Wednesday August 08, 2012
Anonymous: Olá. Gostaria de saber se há diferenças entre a capacidade craniana de asiáticos, europeus, africanos e outros povos, e se há, de que maneira isso interfere nas habilidades e destrezas de cada grupo e como essas distinções se formaram na nossa espécie. Desde já, agradeço pelos esclarecimentos.
Existem diferenças nas medidas craniométricas, e, portanto, na capacidade craniana, entre grupos de seres humanos que refletem, em parte, a ancestralidade geográfica. Estas diferenças tradicionalmente tem sido encaradas como sendo mais bem estruturadas em grupos do que as diferenças genéticas que tendem a variar de maneira bem mais contínua, com as diferenças aumentando de acordo com a distância geográfica, sem grandes descontinuidades, mas, ainda assim, o ponto de corte para se estabelecer os grupos é bastante arbitrário [1].
É importante lembrar também que a variabilidade interindividual e, portanto, intragrupal, é ainda maior do que a intergrupal, como ocorre com a variabilidade genética humana. Desta maneira, essas medidas não refletem as maiores diferenças que existem, que são entre indivíduos, e não há correlação clara e concordante entre as medidas craniométricas e as ‘raças’ em sentido tradicional [2,3]. De fato, estudos mais recentes tendem inclusive a colocar em dúvida esta maior estruturação da variação das medidas cranianas, sugerindo que elas seriam muito mais semelhantes a variabilidade genética humana, que como já afirmei é muito mais contínua e, portanto, muito menos facilmente particionada em categorias estanques, sem que seja necessário um alto grau de arbitrariedade e subjetividade na escolha dos grupos [4]. Uma discussão excelente sobre este tema das medidas craniométricas e da questão das 'raças’ pode ser encontrada neste blog aqui.
A variabilidade dos tamanhos e formas cranianas entre indivíduos e entre sexos é relativamente grande (ainda que dispersão dos valores seja alta neste segundo caso), mas não há qualquer indicação robusta e minimamente consensual que haja uma correlação causal entre as medidas cranianas e as capacidade cognitivas dos indivíduos, e muito menos entre grupos. Mesmo por que as duas principais medidas destas capacidades, o QI (’Quociente de Inteligência’) e o ’g’ (’Inteligência Geral’) que teoricamente responderia pela maior parte da variância das capacidades cognitivas humanas são questionadas por muitos cientistas, como sendo realmente bons indicadores de inteligência ou de habilidades cognitivas subjacentes [5, 6]. Boa parte da discussão é bastante técnica e envolve as técnicas de análise multivariada como PCA e análise de fatores e muito da crítica envolve a violação de certas pressuposições básicas e a falta do emprego de ferramentas para confirmação das análises iniciais.
Existem alguns estudos que apontam diferenças cognitivas com relação a medidas de massa cinzenta encefálica por neuroimagens que correlacionariam-se apenas muito indiretamente com os volumes cranianos, mas estes estudos são bastante criticados [6], especialmente pelo fato já indicado que alguns pesquisadores consideram que as medidas como ’QI’ e o ’g’ sejam apenas artefatos das técnicas multivariadas usadas para extrair os fatores que respondam pela maior parte da variância entre os vários testes cognitivos aplicados e não sejam esses índices eles próprios propriedades reais dos seres humanos destacáveis de seu contexto sociocultural [5, 6; Veja aqui também]. Outro problema é que - tanto para os volumes cranianos, como para a massa encefálica, como para o ’QI’ e o ’g’ (Veja os artigos de Cosma Shalizi, “g, a Statistical Myth” e “ Yet More on the Heritability and Malleability of IQ”) - as estimativas de herdabilidade publicadas são tremendamente enganosas, não levando em conta todos os fatores importantes que, quando são incorporados as estimativas, diminuem muito a herdabilidade calculada.
Por fim, muitos insistem em contrapor herdabilidade com influência do ambiente, como se alta herdabilidade de uma característica significasse baixa flexibilidade dessa mesma habilidade e, portanto, falta de capacidade dela em responder ao meio ambiente, indicando, fixidez, o que simplesmente não é verdade pois a herdabilidade é sempre estimada em relação a um ambiente particular e em uma população específica, sendo uma quantidade muito dependente do contexto [5, 6, 7, 8] e que não nos diz muito sobre as causas das características dos indivíduos em si apenas das fontes de variação dessas características em uma dada amostra*.
Assim, em resumo, não existem evidências que sugiram que as variações nas capacidades cranianas em populações humanas modernas correlacionem-se (muito menos causalmente) com habilidades cognitivas ou destreza psicomotora entre os diversos grupos étnicos humanos, mesmo por que estes grupos apenas representam a menor porção da variabilidade humana seja ela genética ou fenotípica, como já mencionado, sendo na realidade bastante superficiais e contingentes, sendo mantidos mais por motivos sociocognitivos do que propriamente por serem biologicamente informativos [Veja para maiores detalhes esta coletânea de artigos].
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*Por isso, mesmo aceitando que estas medidas, mesmo que grosseiras e contexto-dependentes, possam ter seus méritos na prática científica - e até nos revelar algo importante sobre a cognição humana -, devemos ser cuidadosos e, por isso, estar bem conscientes das suas limitações e da dificuldade de estabelecermos relações simples entre essas medidas e outras características genéticas ou fenotípicas dos indivíduos, especialmente com algo tão complicado como inteligência, por exemplo. É preciso evitar interpretações simplistas e por isso é necessário sempre estarmos preparados para admitir que as causas reais das correlações representadas por essas medidas podem ser muito diferentes das que nós esperaríamos e podem ter muito pouco a ver com o que esperaríamos das habilidades que temos em mente em si. Veja por exemplo aqui.
Literatura Recomendada:
Relethford JH. Race and global patterns of phenotypic variation. Am J Phys Anthropol. 2009 May;139(1):16-22. PubMed PMID: 19226639.
Relethford JH. Craniometric variation among modern human populations. Am J Phys Anthropol. 1994 Sep;95(1):53-62. PubMed PMID: 7527996.
Relethford JH. Apportionment of global human genetic diversity based on craniometrics and skin color. Am J Phys Anthropol. 2002 Aug;118(4):393-8. Review. PubMed PMID: 12124919.
Strauss A, Hubbe M. Craniometric similarities within and between human populations in comparison with neutral genetic data. Hum Biol. 2010 Jun;82(3):315-30. PubMed PMID: 20649387.
Gould, S.J. A falsa medida do homem. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
Ehrlich, Paul, Feldman, Marcus Genes and Cultures: What Creates Our Behavioral Phenome? Current Anthropology, Vol. 44, No. 1 (February 2003), pp. 87-107 [PDF]
Downes, Stephen M., “Heritability”, The Stanford Encyclopedia of Philosophy (Fall 2010 Edition), Edward N. Zalta (ed.)
Lewontin, R. C. (1995). Human diversity (2nd ed.). New York: Scientific American Library. ISBN 0-7167-6013-4.
Grande abraço,
Rodrigo