Wednesday December 19, 2012
Anonymous: Lamarck vai mesmo reformular o neo-darwinismo na síntese ampliada?
Esse impulso intrínseco não ficou provado mas a herança de caracteres adquiridos sim? Mas apesar então de não ser originária de lamarck essa idéia, essas mudanças afetarão muito na síntese evolutiva ampliada? A mutação não será o pilar central da evolução ? Ouvi falar sobre muitos outros métodos de mudança (evolução) do fenótipo ou genótipo mas naum me lembro quais são, vc poderia me dizer?
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Como eu havia já comentado no FaceBook, não há um consenso sobre se estamos ou não realmente às vésperas de uma nova síntese da biologia evolutiva ou, pelo menos, de uma ‘síntese ampliada’, mesmo porque, para muitos biólogos evolutivos, historiadores e filósofos da biologia, a biologia evolutiva (e com isso a Teoria Evolutiva como um todo) jamais deixou de mudar, incorporando novas ideias, conceitos, modelos, ferramentas e evidências oriundas de novas tecnologias e da crescente capacidade de obter, armazenar e analisar dados biológicos. Porém, entre aqueles que acreditam que esta ‘síntese ampliada’ é iminente, não creio que hajam muitos que ponham em dúvida a importância das mutações (veja “Mutações: A aleatoriedade em sua essência*”), mesmo por que nas últimas décadas certos tipos de mutações (como as duplicações gênicas e genômicas) ganharam destaque e passaram a figurar como base dos principais modelos de evolução de novas funções ao nível genômico e mesmo organísmico, além do fato de algumas das propostas mais radicais dentro da biologia evolutiva, na realidade, acentuam a importância de fatores como a pressão de mutação, os vieses mutacionais e outras tendenciosidades associadas aos mecanismos de ‘renovação’ (turnover) genômica (veja ‘Molecular Drive e “evolução em concerto”) - como aqueles que estaraiam por trás de fenômenos como a conversão gênica, conversão gênica enviesada e, consequentemente, da evolução em concerto, mecanismos esses que funcionariam como promotores ou amplificadores da inovação evolutiva.
Em relação a influência de ideias de Lamarck, aconselho outras respostas dadas neste tumblr nas quais discuto um pouco a questão da associação do termo ‘Lamarckismo’ a herança de caracteres adquiridos pelo uso e desuso, especialmente em contraposição ao termo ‘Darwinismo’ (Veja aqui e aqui). Sobre o cerne do modelo transformista de Lamarck, como eu havia também já comentado, não há indícios que processos direcionais quase-teleológicos, como os postulados por Lamarck (ainda que não esteja claro se ele realmente acreditava que este processos seriam realmente dependentes da intenção dos organismos ou de qualquer impulso consciente), sendo que a própria ideia de progresso (em qualquer sentido absoluto) é extremamente contestada pelos biólogos evolutivos modernos. Mesmo tendo em vista o fat das discussões sobre certas tendenciosidades nos processos mutacionais, e mesmo na evolução adaptativa em relação evolução convergente, que têm sido alvo de crescentes discuções, parece enfatizar processos e situações que aumentam a relevância de fatores estocásticos, como a deriva genética e o efeito carona, que levam a fixação de mutações neutras e quase-neutras, como sendo os fatores essenciais para a evolução da complexidade nos sistemas biológicos.
O que tem sido realmente discutido sob a alcunha não muito adequada de ‘Lamarckismo’ são, na realidade, duas coisas distintas, mas que podem estar relacionadas, como veremos mais adiante. A primeira delas é a capacidade de certos tipos de processos evolutivos, ligados a plasticidade fenotípica e a seleção natural, mimetizarem a herança de caracteres adquiridos em sistemas multicelulares nos quais há segregação precoce dos tecidos germinativos e somáticos. Processos e fenômenos como a 'assimilação genética’, a 'acomodação genética’ e o 'efeito Baldwin’ seriam os principais exemplos. Eles deixam claro, claramente, como modificações fenotípicas adquiridas através da interação ambiental e passadas por meio do aprendizado poderiam 'sair na frente’ da evolução genética e, especialmente quando existe variabilidade genética críptica a ser liberada, poderem trazer à reboque a seleção de variantes genéticas que tornem estes fenótipos mais facilmente herdáveis e/ou adquiríveis mais precocemente e com menos interação ambiental. Este tipo de modelo de evolução que conta com cada vez mais evidências não entra em choque com os cânones mais gerais da teoria evolutiva moderna, apenas ressalta o fato, muitas vezes deixado de lado, de que há um papel construtivo dos próprios organismos em relação as mudanças em seu ambiente e, portanto, enfatizando-os como elementos cruciais na criação das próprias pressões ecológicas e socioecológicas que guiam o processo de evolução adaptativa.
O outro conjunto de ideias e fenômenos que estão sendo discutidos e investigados - e que alguns dos cientistas, historiadores da ciência e filósofos da biologia que defendem a iminência desta síntese ampliada - enfatizam estão associados com o campo da epigenética. Creio que muito da confusão advém exatamente daí e é a parte mais controversa do pacote. Na realidade, estes pesquisadores enfatizam principalmente o suposto papel de certos processos e fenômenos epigenéticos na evolução, especialmente a chamada ‘herança epigenética transgeracional’, uma vez que a participação de processos epigenéticos no desenvolvimento individual não é algo nada controverso, na realidade, nos ajudam a compreender muito melhor como, a partir de uma única célula, um organismo multicelular inteiro surge. Assim, alguns pesquisadores encaram que estes processos podem funcionar como uma base segura para a herança de caracteres adquiridos em organismos multicelulares que têm seus tecidos germinativos precocemente sequestrados e isolados dos tecidos somáticos que são os que interagem diretamente com o ambiente e que são diretamente modificados ao interagirem com ele. Isso ocorreria porque alterações que ocorrem com os indivíduos como um todo não precisariam modificar diretamente o DNA dos órgãos envolvidos na interação e muito menos encontrar um jeito de influenciar as sequências de DNA das células germinativas.
Todo o processo seria muito mais simples, ainda que bem pouco refinado, o que certamente limitaria as formas como a tal herança epigenética transgeracional poderia influenciar a evolução adaptativa de uma linhagem. O que ocorre é que, ao invés de mutações em sentido estrito - isto é modificações herdáveis nas próprias sequências de DNA sofridas pela linhagens somáticas e que teriam que, de algum modo serem, transferidas às linhagens germinativas –, apenas ‘epimutações’ seriam necessárias - isto é, alterações herdáveis na forma como as sequências de certos genes são marcadas ou empacotadas, de maneira que isso influencie a expressão desses genes - e que resistissem, pelo menos, parcialmente ao processo de ‘ressetagem’ epigenética comum ao começo do desenvolvimento embrionário, que normalmente apaga estas marcas.
Então, como alguns tipos de interações entre organismo e ambiente podem alterar estes padrões de marcação epigenética em todo o organismo inclusive nas células germinativas, bastaria que uma fração destas marcas adquiridas e presentes nos gametas escapasse ao processo de apagamento precoce, durante a embriogênese, para que elas chegassem a próxima geração (e em outras gerações futuras), podendo influenciar, assim, certos aspectos dos fenótipos dos indivíduos naquela cadeia de descendência. Existem muitas evidências que isso ocorre de fato e, inclusive, este modelo de herança epigenética tem sido proposto para explicar certos fenômenos esquisitos que ocorreram em populações humanas, como o fato de bebês com baixo peso, filhos de indivíduos que nasceram com baixo peso devido a desnutrição ocorrida entre as populações ocupadas na segunda guerra mundial, tenham também nascido mesmo após a escassez de comida não mais existir. Neste caso, acredita-se que um fenômeno chamado ‘imprinting metabólico’ tenha ocorrido com as crianças gestadas e criadas em períodos de fome que alteram permanentemente o padrão de expressão de seus genes, por meio das tais marcas epigenéticas, e que estas marcas, levadas pelas células gaméticas, não foram completamente apagadas e portanto influenciaram o desenvolvimento dos bebês da geração posterior.
Ainda há muita discussão sobre a extensão e relevância evolutiva destes fenômenos especialmente em relação ao fato destes fenômenos teriam ou não realmente um papel mais consistente na evolução adaptativa. Não está claro como este tipo de herança poderia, por exemplo, ocorrer consistentemente e preferencialmente em sistemas e características que sejam vantajosas; e, pior, não há garantias que elas continuarão vantajosas nas gerações seguintes, o que sugere que muito provavelmente estes sistemas seriam apenas mais uma fonte de tendenciosidades nas mudanças evolutivas, como muitas outras já bem conhecidas e mencionadas, com sua relevância funcional tendo que ser determinada pela interação entre os organismos e seu meio e pelo impacto das variações das alterações fenotípicas associadas a estes mecanismos de herança, nestas interações ecológicas em relação ao sucesso reprodutivo dos organismos que as portassem, isto é, via seleção natural.
Por causa disso, creio que uma possibilidade mais coerente para um papel mais importante para estas ‘epimutações’ na evolução adaptativa, dado sua natureza metaestável, seria servir como intermediárias, isto é, como fontes temporárias de herdabilidade de certos fenótipos, que seriam mais tarde ‘incorporados’ às linhagens, a médio e longo prazo, por meio dos já mencionados processos como a assimilação e a acomodação genética e através de fenômenos como o efeito Baldwin, conforme novas mutações e combinações de mutações ocorressem ou fossem ‘liberadas’.
Sobre estas questões aconselho que leia esta resposta bem extensa deste mesmo tumblr.
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*Nestas mesmas respostas, para as quais forneço links, também discuto a relação da herança de caracteres adquiridos pelo uso e desuso em seres unicelulares e em seres multicelulares, que se reproduzem por brotamento, por exemplo, em que não há uma divisão entre ‘soma’ e ‘germe’ (isto é, entre os tecidos gamético e somático) ou nos quais tal divisão é bastante lábil, desmistificando um pouco a questão e esclarecendo em que sentido a herança de caracteres adquiridos na maioria das vezes, apesar de real, não é problemática para a visão mais tradicional da evolução biológica, sendo em muitos sentidos uma curiosidade de certos sistemas nos quais não a uma separação mais rigorosa e precoce entre tecidos germinativos e somáticos.
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Literatura recomendada:
Vieira, Eli e Tidon, Rosana A bicentenária filosofia zoológica de Lamarck. Ciência Hoje , p. 70, nº 265.
Ghiselin, Michael T. The Imaginary Lamarck:A Look at Bogus “History” in Schoolbooks The Textbook Letter, September-October 1994
Jablonka, Eva e Lamb, Marion J. (Tradução Claudio Angelo) Evolução em Quatro Dimensões - DNA, comportamento e a história da vida (2010) Companhia das Letras ISBN 9788535915907
Rodrigues, Rodolfo Fernandes da Cunha; Silva, Edson Pereira da. Lamarck: Fatos e boatos. Ciência Hoje, São Paulo, n. 285, p.68-70, 26 set. 2011.[Link]
Stoltzfus, Arlin, and Lev Y Yampolsky. Climbing mount probable: mutation as a cause of nonrandomness in evolution.” The Journal of heredity 100.5, 2009 : 637-647.
Ohta T, Dover GA. The cohesive population genetics of molecular drive. Genetics. 1984 Oct;108(2):501-21. PubMed PMID: 6500260; PubMed Central PMCID: PMC1202420.
Daxinger L, Whitelaw E. Transgenerational epigenetic inheritance: more questions than answers. Genome Res. 2010 Dec;20(12):1623-8. Epub 2010 Nov 1. Review. PubMed PMID: 21041414; PubMed Central PMCID: PMC2989988 [Link].
Crispo E. The Baldwin effect and genetic assimilation: revisiting twomechanisms of evolutionary change mediated by phenotypic plasticity. Evolution.2007 Nov;61(11):2469-79. Epub 2007 Aug 21. Erratum in: Evolution. 2008 May;62(5):1273. PubMed PMID: 17714500.
Grande abraço,
Rodrigo