Wednesday November 02, 2011
Anonymous: Se genes neandertais estão presentes em europeus, isso não implica em haver duas espécies diferentes de seres humanos, ou pelo menos subespécies? Já que a "europeia" seria um híbrido entre o sapiens arcaico e o neandertal, e a espécie originada da África não teria genes de outra espécie, portanto seria tida como espécie pura. O neandertal era de fato uma espécie diferente ou subespécie sapiens? Há possibilidade de uma população híbrida ir pra frente? E se for da junção de duas subespécies?
“Não necessariamente”, é resposta para sua primeira pergunta. (“Talvez. Isso ainda suscita debates entre os especialistas.” para a segunda e “Sim! Seria possível.” para as duas últimas). Em relação a sua primeira questão eu elaboro a seguir e aproveito para tocar em alguns pontos pertinentes às outras questões.
De acordo com conceito biológico de espécie por continuarmos a ser populações intercruzáveis não somos consideradas espécies diferentes, apenas certas populações tem uma composição com uma origem diferente das demais. Talvez a questão mais importante é que a atual variabilidade genética humana é pequena e bastante superficial - sendo encontrada principalmente em marcadores neutros especificamente escolhidos por serem maximamente informativo sobre a ancestralidade geográfica das populações modernas – para ser relevante para nos distinguirmos em subespécies ou raças biológicas.
O problema é que damos muito valor para algumas características poucas superficiais como a cor da pela, e detalhes de nossa morfologia craniofacial e textura capilar que são resultando de apenas de uma fração de nossas diferenças genéticas - que, aliás, tendem a se distribuir de maneira contínua – as equiparamos a outras diferenças culturais que nos fazem arbitrariamente eleger certas características mais importantes do que outras, exagerando as diferenças entre “nós” e os “outros” [Veja por exemplo aqui].
No entanto, somos muito menos diferentes do ponto de vista genético do que outras espécies que normalmente são divididas em subespécies. Isso pode ser percebido quando comparamos essas diferenças às existentes em outras subpopulações de primatas como chimpanzés que são muito mais diversos entre si, do ponto de vista genético (apesar de certa controvérsia existir em relação aos resultados de DNA nuclear, mas haver muita concordância em relação ao DNA mitocondrial), do que nós, seres humanos, somos entre nós. Esses resultados são congruentes ao provável gargalo de garrafa populacional ( ou seja, uma drástica redução da população humana), sofrido por populações humanas ancestrais, que alguns ligam a uma super-erupção no continente africano (o evento Toba), que afetou nossa especie entre 50 e 80 mil anos atrás, nos deixando mais homogêneos. De fato outros estudos indicam que durante a maioria da história dos hominídeos, suas populações efetivas (isto é, aquela parte da população que realmente é capaz de se reproduzir), permaneceram bem pequenas, variando em algo em torno de poucas dezenas de milhares de indivíduos. Além disso, outros gargalos de garrafa possivelmente ocorreram antes e depois do hipoteticamente associado ao evento Toba, como um que teria acontecido logo depois do surgimento dos H. sapiens, por volta de 120-190 000 anos atrás e uma mais recente tendo ocorrido durante o cruzamento do estreito de Bering e colonização da América algumas dezenas de milhares de anos atrás. Tudo isso justifica a nossa baixa variabilidade genética e põe em contexto a diversidade superficial anatômica e grande diversidade cultural.
Por isso, não faria muito sentido consideramos as populações humanas modernas com contribuições genéticas dos Neandertais, como subespécies distintas das demais populações humanas. Parece fazer mais sentido aceitar, simplesmente, que essas populações ancestrais diferentes (não H. sapiens) foram parcialmente absorvidas pelas populações de H. sapiens ancestrais das populações humanas atuais da Europa que apresentam estes marcadores típicos dos Neandertais. Algo semelhante pode ser dito sobre a contribuição genética remanescente de outra espécie de Homo arcaica denominadas de Denisovianos. Estes dois casos seriam uma exemplo de evolução reticulada e das limitações do conceito biológico de espécie já que intercruzamento eventual entre populações humanas morfologicamente distintas, com descendência fértil, pode ocorrer, mesmo que não seja muito comum. Mas se barreiras culturais e comportamentais é que mantiveram o isolamento dessas populações, durante certos períodos, estas barreiras poderiam ter se tornado menos efetivas o que teria permitido o maior fluxo gênico entre certas populações de H. sapiens e certas populações de Neandertais e Denisovianos.
O maior problema, então, seria realmente se os Neandertais e Denisovianos deveriam ser considerados espécies diferentes da nossa ou, apenas, subespécies diferentes de H. sapiens extintas que deixaram apenas alguns traços genéticos em algumas populações humanas modernas. Alguns antropólogos como Jonathan Marks e M. H. Wolpoff ainda defendem que os Neandertais, por exemplo, seriam melhor caracterizados como uma subespécie de H. Sapiens, ainda que muitos outros antropólogos e sistematas que lidam com hominídeos extintos não considerem assim.
Este problema é relacionado com outra disputa entre os paleoantropólogos que coloca de lados distintos os ‘amontoadores’ e os 'separadores’, com os primeiros preferindo amontoar em poucas espécies os diversos restos de hominídeos e os outros preferindo separar em espécies distintas. Um dos fatores que complica esta disputa é que sem conhecermos os comportamentos dessas populações e, principalmente, termos amostras de seu material genético (em abrangência e quantidade, para justificar uma boa caracterização das populações dessas espécies como um todo, ao logo do tempo e da sua distribuição geográfica), torna-se muito difícil saber por qual estratégia optar, com a empreitada adquirindo um certo gosto subjetivo.
Os estudos genômicos recentes apontam para que a magnitude da variabilidade genética das amostras encontradas em Neandertais ultrapassaria a encontrada em populações de seres humanos modernos, mas ainda assim seria bem menor do que as diferenças para os nossos ancestrais mais próximos, os chimpanzés, sugerindo, assim, que realmente seriam uma espécie à parte. Mas, infelizmente, isso não é suficiente para decidir a contenda e nos dizer de maneira definitiva como deveríamos classificar tais populações do gênero Homo. Alguns pesquisadores são bastante radicais e propõem cenários taxonômicos bem enxutos, com no máximo 5 espécies ancestrais (contrastando com as mais de 20, propostas por alguns “separadores”) - o que colapsaria, os seres humanos modernos e os H. sapiens arcaicos juntamente como os Neandertais e Denisovianos, em uma única especie - e até mesmo,em alguns casos mais extremos, reforçando as propostas de inclusão dos Chimpanzés e Bonobos dentro do gênero Homo.
Esta questão é bem complicada e tem divido os especialistas e talvez tenhamos que nos acostumar em considerar espécies como entidades biológicas cujos limites são mais porosos, aceitando a fluidez inerente às entidades biológicas que variam no tempo e no espaço, devida a contingência dos processos de extinção que podem 'cortar’ a conexão genética entre populações intermediárias e da própria evolução de outras formas de isolamento reprodutivo.
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Literatura Recomendada:
Amos W, Hoffman JI. Evidence that two main bottleneck events shaped modern human genetic diversity. Proc Biol Sci. 2010 Jan 7;277(1678):131-7. Epub 2009 Oct 7. PubMed PMID: 19812086; PubMed Central PMCID: PMC2842629.
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Curnoe D, Thorne A. Number of ancestral human species: a molecular perspective. Homo. 2003;53(3):201-24. Review. PubMed PMID: 12733395.
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Gibbons, Ann (1 October 1993). “Pleistocene Population Explosions”. Science 262 (5130): 27–28. doi:10.1126/science.262.5130.27.PMID 17742951.
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Wolpoff, M. H. (2009), How Neandertals inform human variation. American Journal of Physical Anthropology, 139: 91–102. doi: 10.1002/ajpa.20930
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Zimmer, Carl (2011) O que é uma espécie? scientific American Brasil edição 111 - Agosto 2011 [reimpressão do artigo de junho de 2008 – PDF]
Veja também a FAQ do TalkOrigins sobre a descoberta do Denisovanos, aqui.