Wednesday November 07, 2012
Anonymous: Olá, a respeito do evolucionismo, há uma questão que me intriga e que ainda não consegui obter uma resposta. É sobre o sexo dos animais, mais especificamente os vertebrados. Como foi possível a distinção dos sexos - masculino/feminino - no decorrer da evolução? Ou seja, todos sabemos que para o ser humano procriar por exemplo, é necessário um homem e uma mulher fazerem sexo, mas para fazerem sexo, o sistema reprodutor de ambos precisa ser compatíveis, como foi possível? Rogerio Marx Facebook
A distinção entre os sexos (masculino e feminino) surge na evolução dos seres vivos bem antes da evolução dos sistemas de cópula e, portanto, da genitália masculina e feminina. Na realidade, a distinção entre macho e fêmea tem mais relação com a especialização dos gametas, com os tipos pequenos, móveis e numerosos, mais conhecidos como espermatozóides, caracterizando o sexo masculino, enquanto os tipos grandes, imóveis, cheios de reservas e geralmente únicos ou em baixos números, os óvulos caracterizando o sexo feminino. As origens e evolução da reprodução sexuada já foram abordadas em uma resposta anterior e eu a recomendo caso sua dúvida envolva esta parte da evolução dos seres vivos.
A cópula e a genitália, por outro lado, evoluem mais tardiamente no contexto da evolução da fecundação interna em contraposição a fecundação externa, em que a forma mais derivada de fecundação (a interna) traria vantagens aos organismos que possuíssem esta característica ao aumentar as chances da fecundação através do encontro entre espermatozóide e óvulo que poderiam também se desenvolver até serem expelidos na forma de ovos ou mantidos por mais tempo no caso da ovoviparidade e viviparidade em condições mais apropriadas ao invés de simplesmente liberá-los de qualquer jeito.
Existem não só em vertebrados, mas em muitos invertebrados, exemplos de evolução de apêndices facilitadores da fecundação interna. Um dos mais interessantes ocorre em alguns platelmintos marinhos hermafroditas que exibem o comportamento de ’esgrima peniana’ em que os dois parceiros/contendores lutam para ver quem consegue introduzir o pênis na parede do corpo do outro e fecundá-lo decidindo assim que será o macho e a fêmea de vez. Neste caso só há o pênis e não uma entrada para o mesmo que portanto precisa perfurar o corpo do outro indivíduo. No caso dos vertebrados fica fácil de ver como se deu o processo pois além de animais que tem fecundação externa e não têm cópula, existem animais com fecundação interna mas sem sistemas de cópula propriamente ditos. Em aves por exemplo, muitas vezes a fecundação depende do contato entre as duas cloacas, as aberturas comuns para os tratos urinários, reprodutivos e intestinais, no que os especialistas chamam, às vezes, de ‘beijo cloacal’. Outras espécies de aves, por outro lado, já apresentam um falo que é introduzido na cloaca.
Em vertebrados aquáticos existem soluções convergentes interessantes para garantir a fecundação interna, como os 'gonopódios’ e 'antropódios’ em certos peixes ósseos que são derivados das nadadeiras anais e os ’claspers’ de raias e tubarões que derivam das nadadeiras pélvicas que são introduzidos nas aberturas genitais das fêmeas ou em suas cloacas, dependendo do caso. Assim, não é difícil de imaginar como em um ancestral dos vertebrados tetrápodes terrestres a cloaca dos machos pode ter evoluído de maneira a uma estrutura ligeiramente evertida que facilitasse o contato e fixação com a cloaca das fêmeas e, mais tarde, em algumas linhagens derivadas deste ancestral, onde houve a separação dos orifícios urogenital e anal, que estruturas mais especializadas tenham evoluído e se fixado nas populações a partir de vantagens na eficiência da cópula. E este processo teria continuado até dar origem aos pênis em diversas linhagens de vertebrados. Portanto, a evolução inicial dos pênis e de estruturas análogas não deve ter sido tão complicada assim, mesmo por que ocorreu de maneira independente em várias linhagens. De fato como veremos mais adiante, a morfologia genital masculina é uma das características fenotípicas que mais rápido evolui e diverge entre populações e espécies.
Um pouco mais complexo é explicar a co-evolução entre os pênis e as vaginas ou os órgãos análogos de outros animais, machos e fêmeas, já que os mecanismos específicos de evolução parecem variar de caso a caso de acordo com o contexto ecológico-comportamental de cada linhagem e especialmente em função das estratégias reprodutivas de cada grupo, principalmente, se divergem muito entre machos e fêmeas.
A ideia geral, entretanto, é que modificações na genitália de um dos sexos funcione como pressão seletiva para modificações na genitália do outro sexo. Como muitas vezes as estratégias entre machos e fêmeas divergem e pode haver competição maior ou menor pelo sexo oposto em um dos sexos, muitas vezes estas estratégias podem até ser antagônicas. Este tipo de processo co-evolutivo pode explicar também como certos mecanismos de isolamento reprodutivo pré-copulatórios podem evoluir e assim colaborar no processo de especiação.
Normalmente, quando há fluxo gênico as alterações genéticas e morfológicas resultantes evoluem mais lentamente e mudanças drásticas geralmente resultam na incompatibilidade reprodutiva que termina com a não reprodução daquele organismo específico que as apresentam, levando a extinção daquela característica. Porém, caso a população se divida em duas subpopulações o processo de co-evolução entre as genitálias de machos e fêmeas acontece de maneira independente em cada subpopulação e enquanto as mudanças dentro de cada subpopulação são sempre autorreguladas (já que tipos muito divergentes não dão conseguem se reproduzir), como não ha contato entre as duas subpopulações, as característica entre os dois grupos podem divergir ao ponto de quando voltar haver contato entre as subpopulações, as genitálias dos machos de uma subpopulação e das fêmeas da outra subpopulação sejam completamente incompatíveis, ou muito pouco compatíveis a ponto de reduzir o sucesso das cópulas, o que terminaria por isolá-los.
De fato, existe ampla gama de evidências, inclusive, que mostram que a genitália intromitente dos machos consistentemente tende a divergir mais rapidamente do que outras características corporais nos mesmos indivíduos em uma ampla gama de grupos de animais. Existem muitas hipóteses que tentam explicar por que isso ocorre, mas atualmente os modelos baseados em seleção sexual vêm ganhando cada vez mais respaldo, ainda que o tipo específico de mecanismo ainda seja bastante debatido.
Os dois principais mecanismos não envolvendo seleção sexual que os cientistas costumavam a dar mais atenção no pensado para explicar a evolução genital eram o modelo de chave-fechadura e a hipótese da pleiotropia. No primeiro tipo de modelo, o de chave-fechadura a divergência genital ocorre como resultado da evitação da hibridização, com apenas os machos da 'espécie correta’ sendo capazes de fornecer a chave certa para encaixar na fechadura da fêmea.
Esta ideia que era apoiada por muitos taxonomistas está ligada a outro mecanismos evolutivo associado a especiação que é o chamado reforço que entraria ação quando duas populações já estivessem divergindo e os híbridos produzidos por indivíduos de cada uma delas ao cruzarem já teriam pouco sucesso reprodutivo, assim qualquer inovação fenotípica que evitasse a formação destes híbridos, como o desenvolvimento de mecanismos pré-copulatórios de isolamento reprodutivo entre indivíduos de populações divergentes distintas, traria vantagens aos seus portadores já que estes só acasalariam com outros indivíduos capazes de gerar prole com maiores chances de sobreviver e reproduzir. Porém, esta hipótese não se mostrou consistente com as evidências disponíveis baseadas na morfologia do trato reprodutivo feminino, as associações genitais que ocorrem durante a cópula, a variação intra-específica na morfologia genital, e nem com a variação geográfica das genitálias.
Os defensores da hipótese da pleiotropia, por outro lado, encaram a divergência entre a morfologia dos órgãos genitais como um subproduto de efeitos pleiotrópicos (isto é, que afetam múltiplas características fenotípicas) da seleção de outras características, estas sim vantajosas. Diferente, da hipótese da chave-fechadura, esta hipótese é apoiada por algumas evidências de que os efeitos de genes pleiotrópicos realmente podem influenciar a morfologia dos órgãos genitais, mas ainda assim, sua aplicabilidade geral é questionável. Isso é assim, em parte, porque não está claro por que a pleiotropia deveria influenciar tão desproporcionalmente a morfologia genital do que outras características fenotípicas.
Os dois mais populares modelos que envolvem a seleção sexual são a hipótese da 'coevolução sexualmente antagônica’ (’sexually antagonistic coevolution’, ou SAC) e a hipótese da 'escolha feminina criptica’ (’cryptic female choice ’ ou CFC). Porém, o mais importante é que vários estudos mostram que a variação na morfologia genital está realmente ligada ao sucesso de fertilização dos machos, além dos métodos de análise comparativa modernas confirmaram as já previstas associações entre a complexidade genital e os padrões de acasalamento entre espécies. Já em relação as hipóteses envolvendo a seleção sexual, quatro classes principais de mecanismos tendem a ser os mais discutidas no que diz respeito a evolução da variabilidade genital interespecífica:
'Filhos sexis’ que também é conhecido como seleção fugitiva ou Fisheriana;
Bons genes bons;
Competição de esperma; e
Conflito sexual.
Para os defensores dos primeiros dois mecanismos de evolução por seleção sexual, “Filhos sexies” e “Bons genes”, a divergência genital é impulsionada pela ’escolha críptica feminina’ (CFC) de machos com genitália que melhor podem estimulá-las durante a cópula. No caso do primeiro mecanismo para a CFC (os ’Filhos sexies’), os benefícios na aptidão estão associados unicamente ao potencial de atrair parceiros que os filhos dessas fêmeas vão herdar - ou, no presente contexto, o potencial de estimulação feminina que seus filhos vão ter em relação as fêmeas. Contudo, no caso do mecanismo dos ’bons genes’, além da atratividade conferida pela genitália, tal mecanismo incluiria adicionalmente como bônus a maior viabilidade da prole [Note que não há qualquer necessidade de que as fêmeas percebam isso e decidam de maneira consciente, apenas que haja correlação da característica sua vantagens a prole e a escolha das mesmas por parte das fêmeas nos machos]. A importância relativa destas potenciais pressões de seleção estão longe de estarem claras, entretanto, é são o tema de debate acalorados entres os biólogos evolutivos.
O terceiro mecanismo associado a seleção sexual é a “competição de esperma” que aconteceria quando os ejaculados de dois ou mais machos competem para fertilizar um mesmo óvulo, o que também pode levar a divergência genital. Nesta situação, a divergência poderia ser resultado da evolução de estratégias que diminuiriam o sucesso de outros machos. Por exemplo, em libélulas, a seleção favorece os machos com genitálias que removem das fêmeas o esperma dos machos rivais. Assim, a pressão seletiva é para evitar a competição entre os espermas. Assim, em situações como esta, a competição seria entre machos e, portanto, não envolveria a escolha feminina, apesar, do fato das fêmeas poderem ainda assim beneficiarem-se indiretamente através da capacidade de remoção de esperma que seria herdada por sua prole do sexo masculino.
O quarto mecanismo, envolve o 'conflito entre os sexos’ que deve ocorrer sempre que não há a monogamia genética estrita e a reprodução demanda custos altos. Estas condições são de fato bem comuns, o que leva a crer que o 'conflito sexual’ deva ser abundante, podendo, portanto, favorecer as características que aumentam a aptidão de um dos sexos, mesmo quando são dispendiosas para o sexo oposto. Este classe de mecanismos estariam incluídos dentro da hipótese de ’coevolução sexualmente antagônica’ (SAC). Por esta perspectiva, a evolução de órgãos genitais altamente elaborados e sua variabilidade entre as espécies poderiam muito bem serem resultado de uma corrida armamentista evolutiva entre machos e fêmeas ao competirem pelo controle sobre a reprodução, uma vez que machos e fêmeas muitas vezes tem perfis de investimento na reprodução muito distintos e por isso demandam estratégias muitas vezes bem diferentes uns dos outros. Porém, por incrível que pareça, estudos de revisão indicam que a SAC não parece ter desempenhado um papel importante na explicação desse padrão de evolução genital na maioria dos grupos animais, sendo a CFC mais promissora pelo menos em relação aos testes que poderão ser realizados em um futuro próximo graças a novos métodos de modificação experimental de forma da genitália masculina e das habilidades sensoriais das fêmeas, bem como por causa de procedimentos de análise dos possíveis 'diálogos’ entre machos e fêmeas durante a cópula, além de observações diretas dos comportamentos de utilização das genitálias em situações naturais.
E por fim, a chamada 'exploração sensorial’ pode também estar implicada na rápida evolução da genitália, podendo assim representar o primeiro passo evolutivo em qualquer um dos mecanismos discutidos anteriormente. Isso ocorreria por que em condições onde há escolha feminina dos parceiros, os machos podem explorar certos vieses nas preferências das fêmeas ao evoluíram certas características exageradas, mas que com o tempo não tragam vantagens reprodutivas as fêmeas que assim evoluiriam estratégias de evitação destas características e assim poderia começar um processo antagonístico co-evolutivo ou, por outro lado, poderia iniciar um processo de evolução em que as fêmeas consigam 'distinguir’ aquelas características que pudessem realmente trazem vantagens menos transitórias aos membros do sexo masculino da sua prole e portanto impulsionar um processo de evolução por escolha críptica feminina, por exemplo.
Esta riqueza de hipóteses e mecanismos seletivos acaba trazendo problemas para testá-las de maneira adequada, distinguindo quais mecanismos seriam os mais importantes na evolução em cada situação e para cada grupo animal, e especialmente, como vários deles poderiam estar interagindo em uma única situação e suas contribuições relativas destrinchadas. Porém, com o desenvolvimento de sistemas experimentais mais refinados em que estas características possam ser manipuladas e as vantagens reprodutivas melhor delimitadas, bem como com o emprego de métodos genéticos mais precisos que consigam distinguir a base molecular de cada uma das modificações fenotipicas, teremos respostas mais confiáveis e precisas sobre estas questões.
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Literatura Recomendada:
Eberhard WG. Evolution of genitalia: theories, evidence, and new directions. Genetica. 2010 Jan;138(1):5-18. Epub . Review. PubMed PMID: 19308664.
Hosken DJ, Stockley P. Sexual selection and genital evolution. Trends Ecol Evol. 2004 Feb;19(2):87-93. PubMed PMID: 16701234.
Grande abraço,
Rodrigo