Wednesday July 13, 2011
Anonymous: Uma vez me disseram que o ciclista Lance Armstrong (que ganhou sete vezes a Volta da França) possui uma mutação que é responsável pelo seu grande desempenho fisico. Isso é verdadeiro? E já registraram mutações benéficas como essa em seres humanos?
Primeiro é preciso lembrar que o que define se uma dada variante genética é benéfica ou maléfica é o contexto. Tirando as mutações que tornam a sobrevivência impraticável ou pelo menos tremendamente difícil e curta, o principal fato que irá especificar a natureza de uma variação genética é o seu impacto no sucesso reprodutivo. Segundo, o efeito de mutações é em geral muito complexo e um fenômeno chamado de pleiotropia antagônica mostra bem isso. Várias dos genes presentes em várias espécies animais que são benéficos no começo do desenvolvimento e na juventude tem impacto negativo no final na vida. Muito do processo de envelhecimento parece ser um resultado desse tipo de fenômeno.
Existem várias variantes genéticas que conferem vantagens em certas circunstâncias aos indivíduos portadores. Dois dos mais conhecidos são a heterozigose do alelo S para a Hemoglobina em regiões com malária e os indivíduos que possuem uma cópia alterada do gene CCR5 - com uma deleção de 32 pares de bases (CCR5-Δ32) - que torna os portadores resistentes ou parcialmente imunes a infecção pelo vírus HIV (HIV-1) já que o vírus depende desta proteína para infectar as células. Mais conhecida, no entanto, é a mutação no gene da lactase que se espalhou por várias populações humanas com histórico de criação de gado nos últimos 10 000 anos. Essa variante faz com que o gene de metabolização da lactose, presente no leite, fique ativo na vida adulta e não apenas na infância.
Ed Coyle, diretor do Laboratório de Performance Humana da Universidade do Texas, em Austin, vem estudando Lance Armstrong há anos, chegando a publicar seus achados em 2005 no Journal of Applied Physiology*, ainda que exista uma certa controvérsia em relação a esses estudos. Segundo ele, o enorme coração de Armstrong pode bater mais de 200 vezes por minuto bombeando um volume extraordinariamente maior de sangue e oxigênio para seus músculos das pernas do que o da maioria das pessoas. Os pulmões de Lance podem também absorver o dobro do oxigênio do que uma pessoa mediana, com seus músculos produzindo apenas metade do ácido lático e o eliminando de forma bem mais rápida e eficiente. Uma pessoa “normal” em média transforma 20% do oxigênio que respira em potência muscular, Armstrong transforma 23%, um dos maiores valores mais registrados em um ser humano. Seu VO2 máximo, a quantidade máxima de oxigênio nos pulmões, é também extremamente alto.
Tudo isso sugere que Armstrong tenha algumas diferenças genéticas, além de levar extremamente a sério o treinamento [Coyle documentou que Armstrong foi capaz, com treinamento, aumentar a eficiência de seus músculos em 8 %. Também segundo Coyle, Lance é o único humano em que isso foi mostrado] dado o fato que possui uma extraordinária determinação e ter ganho na loteria desenvolvimental. Contudo, não creio que até hoje tenham isolado esses (supostos) contribuintes genéticos e não sabemos o quão herdáveis seriam essas características na família de Lance. Além disso também existem outros atletas de elite com características semelhantes (por exemplo possuidores de corações e pulmões tão fantásticos), mas estamos apenas começando a compreender como essas características estão ligadas a certas variantes gênicas [veja aqui, aqui e aqui]
Vários polimorfismos (variantes genéticas presentes em populações humanas) que muitos pesquisadores acreditam estarem associadas a melhor resistência e performance cardiovascular vem sendo investigados, o que pode ser o caso de Armstrong, mas não encontrei informações específicas sobre esse vínculo. Esses polimorfismos às vezes são chamados de PEPs ( “Performance Enhancer polymorphisms”, isto é, “Polimorfismos aumentadores de performance”) e são conhecidos mais de 200 deles atualmente, ainda que sua contribuição específica e mesmo relevância sejam ainda debatidas.
Um exemplo desse tipo de polimorfismo é D/I associado a enzima conversora de angiotensina, proteína ligada ao sistema fisiológico renina-angiotensina que aparentemente está associado a resistência física. O alelo D da enzima conversora de angiotensina (ACE) está associado a níveis séricos e teciduais elevados de ACE, aumento da produção de uma molécula vasoconstritora chamada de angiotensina II e redução da meia-vida de uma substância vasodilatadora chamada de bradicinina. Indivíduos homozigotos para este alelo parecem ter um pior prognóstico em relação a várias condições cardíacas e renais. Enquanto isso, a posse do alelo I parece correlacionar-se ao aumento da performance em atletas de elite, especialmente em provas de resistência, como corredores de longa distância, remadores e montanhistas (e, quem sabe, ciclistas). Entretanto ainda há certa controvérsia sobre estes achados e sobre o que podermos concluir através deles.
Um exemplo mais interessante, entretanto, é o do gene ACTN3 para o qual existem evidências crescentes de que este desempenhe forte influência sobre a performance atlética, além de, aparentemente, estar envolvido em um tipo de “trade off” (uma “troca” ou “solução de compromisso”) evolutivo entre a velocidade e a resistência física.
Alguns trabalhos científicos têm mostrado que a proteína do músculo esquelético de ligação a actina, α-actinina-3, está ausente em cerca de 18% dos indivíduos saudáveis caucasianos, condição esta aparentemente causada pela homozigose de um polimorfismo comum associada a uma mutação do códon de parada no gene ACTN3 em que ocorre a deleção da arginina na posição 577 (R577X) e, conseqüente, terminação precoce da tradução da proteína, resultando na não produção da mesma. A proteína α-actinina-3 é expressa especificamente nas fibras musculares rápidas que são responsáveis pela geração de força nas atividades em alta velocidade.
Contudo, como os indivíduos com esta mutação em homozigose (R577X/R577X) não demonstram um fenótipo de doença, a deficiência da α-actinina-3 é provavelmente compensada pela presença da proteína homóloga α-actinina-2, mostrando a dependência de contexto. Mas essa redundância é parcial e o alto grau de conservação evolutiva da ACTN3 sugere que esta tenha uma outra função independente da função da ACTN2. Trabalhos mais recentes têm mostrado associações significativas entre o genótipo ACTN3 e o desempenho atlético. Por exemplo, atletas velocistas de elite, tanto masculinos e femininos, têm freqüências significativamente maiores do alelo 577R do que controles, sugerindo assim que a presença de α-actinina-3 tenha um efeito benéfico sobre a função do músculo esquelético ao gerar fortes contrações quando os indivíduos estão em alta velocidade. Pode-se especular que esta características tenha proporcionado no passado uma vantagem evolutiva para os indivíduos que possuam este alelo, ao aumentar a performance quando maior velocidade era exigida.
O mesmo estudo revelou um outro efeito muito interessante, mas desta vez em atletas mulheres, associado ao genótipo 577RX. Os resultados mostraram que são encontradas em freqüência maior do que os esperado mais heterozigotas para ACTN3 (577RX/577R), entre as atletas velocistas; enquanto, entre atletas de resistência, são encontradas freqüências menores do que o esperado de heterozigotas. A falta de um efeito semelhante nos homens sugere que o genótipo ACTN3 afeta o desempenho atlético de forma diferente em homens e mulheres. Os efeitos diferenciais em atletas velocistas e de resistência indicam que os polimorfismos R577X podem ter sido mantidos na população humana através de seleção natural balanceadora.
Outros estudos, ainda mais recentes, rastrearam as mudanças do alelo R577X durante a evolução humana e fornecem evidências de que o alelo nulo (X) sofreu forte seleção positiva recente em populações européias e asiáticas. O mesmo grupo trabalhando com modelos animais (camundongos ‘nocaute’, ou seja, deficientes para o gene ACTN3) mostrou que a falta α-actinina-3 resulta na melhor utilização de energia por parte do músculo do camundongo, com as fibras de contração rápida exibindo propriedades metabólicas e contráteis semelhantes as das fibras oxidativas lentas, o que favorece atividades de resistência, mas isso trás como conseqüência (ou 'custo’ ou 'trade-off’) a dificuldade na geração de contrações rápidas necessárias para a performance de velocidade.
Os autores deste trabalho propõem, então, que a mudança em direção a o metabolismo aeróbico muscular mais eficiente associado a deficiência de α-actinina-3 também estaria por trás da vantagem adaptativa do alelo 577X.
Outros exemplos de evolução adaptativa humana mais recentes podem ser achados nesta outra resposta para o formspring.
* Para alguns problemas com os dados apresentados por Coyle veja aqui e aqui.
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Literatura recomendada:
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Abraços,
Rodrigo