Wednesday January 30, 2013
Anonymous: Seleção a nível de grupo: esse troço existe?
Este é um assunto bem espinhoso e que está repleto de mal entendidos, especialmente por que muitos críticos da seleção de grupo misturam questões que, de fato, são bem diferentes umas das outras e que, há muito, foram superadas [1, especialmente esta parte e 2]. Resumindo bastante a questão, a resposta mais simples e direta que possa dar é que a seleção natural ao nível de grupos faz sentido do ponto de vista teórico e existem certas evidências experimentais de que ela pode ocorrer. Mesmo os maiores críticos da ideia de seleção de grupo, como John Maynard Smith, aceitam este simples fato. O próprio Maynard Smith propôs um modelo específico para a seleção de grupo, o chamado ‘modelo do palheiro’, ao explorar em que condisções ela poderia ocorrer. Porém, o que ocorre é que, na perspectiva mais tradicional e crítica a seleção de grupo, apenas em situações muito específicas, em que grupos variassem em relação ao seu padrão de extinção relativo e houvesse baixa migração e dispersão, é que isso deveria ocorrer. Sendo assim, muitos autores afirmam que se a seleção de grupo ocorre ela é deve ser bem rara e outras formas de seleção, como a seleção de parentesco, devem geralmente predominar [3].
O problema é que desde os primeiros grandes debates sobre a questão - que ocorreram nos anos 60 quando um zoólogo chamado Wynne-Edwards publicou um modelo mais específico de seleção de grupo e que foi muito criticado por vários geneticistas teóricos evolutivos, como Maynard-Smith, George C. Williams e William Hamilton – muita coisa mudou [4, 5]. Entre essas mudanças podemos citar dois fatos principais:
O primeiro deles foi o surgimento de novos modelos de seleção de grupo [4, 5] e evidências experimentais [6] que mostram que o fenômeno pode ser bem mais comum do que se pensava, e, de fato, até essencial para explicar alguns fenômenos evolutivos importantes como a emergência dos seres multicelulares [7, 8], dando origem a ideia da chamada ‘seleção multiníveis’ [5, 6, 7].
O segundo deles foi a formulação da chamada equação de Price e a reinterpretação do conceito de ‘aptidão inclusiva’, antes considerada a antítese da ideia de seleção de grupo, mas que, mais tarde (como admitido pelo próprio William Hamilton que formulou o conceito originalmente) como sendo passível de ser interpretado dentro da perspectiva da seleção de grupo [4, 5]. O que ocorreu foi que George Price desenvolveu uma equação que particiona a seleção natural total em uma população em componentes intra- e intergrupos. Isso mostrou que em várias condições a seleção entre os componentes grupais poderia plausivelmente prevalecer sobre aquela ocorrendo nos componentes individuais. Segundo, Sloan Wilson, quando o próprio Hamilton analisou sua própria teoria da aptidão inclusiva em termos da equação de Price, ele percebeu que o altruísmo expresso entre parentes seria seletivamente desvantajoso dentro de grupos de parentesco e só poderia evoluir caso houvesse uma contribuição diferencial de diferentes grupos de parentesco para a população como um todo [4, 5].
Outro ponto importante é que, apesar de um certo debate, muitos teóricos como David C. Queller reconhecem os dois formalismos - em suas formas modernas e não necessariamente como eram discutidos nos anos 60 e primeira metade dos anos 70 - como matematicamente equivalentes*[5] (mesmo que às vezes seja necessário introduzir várias suposições e elementos adicionais), especialmente por que Queller (e já antes Hamilton havia notado) mostrou que o parâmetro ‘r’ do modelo de seleção de parentesco original de Hamilton (veja a regra de Hamilton e nosso artigo “As cinco regras básicas para a evolução da cooperação”) não precisa ser necessariamente interpretado como parentesco genealógico (ou seja, as semelhanças genéticas não precisam se dar por meio de ‘identidade por descendência’ - ‘identical by descent’), sendo este apenas um caso particular.
Na realidade, basta que os fenótipos altruístas sejam, de alguma forma, transmissíveis [5]. O que Queller fez foi substituir o parentesco genealógico pela regressão no genotípico altruísta de um agente que interagiu com o altruísmo fenotípico de um vizinho. Isso pode ocorrer, no mínimo, de três formas diferentes [5]. A primeira delas é por que os alelos de um ou vários genes envolvidos no altruísmo são os mesmos, sendo, portanto, transmitidos por indivíduos aparentados, o que nos leva ao modelo de seleção de parentesco tradicional. A segunda forma é quando a transmissão se dá pelo simples fato de organismos com uma dada característica altruísta interagirem preferencialmente uns com os outros e transmitirem esta tendência (que pode ser codificada por não só alelos diferentes mas mesmo por alelos de loci diferentes não relacionados por parentesco) aos seus descendentes. Por fim, a terceira forma ocorreria quando os indivíduos de grupos altruístas conseguem excluir os não altruístas e transmitir culturalmente as tendências ao altruísmo aos seus descendentes.
De um certo modo a questão tornou-se muito mais semântica do que qualquer outra coisa, embora isso não queira dizer que, em situações específicas, uma abordagem não possa ser bem melhor do que a outra (veja a nota 1 para comentários adicionais). Infelizmente, a discussão ainda é bastante contaminada pelas discussões passadas que fazem alguns críticos repetirem argumentos inadequados e insistir em equívocos que deveriam ter sido, há muito, superados (como misturar a questão dos replicadores com a dos interatores/veículos [1]) e por causa de certos esteriótipos e da linguagem pouco rigorsa empregada na hora de se falar de seleção de grupo que ainda é comum entre alguns dos simpatizantes desta abordagem que não trabalham diretamente com estes modelos e não parecem ter acompanhado os avanços do últimos 40 anos.
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*Nota 1: Em sua análise publicada em 2012 no periódico Journal of Theoretical Biology, van Veelen e colaboradores [8], argumentam que apesar de ser verdade, para um conjunto específico de modelos de seleção de grupo, que modelos, usando em seu lugar a aptidão inclusiva, fornecem também a previsão correta, existem condições em que os efeitos da aptidão não são aditivos nas quais isso não ocorre. Resta, portanto, a questão empírica se esses modelos não capturados pela aptidão inclusiva são ou não revelantes para explicar a evolução. Portanto, além da questão semântica sobre a seleção de grupo e os modelos de seleção que adotam a perspectiva da aptidão inclusiva, podem haver situações em que uma abordagem possa realmente estar completamente errada, enquanto outra certa. Porém, mas do que isso, mesmo sendo ‘em grande parte matematicamente equivalentes’, e conduzindo às mesmas predições, é perfeitamente possível que, em situações particulares, cada abordagem possa capturar melhor os processos causais e as interações mais relevantes e mais explanatórias, sendo este um guia melhor para decidir qual abordagem usar.
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Literatura Recomendada:
Lloyd, Elisabeth, “Units and Levels of Selection”, The Stanford Encyclopedia of Philosophy (Winter 2012 Edition), Edward N. Zalta (ed.).
Okasha, S. ‘Why Won’t the Group Selection Controversy Go Away?’, British Journal for the Philosophy of Science, 52, 1, 25-50, 2001
Maynard Smith, J. Group selection. Quarterly Review of Biology 51:277–283.
Eldakar OT, Wilson DS. Eight criticisms not to make about group selection.Evolution. 2011 Jun;65(6):1523-6. doi: 10.1111/j.1558-5646.2011.01290.x. Epub 2011 Apr 3. PubMed PMID: 21644945; PubMed Central PMCID: PMC3110649.
Leigh EG Jr. The group selection controversy. J Evol Biol. 2010 Jan;23(1):6-19. doi: 10.1111/j.1420-9101.2009.01876.x. Epub 2009 Nov 26. Review. PubMed PMID: 20002254.
Goodnight CJ, Stevens L. Experimental studies of group selection: what do they tell us about group selection in nature? Am Nat. 1997 Jul;150 Suppl 1:S59-79.PubMed PMID: 18811313.
Okasha, S. ‘Multi-level Selection and the Major Transitions in Evolution’, Philosophy of Science 72, 1013-1028, 2005.
van Veelen M, García J, Sabelis MW, Egas M. Group selection and inclusive fitness are not equivalent; the Price equation vs. models and statistics. J Theor Biol. 2012 Apr 21;299:64-80. doi: 10.1016/j.jtbi.2011.07.025. Epub 2011 Aug 7. PubMed PMID: 21839750. [pdf]
Também aconselho o artigo no site edge.org de Steve Pinker sobre a questão (que infelizmente perpetua alguns mal entendidos) e especialmente as diversas respostas de vários cientistas que se seguiram ao artigo de Pinker e que podem ajudar a esclarecer a questão.
3. Group selection debate - Samir Okasha from London Evolution on Vimeo.
Grande abraço,
Rodrigo