Wednesday November 19, 2014
Anonymous: tem que existir o homem e a mulher para procriar,mas antes de existir o primeiro ser humano,quem procriou para que o ser humano existisse?ou sempre existiu seres humano?seria um regresso infinito?
Cuidado, pois esta linha de raciocínio é enganosa e provavelmente origina-se de uma visão equivocada sobre o que é a evolução e talvez mais especificamente sobre o processo de formação de novas espécies, a especiação. O primeiro ponto é que a evolução não é um fenômeno que acontece com indivíduos isolados, de uma hora para outra. Um indivíduo de uma nova espécie não nasce de um outro indivíduo de uma velha espécie (pelo menos, não em espécies que reproduzem-se sexuadamente) completamente diferente.
A evolução é um fenômeno que ocorre com populações de indivíduos e são estas populações que mudam nas características hereditárias dos indivíduos que as compõem, com este fenômeno acontecendo ao longo de várias gerações. Portanto, a evolução é um fenômeno populacional e transgeracional. Então, em nenhum momento houve só um macho ou só uma fêmea de uma nova espécie, como você parece presumir. Além disso, com base do exame do registro fóssil é claro que nem sempre existiram seres humanos. Nossa espécie descende de populações de outras espécies, já extintas de homininas, que não consideraríamos humanas, embora a fronteira em si entre humanos e ‘pré-humanos’ seja um tanto arbitrária, existindo várias formas de transição, representadas por fósseis de espécimens de espécies extintas que exibiam características fenotípicas intermediárias entre as formas mais antigas e as formas mais derivadas que consideramos [veja aqui e aqui], por exemplo, membros do gênero Homo ou mesmo da espécie Homo sapiens. O importante é compreender que, como a evolução é um processo que ocorre através das gerações, quanto maior o intervalo de tempo que tomamos, mais as populações de uma dada época são diferentes das de outra época.
Para compreendermos melhor como isso acontece é importante entender como novas linhagens surgem ao longo da evolução a partir de outras linhagens. O modo principal de evolução de novas linhagens envolve a chamada cladogênese, um processo em que um linhagem divide-se dando origem a duas outras. Simplificando bastante, no caso das espécies, isso ocorre quando há divisão da espécie em duas populações - ou seja, dois conjuntos de indivíduos que, no caso de espécies sexuadas, são ambas formadas por machos e fêmeas capazes de cruzarem uns com os outros.
Este processo de separação pode se dar quando estas duas populações, ao serem isoladas uma da outra (por exemplo por uma barreira geográfica), perdem o contato reprodutivo, isto é, quando os indivíduos de uma população não conseguem cruzar com indivíduos da outra população, ou seja, os machos e fêmeas de cada população só acasalam com fêmeas e machos da mesma população. Como a evolução é um fenômeno transgeracional cada uma destas populações continua mudando. Isso acontece simplesmente porque há variação genética entre os indivíduos (e nova variação genética acaba surgindo por novas mutações), além de processos como a deriva genética e a seleção natural, que influenciam na sobrevivência e reprodução dos indivíduos. Estes processos em conjunto fazem com que alguns indivíduos vivam mais tempo e reproduzam-se mais do que os outros, o que leva a uma alteração na composição hereditária desta população, na qual estão incluídas as características genéticas, bem como as características fenotípicas influenciadas pelos genótipos dos indivíduos, como as que envolvem diferenças na morfologia, fisiologia, no comportamento etc. Assim estas populações continuam a mudar, tornando-se diferentes do que eram no passado, inclusive do que eram antes que as duas populações se separassem. Porém, isso ocorre de maneira independente nas duas populações, já que os machos de uma só cruzam com as fêmeas da mesma população, não havendo intercruzamento entre indivíduos de populações distintas. No jargão dos biólogos evolutivos não há mais 'fluxo gênico’ entre as duas populações e portanto as eventuais mudanças que ocorrem em uma não precisam ocorrer na outra, mas ambas populações continuam a mudar, tornando-se cada vez mais diferentes do que eram (quando eram uma única população) e uma da outra. Em nenhum momento deste processo existiu só um macho ou só uma fêmea, mas as populações com o tempo são cada vez mais diferentes umas das outras, o que quer dizer que os indivíduos de cada uma delas são cada vez mais diferentes dos indivíduos da outra, mantendo-se muito mais semelhantes aos indivíduos da mesma população. Isso tem que ficar bem claro.
Este processo faz com que as populações tornem-se espécies distintas uma da outra e se isso continuar por tempo suficiente, mesmo que as duas populações voltem a encontrar-se e os machos de uma encontrem as fêmeas da outra, estes indivíduos podem ser tão diferentes em termos dos seus comportamentos (ou posse de alelos incompatíveis, compatibilidade cromossômica etc) que eles não acasalariam uns com os outros e mesmo que o fizessem, talvez, não conseguissem produzir prole fértil. Neste caso, estas duas populações teriam tornado-se espécies genética e fenotipicamente distintas uma da outra e completamente isoladas reprodutivamente e, o mais importante, sem, em nenhum momento, que tivesse que ter havido só um macho ou só uma fêmea em cada uma destas populações. Ou seja, nunca houve a quebra da continuidade reprodutiva dentro de cada uma das populações, apenas a quebra da continuidade reprodutiva entre as populações.
Outro ponto importante é que este processo não para por aí. As espécies novas continuam a evoluir e as populações de uma vão tornando-se (em média) cada vez mais diferentes das populações da mesma espécie, mas de outras gerações. Assim como, também tornam-se (em média) cada vez mais diferentes das populações da outra espécie divergente. As linhagens não são entidades fixas. Elas continuam mudando, às vezes mais rapidamente, às vezes bem mais lentamente, podendo parecer mais ou menos estáveis (em algumas características), mas jamais completamente imutáveis, simplesmente porque processos como mutações e deriva genética, além da seleção natural, continuam sempre a ocorrer. Além disso, a menos que as espécies se extinguam, é possível que suas populações voltem a se dividir, isolarem-se umas das outras, e começarem a divergir, o que pode levar a outra especiação. Neste caso, teríamos quatro espécies cujas populações seriam diferentes umas das outras e diferentes das populações ancestrais. De novo, isso aconteceria sem jamais que elas tenham que ter sido formadas por um único indivíduo macho ou fêmea em qualquer momento da existência de cada uma destas espécies. Este processo de divisão e divergência das populações, ocorrendo por tempos cada vez maiores, é o que faz com que as espécies tornem-se cada vez mais diferentes, tanto das espécies ancestrais das quais descendem diretamente, como das espécies divergente (isto é, com as quais compartilham uma espécie ancestral comum), tornando-se sendo mais diferentes (em média) daquelas com as quais compartilham ancestrais comuns mais remotos. Da mesma forma que somos primos mais distantes daqueles primos com os quais compartilhamos ancestrais mais antigos em termos geracionais, ou seja, avós, bisavós, tataravós etc.
Estes eventos de cladogênese, ocorrendo em seguida em cada um dos novos ramos, e que dão origem a novas espécies, é que, quando encarados em retrospecto, nos permite agrupar as espécies dentro de gêneros (como o Homo), os gêneros dentro das famílias (como Hominidea), as famílias dentro das ordens (como a dos Primatas), as ordens dentro das classes (como a dos mamíferos), as classes dentro dos filos (como o dos Cordados), os filos em reinos (como o Animal) e os reinos dentro de domínios (como Eukarya) etc,. Porém só faz sentido fazer isso em retrospecto, pois cada um destes eventos de cladogênese, originalmente foi um simples evento de especiação que ocorreu com populações e que se estendeu no tempo (por gerações), mesmo que isso possa parecer rápido, em alguns casos, de uma perspectiva geológica.
Este processo entretanto é mais complicado. Como ocorrem extinções (ou seja, como muitas espécies simplesmente extinguem-se e as taxas de surgimento de novas espécies e e mesmo mudança dentro de uma mesma linhagem variam) o resultado acaba sendo bem mais errático. Mas é este processo de mudança dentro das linhagens e origem de novas (e extinção de velhas) linhagens que é o resultado da evolução e que produziu a atual diversidade biológica e padrão de parentesco evolutivo entre os seres vivos. De novo, sem jamais precisar, necessariamente, que tivesse existido apenas um indivíduo macho ou fêmea em uma dada espécie em qualquer momento deste processo. Por isso falar em um primeiro homem ou em uma primeira mulher e perguntar-se com quem teriam cruzado não faz muito sentido, pois este tipo de questão deixa de lado o fato da evolução ser um fenômeno transgeracional e continuo que ocorre com populações, com muitas das categorias taxonômicas mais amplas podendo apenas serem pensadas retrospectivamente, apenas após muitos eventos de especiação terem ocorrido, depois de linhagens inteiras terem sido extintas e das características, que consideramos diagnósticas de cada grupo ou subgrupo, já estarem bem estabelecidas.
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Grande abraço,
Rodrigo
Créditos das imagens:
Museu de Paleontologia da Universidade da Califórnia (UCMP) e o National Center for Science Education (Centro Nacional dos EUA para Ensino das Ciências), traduzido e adaptado pelo pessoal do ICB da USP.