de camundongo (Hoxa13+/-; HoxdDel11-13/Del11-13; Gli3XtJ/XtJ) tem-se como resultado o aparecimento, nestes animais, de características de esqueleto que são compartilhadas com as do tecidos esqueléticos das nadadeiras peitorais de tubarões, como o Chiloscyllium punctatum, que exemplificam os condrictios, e de peixes ósseos com nadadeiras raiadas, como o Polypterus senegalus, representando os osteícitios, isto é elementos iterativos, numerosos e densamente empacotados com uma banda distal cartilaginosa correspondente aos arcos radiais distais das nadadeiras destes animais (vejam as setas):
"O padrão periódico de elementos esqueléticos evidentes em nadadeiras e membros mutantes sugere fortemente que um processo auto-organizado de condrogênese baseado em um mecanismo tipo Turing seja profundamente conservado entre os vertebrados. Os resultados indicam ainda que a dose de genes Hox distal regula o número e o espaçamento dos elementos esqueléticos formados, implicando distais redes reguladoras de genes Hox como sendo impulsionadores críticos da evolução do membro pentadáctilos." [Sheth R et al, 2012]
Este estudo, bem como o descrito no post anterior, nos mostra como hipóteses derivadas da análise comparativa de grupos de animais vivos e extintos, juntamente com insights advindos genética do desenvolvimento, e de modelos teóricos de formação de padrões, podem ser colocadas a prova e avaliadas quanto a sua viabilidade e coerência com os dados por meios de engenhosos experimentos, modelagem matemático-computacional e análise filogenética. Através deste tipo de investigação multidisciplinar, por meio da proposição e teste criterioso e criativo de ideias como essas, é que vamos compreendendo mais e melhor como grupos de organismos puderam dar origem a outros e como novos órgãos, estruturas e sistemas surgiram e evoluíram ao longo do tempo em função de mutações que alteravam a forma com estes mecanismos 'genéricos' [“De determinantes 'genéricos' aos 'genéticos': A importância da física nos primódios da evolução animal.”] formadores de padrão operavam.
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Referências:
Vogel G. Developmental biology. Turing pattern fingered for digit formation. Science. 2012 Dec 14;338(6113):1406. doi: 10.1126/science.338.6113.1406. PubMed PMID: 23239707.
Sheth R, Marcon L, Bastida MF, Junco M, Quintana L, Dahn R, Kmita M, Sharpe J, Ros MA. Hox genes regulate digit patterning by controlling the wavelength of a Turing-type mechanism. Science. 2012 Dec 14;338(6113):1476-80. doi:10.1126/science.1226804. PubMed PMID: 23239739.
Kondo S, Miura T. Reaction-diffusion model as a framework for understanding biological pattern formation. Science. 2010 Sep 24;329(5999):1616-20. doi: 10.1126/science.1179047. Review. PubMed PMID: 20929839.
Creditos das Figuras: